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1.3 A cultura política e o recente ciclo de modernização brasileiro

1.3.2 Os parlamentos brasileiros e a ampliação da participação política

Reportando-se sobre os parlamentos brasileiros após redemocratização, noutro enfoque, Avritzer (1995) entende ser um ponto de intersecção entre duas culturas políticas geradas pelo contexto de retorno à democracia, onde uma cultura democrática, vinculada aos movimentos sociais, digladia-se com uma outra conservadora, vinculada ao sistema de Estado e de mercado, que lutaria para manter práticas tradicionais. Na medida em que pertence a estrutura do Estado e, ao mesmo tempo, representa a sociedade, o parlamento é tensionado, permanentemente, por estas duas forças. O nível de participação da sociedade nas discussões públicas, portanto, teria centralidade.

Para Avritzer e Wampler (2004), a eficácia dos processos de participação política da sociedade, referindo-se aos governos municipais, têm sido variáveis, dependendo de vivências anteriores das comunidades locais para ocorrência de experiências de autonomia dos movimentos, ou de manipulação por práticas

clientelistas. As discussões anteriores restabelecem a polêmica do que seria necessário para uma efetiva democratização do sistema político, em bases modernas.

De qualquer forma, a contraparte disto, em termos de elites políticas, significa   aceitar   o   “primado   da   lei”,   ou   do   “Estado   do   Direito”,   como   manifestação   típica da modernidade, tutelado por uma cultura política moderna. Diamond e Morlino (2004 apud MOISÉS, 2008), dentro de oito dimensões consideradas importantes para a qualidade da democracia, salientam o accountability vertical, entendido como a possibilidade de controle das ações públicas dos funcionários públicos, inclusive agentes políticos, pelos cidadãos (no voto, por exemplo) e o

accountability horizontal, ou o controle das atividades públicas de funcionários do

Estado, inclusive agente políticos, por outros funcionários. Estes dois aspectos, em termos de elites políticas, se traduzem na capacidade dos eleitos de sustentarem suas propostas de modo pertinente com as necessidades sociais, traduzido-as em políticas públicas, o que os habilitaria, diante a fiscalização do eleitor, para reeleição (accountability vertical); além disso, o esforço de controle e equilíbrio entre membros de organizações públicas, fiscalizadores e fiscalizáveis, por agências distintas da administração (accountability horizontal), contribuiria para a modernização política, significando o combate às práticas de patrimonialismo, clientelismo ou patronagem.

Nesta perspectiva, o portador de função pública tendo que prestar conta de seus atos quantitativa, e qualitativamente, melhoria a gestão pública a partir da interação público/privado, com transparência na formulação, e eficácia na implementação, de políticas públicas (governance). Para tal, a promoção dos CGMs, institucionalizados na redemocratização, contribuiria para o necessário envolvimento de indivíduos, organizações e comunidades em questões de seu interesse, adquirindo controle e responsabilidade sobre elas (empowerment ou empoderamento), com poder de ação e transformação da realidade local.

Na lógica ditada pela última redemocratização, um parlamento moderno e atualizado tem que contemplar esta dimensão da cultura política para o devido aprimoramento do sistema político. Contudo, a leitura da participação dos movimentos sociais, no processo de redemocratização, padece de ceticismo por parte de um bom número de especialistas.

Gay  (apud  D’ÁVILA,  2000)  resume  a  literatura  sobre  o  tema  da  atuação  dos   movimentos sociais, no processo de redemocratização, em duas correntes: de um

lado, estariam os que identificam um processo gradual de democratização do Estado e da Sociedade, pela ampliação dos mecanismos de participação democrática que, em conjunto, enfraqueceriam o poder das elites tradicionais, reduzindo a possibilidade de práticas tradicionais de cultura política; de outro, ficariam os que apontam a persistência de práticas de dominação política, vistas como resquícios do passado que teriam sido reforçadas pelo processo de burocratização do último período autoritário, tendo ficado sob controle de atores da política tradicional.

Na visão de Schmidt (2000), a sociedade foi chamada para administrar o prejuízo  na  chamada  “década  perdida”,  a  dos  anos  1980.  No  quadro  de  instabilidade   das décadas de 1980 e 1990, com a troca de um modelo de Estado propositivo para gerencial e a manutenção formal da democracia, sem ganhos qualitativos em termos de atendimento material, o que ocorreu foi um apoio difuso a uma ideia de democracia, não muito bem interpretada pela população, dificultando orientações para a consolidação do sistema e facilitando a manutenção de modelos tradicionais de práticas políticas.

Especificamente sobre legislativos locais, Lenardão (1997), registra que mesmo com a retomada dos direitos democráticos, as elites locais teriam desenvolvido mecanismos de manipulação das vontades políticas populares para contrabalançar a crescente, embora relativa, autonomia dos movimentos sociais em face  do  Estado  e  dos  partidos  políticos.    No  fenômeno  do  “vereador  de  bairro”  pós- redemocratização, vê um exemplo de como se rearranjam velhas práticas de cultura política tradicional. Um arquétipo, empiricamente recolhido, do indivíduo que na sua experiência de socialização política vivenciou a passagem de liderança religiosa a de   liderança   política,   interpretando   a  função   política   como   “serviço   à   comunidade”,   na doação e, eventualmente, caridade, derivados da vida social do cristão. Neste exemplo se tem a oportunidade de visualizar como tais condutas, em muitos casos bem intencionadas, podem desvirtuar a função do parlamentar local, criando vínculos particularizados e informais com eleitores e possibilitando a formação de redes de clientela para sua legitimação.

Diante disso, a despeito das modernizações políticas, para parte do pensamento científico sobre política brasileira, as caracterizações anteriores parecem expressar rotulações a fenômenos da cultura política tradicional que sobrevivem, contemporaneamente, sem serem considerados fósseis vivos de um arcaísmo político, mas como algo vívido que se rearticula ao sabor da matriz

histórico-estrutural de cultura política brasileira (BAQUERO; PRÁ, 1995) e das transformações conjunturais, em consonância com a ideia de princípios inovadores nos   sucessivos   ciclos   “geológicos”   de   política   (DIAMOND),   numa   contração   das   estruturas internas do país aos ditames de uma modernidade periodicamente atualizada, em especial, pelas necessidades do mercado mundial. Princípios inovadores e recursos políticos tradicionais, eis aí a essência da cultura política dual a envolver uma elite política local. Neste trabalho, foca-se na fração que compõe o legislativo local. Considera-se   “elite   legislativa   local”   aos   representantes   da   sociedade legalmente eleitos para o mandato de vereador, entendidos como agentes públicos submetidos a compromissos não só políticos.