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O sentido da pergunta pela história

2.3 DO INTERESSE PELA HISTÓRIA

2.3.1 O sentido da pergunta pela história

O caráter impessoal do título não oculta o interesse de Weil pelo tema. De fato – o essencial da nossa tese –, a hipótese de que a filosofia de Eric Weil pode ser tomada como uma filosofia da história não é mais do que a aplicação à reflexão weiliana, daquilo que ele assevera

acerca da relação entre a filosofia da história e a filosofiaμ “a filosofia da história não é só possível, mas constitui uma exigência da filosofia e, como tal, existe, embora frequentemente só de ma̓eira implícita” (WEIδ, 1998a, p. 79-80, grifos nossos). Se tomarmos essa afirmação como elemento estrutural da consideração sobre a filosofia da história em Weil, devemos acrescentar um outro aspecto igualmente essencial à sua justa interpretação, a saber, o fato de não se tratar de uma questão periférica, porquanto é uma filosofia da história que conscientemente se propõe mais radical do que aquela de Hegel ou de Heidegger.232

Com efeito, o ponto de partida da análise weiliana é a constatação da insuficiência destas duas propostas alternativas de filosofia da história. Em primeiro lugar, Weil trata do tema considerando-̔ simplesme̓te c̔m̔ “a reflexã̔ fil̔sófica [que] busca ̔ se̓tid̔ d̔ que f̔i” (WEIL, 1991a, p. 207). É o caso do reconhecimento tipicamente hegeliano da história como “uma e̓car̓açã̔ d̔ Espírit̔” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίι), ̔u d̔ seu c̔̓trári̔, ve̓d̔ ̓a sequê̓cia d̔s ac̔̓tecime̓t̔s “uma sucessã̔ despr̔vida de qualquer se̓tid̔” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίι). Em segundo lugar, a filosofia da história se interessaria pela historicidade humana, “pergu̓ta̓d̔ se e em que medida ̔ fat̔ de p̔ssuir um passad̔ é c̔̓stitutiv̔ d̔ h̔mem, quer dizer, se é um fat̔ fil̔sófic̔” (WEIL, 1991a, p. 207).

Para Eric Weil, ̔ limite das duas p̔sições está ̓̔ fat̔ de que ambas “pr̔cedem d̔ conceito de uma história que existe, de um modo ou de outro, em si, seja como série de eventos, seja c̔m̔ tradiçã̔ que, ̓a sua qualidade de ‘se t̔r̓ar passad̔’, f̔rma ̔ h̔mem e existe ̓a açã̔ e pela açã̔” (WEIδ, 1991a, p. 207). Deste modo, nem Hegel– “espiritualizaçã̔ d̔ ̔bjet̔” –, nem Heidegger – “i̓telectualizaçã̔ da duraçã̔” (ARON, 1948, p. 82) – para nos manter nos nomes citados – desenvolveram uma filosofia da história capaz de pôr a questão propriamente filosófica no que concerne ao tema. O verdadeiro problema é, então, evidenciar aquilo que se manteve até aqui como mero pressuposto. De um lado, trata-se de lançar a pergunta acerca das razões d̔ ̓ascime̓t̔ da história, ̓ã̔ da história em si, mas “c̔m̔ atividade huma̓a particular” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίι), e, de ̔utr̔, aquela talvez ai̓da mais fu̓dame̓tal, “̔ que leva o homem a se ocupar d̔ passad̔ς” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίι).233

232 As duas concepções de histórias são descritas por Aron c̔m as segui̓tes palavrasμ “̔u a história termi̓a ̓uma pluralidade incoerente na qual só é possível se situar pela comparação e pela decisão, ou ela assinala para a humanidade uma vocação que subordina as diferentes missões dos homens e dos grupos a uma finalidade, à

u̓idade de um imperativ̔ abstrat̔ ̔u de uma tarefa c̔letiva” (ARτσ, 1948, p. 85).

233 Até certo ponto, é o que afirmou também Marcelo Perine (1λκι, p. 3η)μ “τ ̔bjet̔ da questã̔, c̔̓tud̔, ̓ã̔ é a história dos filósofos, a de uma filosofia da história que, seja buscando o sentido do que aconteceu, seja perguntando se ter um passado é constitutivo do homem, parte sempre de um interesse sistemático. A história que nos ocupa aqui é a dos historiadores, a que é pressuposta pelos filósofos, a história ingênua, se se prefere, não a

história em si, ̓em a hist̔ricidade d̔ h̔mem”. Este aspect̔ já f̔i acenado, e certamente Weil não se refere à

história em si, com Hegel, nem à historicidade do homem, com Heidegger, no entanto, não sabemos por que afirmar que o objeto da questão não constitui uma filosofia da história.

A radicalidade do esforço weiliano se mostra justamente ao eleger um novo ponto de partida para a reflexão sobre a história. O reconhecimento dos limites das duas posturas analisadas lança as bases para o domínio no qual a questão ganha sua real extensão. De fato, ̓ã̔ é mais ̔ cas̔ de partir da “história em si” ̔u da “hist̔ricidade d̔ h̔mem”, mas da “história do homem que lê obras históricas, que se interessa pelo passado de sua família, de sua cidade e de sua pátria” (WEIδ, 1991a, p. 208). A pergunta agora ganha seu caráter propriamente fil̔sófic̔, p̔is “̓ós pr̔curam̔s ̔ que há de atrae̓te para ̔ h̔mem ̓a história, qual é, ̓este sentido, seu valor para ele, qual é o fator que torna o homem um historiad̔r”, fi̓alme̓te, se “̔ i̓teresse históric̔ é ̔u ̓ã̔ c̔̓stitutiv̔ d̔ h̔memς” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίκ). A pergu̓ta pela história é filosófica enquanto traz no seu bojo aquela que subjaz a toda e qualquer interrogação feita pelo homem, isto é, a pergunta pelo próprio homem. Também neste ponto Aron mostra um acordo fundamental com Weil, acordo certamente assentado sobre a inspiração kantiana de amb̔sμ “a fil̔s̔fia, ̓a sua t̔talidade, parece sempre exprimir uma existê̓cia e ̓ã̔ só um pensame̓t̔ pur̔, visar um ̔bjet̔ i̓acabad̔ e cambia̓te, ist̔ é, ̔ própri̔ h̔mem” (ARτσ, 1948, p. 96).

Todas as ciências do espírito compartilham pelo menos dois pressupostos essenciais: a faculdade humana de pôr questões e a sua capacidade de se espantar. O que as diferencia entre si é justame̓te ̔ d̔mí̓i̔ de seus ̔bjet̔s particulares. σ̔ cas̔ da história, “atividade d̔ espírit̔” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίκ), a característica é justame̓te a “ass̔mbr̔” d̔ hist̔riad̔r pel̔ que passou. A afirmaçã̔ é tã̔ verdadeira qua̓t̔ imprecisa. De fat̔, “̔ que pass̔u” ̓ã̔ p̔de ser t̔mad̔ simplesme̓te c̔m̔ ̔bjet̔ de i̓teresse d̔ hist̔riad̔r, p̔rqua̓t̔ “̔ que pass̔u” só p̔de ser ̔bjet̔ para ̔ h̔mem e̓qua̓t̔ “ai̓da é”.234 O passado interessa ao homem enquanto se mantem presente, isto é, naquilo que impõe ao presente.235

A filosofia da história assume a partir daqui uma dupla tarefa. Primeiro, reconhecendo ̔ caráter i̓fi̓it̔ da t̔talidade d̔s temas que a história pr̔põe, la̓çar a pergu̓ta s̔bre “̔ interesse que dirige a esc̔lha” (WEIδ, 1991a, p. 208) por um momento ou mesmo um evento específico. Depois, a partir da análise das diferentes questões dominantes nas diversas épocas, evidenciar o fato de que a própria pergunta pela história tem um caráter histórico. Os exemplos de Weil não apenas ilustram estas afirmações, mas se dão como fundamento do próximo passo de seu itinerário, o que nos faz citá-los integralmente:

234“A história implica a tomada de consciência pela qual o passado é reconhecido como tal, no momento em que a c̔̓sciê̓cia lhe restitui uma f̔rma de prese̓ça” (ARτσ, 1948, p. 85).

235Aquil̔ que a partir d̔s “privilégi̔s da retr̔specçã̔” se p̔de afirmar também c̔m̔ segueμ “̔ prese̓te esclarece ̔ passad̔” (ARτσ, 1948, p. 83).

Na França e na Inglaterra, os séculos XVII e XVIII são testemunhas do deslanchar da história antiga; as traduções de Plutarco são a leitura da moda. Na Alemanha, a primeira metade do século XIX é caracterizada pelo estudo da Idade Média, a segunda, pelas pesquisas sobre a história política dos tempos modernos, notadamente sobre a unificação das nações. Na Rússia, a ciência histórica produziu seus melhores resultados no domínio da história bizantina. Podemos continuar a enumeração; podemos, em diferentes países e por diversas épocas, fazer ressurgir grupos; seria mesmo possível desenvolver critérios depois dos quais assinalaríamos o seu lugar em toda obra histórica no tempo e no espaço. E isto não está apenas nos livros eruditos: se, de fato, o fenômeno é aqui mais fácil de perceber, ele se encontra, todavia, em todas as províncias da vida; no romance, na tragédia, no poema, nas comparações nas letras, nos temas das conversas na sociedade, em todo lugar se encontra o tema da moda. Os exemplos se oferecem a cada passo (WEIL, 1991a, p. 208-209).

Se, de um lado, fica patente que a pergunta pela história é sempre historicamente situada; de outro, resta saber o que subjaz ao interesse por uma determinada época. Para Weil, se os franceses e ingleses se viram como herdeiros da cultura antiga, os alemães, de alguns ideais medievais e modernos, e o russos como continuadores da história bizantina, fica facilmente identificado o fator da escolha no interesse de cada grupo pelos próprios ancestrais. A questão deixa de ser simples quando se constata que “̓ã̔ há a̓cestrais ̓̔ se̓tid̔ ̔bjetiv̔ da palavra: o historiador os escolhe, ele os encontra p̔r um at̔ de decisã̔” (WEIδ, 1991a, p. 209, grifo do autor). Por trás de cada escolha está, portanto, o confronto do presente com a “imp̔rtâ̓cia ̔bjetiva”, c̔m a “gra̓deza abs̔luta” de um passad̔, e mesm̔ que esta decisã̔ seja expressa pela rejeiçã̔ d̔ que está e̓tre “̔ i̓terr̔gad̔r e seus verdadeir̔s a̓cestrais”, “a história serve, assim, para ilustrar e para esclarecer o próprio ideal de vida e para mostrar por ela que ̓ã̔ se trata de um s̔̓h̔” (WEIδ, 1λλ1a, p. 2ίλ). Fi̓alme̓te, ̔ que se busca a̔ se voltar para a história é a si mesmo e só isso é possível encontrar.

Superadas as formas de filosofia da história que não chegam a enxergar nela a questão fundamental (e kantiana) acerca do homem, passa-se a um novo momento (igualmente kantiano), no qual a liberdade aparece como problema. Quanto a isto Weil é peremptóri̔μ “a história é decisã̔” (WEIδ, 1991a, p. 210). A questão da liberdade, constitutiva da pergunta acerca d̔ h̔mem, se dá justame̓te e̓qua̓t̔ “aquele que, p̔r i̓teresse, p̔r ‘curi̔sidade’, se volta para o passado, é obrigado a fixar um ponto no infinito extensivo; aquele que se decide é forçado pelo infinito intensivod̔ sujeit̔ a se limitar” (WEIδ, 1λλ1a, p. 21ί, grif̔s ̓̔ss̔s). De um lad̔, p̔rta̓t̔, ̔ “̔bjet̔ históric̔” participa d̔ caráter livre d̔ h̔mem, de ̔utr̔, sua própria delimitaçã̔ põe mais uma vez a questã̔ acerca d̔ “i̓teresse que se tem pela história”.

Trata-se, em outras palavras, de escolher o objeto histórico entre possibilidades infinitas. No entanto, a compreensão da questão exige ainda que se considere juntamente com a liberdade de decidir, as condições que levam o homem à delimitação do seu interesse. Com efeit̔, “a esc̔lha é esse̓cialme̓te uma esc̔lha ̓a realidade, ̓̔ mu̓d̔” (WEIδ, 1991a, p. 211-212) e a partir dos seus conflitos. Esta escolha é sempre mais que um ato arbitrário, ela é a efetivação da liberdade situada por seu limite absoluto, de um lado, e pelo limite relativo, de outro. Concernente ao primeiro, é a consideração da impossibilidade de uma não decisão; no que toca o segundo, a liberdade é sempre vista na circunscrição de sua situação concreta.

Aos poucos, Eric Weil elenca os elementos necessários a uma reflexão filosófica sobre a história capaz de dar conta do interesse subjacente à decisão acerca do objeto histórico. Como visto, o esforço weiliano é o erguimento de um arcabouço teórico definitivamente mais profundo que os modelos tradicionais de filosofia da história, seja aquele fundado na busca de um sentido da história em si mesma, seja o que se baseia na historicidade como cifra da existência finita do homem. Para Weil, a única chave que pode dar um caráter propriamente filosófico à questão histórica é a assunção do seu bojo antropológico. De fato, se o homem traz ao presente o seu passado, é justamente para compreender a sua situação e esclarecer todas as condições que lhe impõem sua decisão, decisão que se volta tanto à delimitação do objeto histórico quanto à preocupação fundamental pela pergunta sobre o homem, matéria e artífice da história.

Exatamente por se centrar na questão do homem, a abordagem weiliana da história se anuncia como outro tipo de reflexão, não estamos simplesmente diante de desdobramentos de modelos anteriores, mas de uma proposta sintética e original. Entre os primeiros elementos dessa síntese está a retorno à crítica de Nietzsche à “história m̔̓ume̓tal”.236 Há, em Eric Weil

236 Cf. WEIL, 1991a, p. 212. Em um contexto de preocupações amplas, a crítica de Nietzsche se sustenta no receio de que a criação de uma ciência histórica objetiva retire da história o que há de vital nela. O historiador que vê nos acontecimentos passados um objeto como qualquer outro não compreende que deve utilizar a história do modo que mais for conveniente para a construção de uma cultura viva e forte. Há três formas legítimas de realizar

história, a saber, a “m̔̓ume̓tal”, a “a̓tiquária” e a “crítica”, que c̔rresp̔̓dem a três ̓ecessidades vitais

particulares dos que quiserem realizar atos, preservar o passado ou, por último, dos que querem se libertar dele. Cada uma das três formas de história será realizada pelo seu tipo correspondente de homem, e seu conhecimento só é válido enquanto nutre sua ação. Nisso está a exígua vantagem da história, em contraposição às suas grandes desvantagens, entre as quais se destaca a perda de personalidade que ela significa: o historiador seria fruto de uma época que dissolve sua própria identidade na consideração desmedida da totalidade das civilizações passadas Cf. NIETZSCHE, 2003, p. 18. Para citar um trecho das suas Considerações intempestivas, podemos trazer suas

palavras qua̓d̔ diz que “a história m̔̓ume̓tal ilude p̔r mei̔ de a̓al̔giasμ através de similitudes sedut̔ras, ela

impele os corajosos à temeridade, os entusiasmados ao fanatismo. E se imaginarmos esta história nas mãos e cabeças de egoístas talentosos e de salafrários exaltados, então impérios podem ser destruídos, príncipes assassinados, guerras e revoluções podem ser provocadas e a qua̓tidade de ‘efeit̔s em si’ históric̔s, ist̔ é, de feitos sem uma causa suficiente, aumenta de novo. Mas é o bastante lembrarmos os danos que a história monumental pode causar entre os homens de poder e de ação, sejam eles bons ou maus: que efeito ela não provoca,

uma dimensão que “questi̔̓a a história em relaçã̔ a̔ seu futur̔ (passad̔), parti̓d̔ de sua própria situaçã̔” (WEIδ, 1991a, p. 212), dimensão na qual as questões encontram seu real significado, isto é, podem se revelar como perquirições “̓ã̔ ̔ci̔sas”, justamente por tocarem, invariavelmente, quem põe a interrogação. A fonte da crítica weiliana, no entanto, não se está simplesmente no retorno a Nietzsche, mas a Kant, pois Weil não reproduz a relação nietzschiana e̓tre as perspectivas “m̔̓ume̓tal”, “erudita” e “crítica” das Segundas considerações intempestivas, antes retoma a kantiana Pragma tische Geschichte da Fundamentação da metafísica dos costumes. O homem inquire a história a partir do reconhecimento da problematicidade da situação presente; para quem pergunta, interessar-se sobre o passado manifesta ̔ “desej̔ de c̔̓hecer as situações e as decisões p̔ssíveis” (WEIδ, 1λλ1a, p. 213), kantianamente, tornar-se mais “prude̓te”.

Parece-me que a verdadeira significação da palavra pragmático se pode assim determinar da maneira mais exacta. Chamam-se pragmáticas as sanções que decorrem propriamente não do direito dos Estados como leis necessárias, mas da prevenção pelo bem-estar geral. A História é escrita pragmaticamente quando nos torna prudentes, quer dizer quando ensina ao mundo actual a maneira de assegurar a sua vantagem melhor ou pelo menos tão bem como o mundo das gerações passadas (KANT, 2008c, p. 56, grifos do autor).

Nas condições modernas, as perguntas dirigidas à história ganham sempre mais feições rigorosas segundo o modelo epistemológico das científicas e um outro elemento na síntese weiliana é precisamente a reflexão sobre o papel desempenhado pelas ciências sociais. Em outras palavras, é a fu̓çã̔ da “sociologia histórica” que, “busca̓d̔ ̔s tip̔s de ev̔luções, de atitudes, de relações huma̓as, faz ̔ que chamam̔s história pragmática” (WEIδ, 1991a, p. 213).