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Wilhelm Dilthey: a crítica da razão histórica

2.1 A EVOLUÇÃO DA CRÍTICA DA RAZÃO HISTÓRICA

2.1.1 Wilhelm Dilthey: a crítica da razão histórica

No fim do século XIX, o historicismo alemão se confronta com a crise desencadeada pelo positivismo e, mais especificamente, com a exigência de que a história alcance a sua legitimidade através da própria transformação em uma ciência rigorosa cujo objetivo fosse a descrição do mundo e o esclarecimento das leis históricas. A complexidade da questão se acentua pela diversidade das perspectivas dentro do historicismo e da consequente impossibilidade da ideia de um consenso acerca da especificidade da ciência histórica. A principal via de ingresso à questão é a distinção entre as ciências naturais e as ciências do

espírito.172 Estas últimas caracterizadas por uma peculiar forma de ver o mundo e por uma metodologia particular.

Entre os pensadores preocupados com um método específico das ciências do espírito173 está Wilhelm Dilthey e sua recusa de que a realidade da vida do homem possa ser vista em sua totalidade segundo o método das ciências naturais.174

As ciências do espírito, incluindo direito, religião, arte e história, devem se concentrar na realidade histórico-social, ou seja, é seu escopo “c̔mpree̓der a realidade histórica e s̔cial ̓̔ que é si̓gular e i̓dividual” (DIδTHEY, 1942, p. 31). O estudo da referida realidade social envolve tanto experiência pessoal, quanto a compreensão reflexiva d̔ espírit̔ ̓̔s gest̔s, ̓as palavras e ̓a arte, em ̔utras palavras, “̓a ̓atureza huma̓a c̔m̔ um t̔d̔” (DIδTHEY, 1λ42. p. 31).175

Logicamente, as diferenças entre as ciências da natureza e as ciências do espírito leva à questão gnosiológica acerca da distinção entre explicação e compreensão, distinção que alimenta os métodos conflitantes (Methodenstreit) subjacentes à grande parte dos discursos sobre as ciências do espírito na Alemanha no início do século XX. Para Dilthey, as ciências do espírito estão num nível mais alto que as naturais, pois, enquanto os objetos destas últimas estão diante do homem, os das primeiras são fenômenos humanos.176 O resultado da distinção está sintetizado na asserçã̔ clássica de Dilthey segu̓d̔ a qual, “explicam̔s a ̓atureza e c̔mpree̓dem̔s ̔ h̔mem”.177

172 “τ cer̓e da perspectiva hist̔ricista reside ̓̔ pressup̔sto de que existe uma diferença fundamental entre os fenômenos da natureza e os da história, o que exige uma abordagem nas ciências sociais e culturais fundamentalmente diferente da das ciências naturais. A natureza é considerada o cenário do eternamente recorrente, de fenômenos em si mesmos desprovidos de propósito consciente; a história compreende fatos humanos únicos e inexplicáveis, cheios de volição e intenção (...) Os métodos abstratos e classificatórios das ciências naturais são, portanto, modelos inadequados para o estudo do mundo humano. A história exige métodos que levem em conta que o historiador é confrontado por pessoas e grupos concretos que antes estavam vivos e possuíam personalidades únicas que exigem entendimento intuitivo. Esses métodos devem levar em conta que não só o assunto do historiador, mas que ele mesmo está inserido no fluxo do tempo, e que os métodos e a lógica pela

qual ele busca ̔ c̔̓hecime̓t̔ ̔bjetiv̔ sã̔, eles própri̔s, limitad̔s ̓̔ temp̔” (IGGERS, 1969, p. 4‐5).

173 Trata-se da palavra alemã Geisteswissenschaften que Dilthey hesita em utilizar no início de sua obra, encontrando-se, em sua pe̓a, s̔bretud̔ expressões c̔m̔ “ciê̓cias fil̔lógicas e s̔ciais” ̔u “ciê̓cias p̔líticas,

históricas e s̔ciais”. Nenhum destes termos, porém, parecem caracterizar exatamente o grupo mal definido que

compreende ao mesmo tempo ciências políticas, como a economia, o direito e a política, as ciências filológicas, o caso da poética, da retórica, da gramática, da filosofia e da estética, a história e a moral. E mesmo quando se rende ao uso da expressão Geisteswissenschaften, a razão da escolha não se dá como evidente de antemão, pois nem o termo nem a ideia de espírito objetivo estão presentes num primeiro momento. Cf. ARON, 1969, p. 38.

174 Para uma introdução ao pensamento de Dilthey, cf. PANNENBERG, 1975, p. 71-78; 1999, p. 272-280. 175 “σa sua Einleitung in die Geisteswissenchaften, que depois se tornou fundamental para a definição das discipli̓as das ‘ciê̓cias d̔ espírit̔’, Wilheim Dilthey reu̓iu s̔b esta de̓̔mi̓açã̔ ‘̔ c̔̓ju̓t̔ das ciê̓cias que

têm por objeto a realidade histórico-s̔cial’. Perte̓cem a̔ camp̔ das ciê̓cias d̔ espírit̔ ̓ã̔ só aquelas disciplinas

que se ̔cupam da ‘interpretação do mundo ̓a li̓guagem, ̓̔ mit̔, ̓a arte, ̓a religiã̔, ̓a fil̔s̔fia e ̓a ciê̓cia’,

mas também aquelas que têm p̔r ̔bjet̔ ‘̔s ordenamentos da vida no Estado, na sociedade, no direito, na moral, na educação, na economia, na téc̓ica’” (PAσσEσBERG, 1λιη, p. ι2-73).

176 Cf. ARON, 1969, p. 75. 177 ARON, 1948, p. 49.

Com efeito, Dilthey se preocupa com a introdução do homem concreto na história como sujeito e como objeto, o que ilumina o caráter original da história humana e remonta a uma filosofia da história que valoriza a experiência interior, única fonte de certeza imediata, e põe a “reflexã̔ d̔ espírit̔ s̔bre si” e “a desc̔berta d̔ psíquic̔” c̔m̔ ̔s d̔is eleme̓t̔s d̔ c̔̓ju̓t̔ s̔bre ̔ qual a fil̔s̔fia se suste̓ta. “É ̓a experiê̓cia i̓teri̔r, ̓̔s fat̔s da c̔̓sciê̓cia que se e̓c̔̓tra a terra firme ̔̓de a̓c̔rar ̔ pe̓same̓t̔”, e ai̓da, “a análise dos fatos será o c̔raçã̔ das huma̓idades” (DIδTHEY, 1942, p. 4).

Esta filosofia, “a̓c̔rada ̓̔s fat̔s da c̔̓sciê̓cia”, se preocupa tanto com a consideração objetiva da totalidade quanto com a legitimidade das ciências do espírito. Por um lado, contemplando os fatos segundo um método empírico, tenta-se substituir a unidade metafísica da filosofia da história por uma unidade concreta e inteligível do homem e da história que repousa sobre a compreensão humana, especialmente sobre a compreensão da consciência que o homem tem de si mesmo. Por outro lado, criticando o positivismo por ter mutilado a realidade histórica para ajustá-la aos conceitos e aos métodos das ciências naturais, procura estabelecer uma psicologia empírica, com a qual a filosofia deve permanecer imbricada. Trata- se dos “estud̔s p̔sitiv̔s de i̓te̓çã̔ fil̔sófica” (ARτσ, 1λθλ, p. 2λ), em que “a fil̔s̔fia se definiria como o trabalho científico que, inspirado ou esclarecido pela psicologia e pela teoria do conhecime̓t̔, c̔̓servaria também uma ̔rie̓taçã̔ para ̔ c̔̓ju̓t̔” (ARτσ, 1λθλ, p. 2λ). Desta forma, Dilthey se coloca ao mesmo tempo fiel e crítico diante do idealismo clássic̔, p̔is mesm̔ resiste̓te à ̓̔çã̔ de “espírit̔ abs̔lut̔”, dese̓v̔lve, devido ao êxito do positivismo nas ciências sociais, o projeto de uma enciclopédia das ciências morais comparável à de Comte.178 Mas uma teoria repleta de resíduos conceituais da filosofia hegeliana se mostra ambígua, e o paradoxo se evidencia qua̓d̔ se pr̔põe a “aplicar um mét̔d̔ cie̓tífic̔ a dificuldades metafísicas” (ARτσ, 1969, p. 12).179

A dificuldade se põe desde o ponto de partida quando se propõe a alcançar uma maior objetividade sem considerar suficientemente o papel dos indivíduos. Deste modo, se antevê que, para a certeza do conhecimento, a razão não pode ser o único recurso, em outras palavras, não se conhece o mundo exterior exclusivamente através do raciocínio voltado aos seus fenômenos e às suas causas, mas também a partir de experiê̓cias i̓ter̓as, “abstrações que vêm da vida de ̓̔ss̔ querer”, p̔rqua̓t̔, “tud̔ ̔ que ̔ h̔mem faz ̓esta realidade histórica e s̔cial ac̔̓tece ape̓as p̔r que a v̔̓tade e̓tr̔u em j̔g̔” (DIδTHEY, 1942, p. 73).

178 Sobre a oposição de Dilthey à sociologia de Comte, cf. ARON, 1969, p. 47. 179 Cf. ARON, 1969, p. 35-37.

Dilthey se volta para uma psicologia descritiva e analítica, que não se interessa por um sujeito abstrato, mas pela totalidade psíquica do ser vivo, sujeito da história. O pensamento é parte da vida, quer no encontro da razão com a intuição, quer nos momentos em que ele emerge claramente, como fica claro na interpretação de Raymond Aron (1λθλ, p. θ2) “as marchas d̔ ‘pe̓same̓t̔ sile̓ci̔s̔’, c̔mparar, disti̓guir, c̔̓ciliar, etc., estã̔ ̓a raiz da razã̔ e das categ̔rias f̔rmais”. Perceber ̔bjetivamente a vida na sucessão de suas formas é, portanto, o problema da ciência do espírito, ciência que não busca as causas, mas a descrição dos eventos históricos.

Fica assim sublinhada a antinomia entre o fato do indivíduo existente e pensante e a pretensão da ciência à universalidade, pois, uma vez substituídas as relações abstratas entre o sujeito e o objeto pelas relações vividas pelo homem no mundo, não se pode garantir a universalidade de juízos logicamente verdadeiros. A pretensa objetividade da história é ainda mais duvidosa do que a razão histórica, sendo, ao mesmo tempo, aquela que conhece o passado e a que evolui no decorrer da história. Para Aron, p̔rém, para que a “fil̔s̔fia da vida” seja válida, deve-se resp̔̓der às pergu̓tasμ “c̔m̔ o indivíduo que sai de si mesmo? Como c̔̓segue captar ̔ ̔utr̔ς C̔m̔ é capaz de se abrir a̔ u̓iversalς” (ARτσ, 1969, p. 63). Desta forma, a história se torna imanente e o próprio sujeito se constrói nela, quadro no qual se perde toda forma de certeza capaz de garantir o acesso à verdade universal.

No entanto, apesar de todas as suas antinomias, a tentativa de Dilthey de introduzir o homem concreto no estudo das ciências do espírito, tem um significado fundamental. Se fracassa ao tentar encontrar a verdade universal a partir de uma psicologia descritiva – o que evidencia a natureza paradoxal do seus sistema, “a dualidade d̔ p̔sitivism̔ e da fil̔s̔fia defi̓e a pers̔̓alidade de Dilthey” (ARτσ, 1969, p. 30) –, sua filosofia tem o mérito de se ma̓ter ̓̔s “pr̔l̔̓game̓t̔s das c̔̓struções c̔̓ceituais”, p̔rque, emb̔ra ce̓trada ̓̔ interesse do sujeito, na compreensão e na simpatia do homem concreto, visa basicamente à apreensão objetiva da totalidade. Esta mesma totalidade, no entanto, pode restar além do alca̓ce d̔ c̔̓hecime̓t̔, p̔is, se a t̔talidade está ̓̔ futur̔ da huma̓idade, “c̔m̔ a significação de toda existência, a significação da humanidade só será interrompida se a aventura f̔r c̔̓cluída” (ARτσ, 1λθλ, p. κκ), e̓treme̓tes ̓ã̔ se p̔de afirmar ̔u dem̔̓strar ̓e̓huma verdade universal.

A conclusão à qual chegamos através da antinomia apontada – comum a todos os filósofos que se interessam pelas condições de possibilidade das ciências do espírito – pode estar nas interrogações de Aron (1969, p. 106): “se tivéssem̔s a verdade, a história ̓ã̔ teria acabado? Mas se não houvesse nem verdade ̓em pr̔gress̔s, haveria ai̓da uma históriaς”.

2.1.2 Heinrich Rickert: lógica da história e filosofia dos valores

Para Rickert, a pergunta sobre as condições transcendentais de possibilidade das ciências históricas deve ser superada pela questão sobre as condições de uma ciência histórica universalmente válida. Começa-se, assim, a tentativa de “circu̓screver ̔ d̔mí̓i̔ d̔s julgamentos sobre o passado válidos para todos, independentemente de qualquer apreensão da t̔talidade” (ARτσ, 1λθλ, p. 1ίθ). Parti̓d̔ igualme̓te d̔ “ret̔r̓̔ a Ka̓t” (ARτσ, 1λθλ, p. 12), depois da ruptura com uma postura especulativa, deseja-se justificar a ciência histórica através do pensamento transcendental.180 Com efeito, sua filosofia gira ao redor desta questão: “é p̔ssível tra̓sp̔r ̔ mét̔d̔ ka̓tia̓̔ de m̔d̔ a t̔r̓ar i̓útil a fil̔s̔fia da história e fu̓dar uma lógica original das ciê̓cias históricasς” (ARτσ, 1λθλ, p. 13), que se c̔̓stitui ̓uma fil̔s̔fia da história c̔m̔ uma “lógica d̔ c̔̓hecime̓t̔ ̔u te̔ria da Begriffsbildung” (ARτσ, 1969, p. 114).181

Como Dilthey, Rickert também retoma a diferença entre as ciências, mas considera a distinção entre natureza e espírito, entendida como oposição entre o corpóreo e o psíquico, insuficiente para caracterizar a especificidade das ciências do espírito.

P̔is c̔m a ajuda d̔ c̔̓ceit̔ de “psíquic̔”, ̓ã̔ se p̔derá jamais dem̔strar

precisamente a distinção entre dois tipos de interesse científico quanto aos seus princípios, à qual corresponde a distinção material dos seus objetos (...) e não se poderá deduzir por este meio qualquer oposição útil e lógica, quer dizer, formal, entre dois métodos diferentes de investigação (RICKERT, 1997, p. 35).

Sugere-se, então, a clivagem das ciências, tanto a partir dos objetos tratados, quanto do método empregado, ou seja, do ponto de vista material e daquele formal e passa para o centro das ciências do espírito o c̔̓ceit̔ de “cultura” ̓a medida em que ̔ferece um sig̓ificad̔ para a totalidade da realidade dada.182 Logo, a oposição entre natureza e cultura suplanta a oposição tradicional entre natureza e espírito; entendendo a natureza a partir do seu caráter

180“A palavra de ̔rdem retorno a Kant que é comum a Dilthey e a todas as escolas neo-kantianas de seu tempo contém já em germe uma filosofia nova. Pois a crítica não conduz apenas às atividades abstratas que Kant discerniu

estuda̓d̔ as c̔̓dições ̓ecessárias a̔s matemátic̔s e à física” (ARτσ, 1969, p. 24, grifo do autor). Nosso desejo é justame̓te subli̓har a expressã̔ “palavra de ̔rdem” que faz d̔ “ret̔r̓̔ a Ka̓t” mais d̔ que uma simples

tendência metodológica, mas o real pano de fundo da crítica da filosofia da história.

181 E c̔̓ti̓uaμ “A a̓álise da Begriffsbildung é o princípio de toda epistemologia; só ela permite responder à questão crítica: sob que condições é possível uma reconstrução do passado que possa pretender ser universalmente verdadeira? Nós lidamos com um tipo de metodologia sistemática, entre uma teoria do conhecimento e uma

epistem̔l̔gia c̔̓creta” (ARτσ, 1969, p. 113). 182 Cf. LI, 2012, p. 44.