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Os pronomes pela Gramática de Jerônimo Soares Barbosa

O propósito de Soares Barbosa é tecer louvores à razão humana por meio da descrição de sua língua materna, concebida como ferramenta que faculta materializar o pensamento: causa universal que explica a origem do homem, razão pela qual propõe a “(...) analysar o discurso, e nele descobrir a analyse de seus próprios pensamentos”. (1875. p.IX).

Postula esse gramático que as línguas respondem pela organização do pensamento e, por isso elas “são (...) um (s) instrumento (s) analítico(s) que separa(m) as idéias simultâneas do painel (...) do pensamento, que as põe(m) em ordem e as faz(em) suceder umas às outras no discurso “ (p.69).

Nessa acepção a representação do pensamento não pode ser observada ou analisada, quando se consideram palavras isoladas ou cada uma em sua particularidade, pois é indispensável observá-las, apreendê-las na relação que estabelecem umas com as outras, sem o que não se apreende os modos de raciocinar. Logo, ao assinalar as relações entre palavras por meio da sintaxe, apreendem-se as regras de construção da sintaxe de uma dada língua e, por meio delas, os modelos de ordenação do pensamento expressos pela fala: atividade que explicita o pensamento pelo uso de sinais inventados pelo homem para comunicar o que pensa.

Essas funções da língua – representação e comunicação - fazem da gramática a arte de falar por meio de sinais lingüísticos, quer sejam orais ou escritos: (...) a gramática de qualquer língua (...) deve ser uma verdadeira lógica, que ensinando a fallar, ensina ao mesmo tempo a discorrer. Que por isso a grammatica foi sempre reputada como uma parte da lógica pela intima conexão que as operações do nosso espírito tem com os signos que os exprimem. É esta a razão porque os antigos philósofos e os stoicos, principalmente, se fizeram cargo d’ella nos seus tratactos de philosophia. (p. XI e XII).

As diferentes relações instituídas entre as palavras de uma língua, por meio da sua sintaxe, têm por suporte dois princípios: o da identidade e o da determinação, e eles não podem ser concebidos de forma indissociável. A relação de identidade é o fundamento da concordância nominal e verbal; a de determinação é decorrente do lugar ocupado pelas palavras na estrutura da frase e dessa ordem advém o valor, isto é, o significado da própria frase. Desta feita, quando se faz uso de frases como “Velho homem” e “homem velho” não se expressam os mesmos juízos de valores, pois as idéias veiculadas por esses dois modos de ordenar as palavras não se equivalem; ainda que a sintaxe de concordância se mantenha inalterada nas duas construções, a ordem não é a mesma. Logo, é preciso considerar a distinção entre a ordem dos sinais, visto que tal ordenação se refere a diferentes modos de significar, em língua, o pensamento que se busca expressar.

Essa distinção entre identidade e determinação possibilitará a Soares Barbosa descrever os pronomes da língua portuguesa como uma classe de palavras

que, se por um lado, mantém identidade com o verbo – concordância da pessoa em relação ao tempo e ao modo, inscritos no espaço de suas flexões – por outro lado, esta identidade se faz o fundamento e a fundação da regência verbal. Por conseguinte, a concordância entre a pessoa, número (quantidade de pessoas implicadas na ação verbal que se busca representar) e no tempo do desenvolvimento da ocorrência da ação, consoante ao modo em que ela é situada pelo usuário, no fluxo das atividades de sua fala, possibilita determinar o regime dos verbos: transitivos ou intransitivos. Se intransitivos, a sua sintaxe será estabelecida pela relação com o nome substantivo na posição de sujeito; se transitivo, com dois nomes substantivos: um na posição de sujeito e outro na posição de objeto – o rei ama seu povo: o rei = amante; o povo = amado, o que desperta o amor do rei, ou vice-versa; se plural – Os reis amam seus povos – tem se a idéia de generalização, qual seja, todos os reis são amantes e todos os povos são amados. Contudo, a relação de regência está implicada pela ação desencadeada pelo amor, que focalizado como verbo implica, necessariamente, “o amante” e “o amado”. Já no caso da concordância entre o substantivo e o adjetivo, é preciso considerar que o suporte da regência é o substantivo e, para tanto, faz-se necessário recorrer à distinção estabelecida entre ambos.

Substantivos e adjetivos são classes do nome e se diferenciam por meio da concepção de substância e de acidente. Os primeiros são sinais que fazem remissão a objetos do pensamento e sub-existem em si e por si; os segundos também são sinais, mas fazem remissão à maneira de “ser” dos objetos do pensamento. Entretanto, os adjetivos podem ser tomados ou usados como substância ou como acidentes: o velho; homem velho = de idade cronológica avançada; velho homem = de idade mental avançada ou para se fazer remissão ao tempo de existência do homem na face da Terra: 300 milhões de anos. Mas, em se tratando de determinação, é sempre o substantivo o regente do adjetivo, razão porque a sua concordância é determinada pela escolha do substantivo e da sua flexão em número e gênero, e não ao contrário.

Afirma Soares Barbosa (1875) ser necessário considerar que o adjetivo tem duas significações: uma distinta “porém indireta, que é a do atributo, a outra confusa, porém direta, que é a de sujeito” (p.6). Desta feita, a classificação dos nomes em

substantivos ou adjetivos está fundada no princípio segundo o qual apenas o homem pode ser sujeito. Assim, designações como “O rei” não devem ser classificadas como substantivos quanto ao modo de significar, pois elas fazem remissão à concepção de acidente: aquele que rege, fonte da ação inscrita em reger. Por conseguinte, “o homem que reina” é rei; logo, o sujeito é o homem, qualificado pela ação de reinar. Nesses casos, esses nomes assumem a função do substantivo: sub-existem por si mesmos nos discursos, para significar individualmente o sujeito.

Esse funcionamento direto e indireto dos nomes adjetivos, para significar de forma explícita ou implícita o sujeito, é designado: “in recto”, quando o sujeito é explicitado ou expresso de modo claro, como é o caso de mulher branca; “in oblíquo”, quando o sujeito é explicitado de modo indireto. Assim, na relação substantivo-adjetivo, quando se afirma “a brancura da mulher”, tem-se o uso do “branco” deslocado da sua função original, ou seja, da sua função de adjetivo para a de substantivo. Nesse caso, a função “in oblíquo”, os adjetivos deixam de ser focalizados como acidentes para se converterem em substância “tão geral” ainda que continue funcionando como determinantes de seus substantivos: a brancura da mulher = aquela mulher que tem o branco como qualidade.

O princípio da determinação, associado aos modos de significar, faculta a esse gramático considerar que, dentre as palavras que respondem pela organização ou estruturação da frase, há aqueles que funcionam como determinantes do substantivo, como é o caso dos adjetivos, dos numerais e dos artigos e de alguns pronomes, por exemplo. Tal funcionamento, observado quanto aos modos de significar, o fazem de modo direto ou indireto. Esse posicionamento leva Soares Barbosa a estabelecer a categoria dos nomes que funcionam como “determinantes” dos substantivos, de modo a considerar, por exemplo, que a classe dos artigos deve ser diferenciada em “definido” - o(s) a(s) e “indefinido” – um(s), uma(s). Observa ser necessário diferenciar, no caso dos indefinidos, quando essas suas formas funcionarem como artigo, como numeral ou como “pronome” – e, para tanto, se faz necessário observar os modos de significar destas formas indefinidas:

Do primeiro d’estes dois artigos (o(s), a(s)) ninguém duvida. Porém do segundo duvida muitos, dizendo que é o mesmo que o numeral um, ou que o determinativo vago um certo (quidam). É verdade que elle tem também estas acepções e usos. Porém quando elle exprime ou a unidade numeral ou a unidade de um individuo certo e determinado em mente, que não queremos nomear nem determinar, então não é artigo, e só o é quando toma o nome commum individualmente sem o aplicar a um indivíduo ou a um mais que aos outros. N’este sentido é que lhe damos plural, o qual não tem nem pode ter como numeral. (SOARES BARBOSA, 1875. p.100)

A exemplificação dada pelo autor aponta para o fato de que a análise gramatical desses usos deve atribuir relevo àquilo que o usuário quer fazer significar pelo seu modo de dizer. Assim, diante de uma expressão do tipo: “um homem da corte tem mais espírito e riqueza que um aldeão”, é preciso considerar que a forma “um” não está funcionando para fazer remissão a um homem qualquer, concebido genericamente, de modo a significar “Todo e qualquer ser humano”, pois o fato de ele ser da corte, restringe a concepção de que pertence à corte. O fato de se poder substituir “um” por “o” = aquele que pertence à corte, não assegura que essas formas estejam funcionando como artigo, mas como determinativos de “pessoa”: aquela de que se fala e, nesses casos são determinativos pessoais. Desta feita, o gramático chama a atenção do seu leitor para o fato de não se dever considerar apenas as formas das palavras, mas o conteúdo que essas formas arrastam consigo, em relação ao seu funcionamento, pois é este que aponta para os diferentes modos de significar. Logo, quando se trata de diferenciar artigo de pronome, cujas formas se assemelham, esse é o critério a ser considerado.

Os pronomes pessoais, portanto, não se deixam descrever por um único critério, pois a identidade das diferentes formas pronominais exige que se privilegie não só a associação entre forma-função, mas tambémmodos de significar.

Estabelecidos os critérios, acima, os pronomes pessoais são descritos como determinativos pessoais quese classificam em primitivos e derivados e são definidos em relação às pessoas do discurso e às funções do substantivo e do adjetivo: “os determinativos pessoais são uns adjetivos que determinam os nomes a que se referem, pela qualidade do personagem ou papel que fazem no ato do discurso, ou da propriedade e posse relativa às mesmas personagens”, (p.104).

Considera Soares Barbosa que os papéis representados por uma ou mais personagens no ato discursivo são três: o papel daquele que fala – a primeira pessoa, representado em língua pelo “eu” ou “nós”; o papel daquele com que se fala, representado em língua pelo “tu” ou “vós”, e o papel daquilo de quem (que) se fala, representado em língua pelo ele (a) ou ele(s) (as).

A língua portuguesa, segundo esse gramático, tem onze pronomes pessoais determinativos, dentre os quais seis são primitivos – aqueles que se referem a apenas uma pessoa – eu e nós; tu e vós; ele e eles ou ela e elas, para o singular, ou para o plural, respectivamente. O pronome “se” também está inserido na classe dos “primitivos”; contudo, sempre empregado na terceira pessoa para o singular ou para o plural, é designado pronome reflexo ou recíproco. Os derivados são em número de cinco: meu(s), minha(s); teu(s), tua(s); seu(s), sua(s) para o singular ou para o plural, respectivamente, e, quando se fala de muitas pessoas, têm-se: nosso(s), nossa(s) – para a primeira pessoa, aquela que fala – e vosso(s), vossas(s) – para a segunda pessoa, aquela com quem se fala: singular e plural, respectivamente.

Observa-se que, de modo geral, todos os pronomes são determinativos pessoais, quer sejam primitivos ou derivados; contudo, apenas os primitivos são declináveis, segundo Soares Barbosa, e “têm casos por conseqüência”. (p.105), entretanto, opta por não adotar o ponto de vista dos gramáticos latinistas, mas aquele dos gramáticos das Línguas modernas para quem os casos latinos têm acepções particulares. Assim, abandona o tratamento fundado nas declinações por meio de casos e passa a atribuir relevo:

às diferentes relações que um mesmo nome pode tomar para se ligar com outra palavra no discurso, que sejam significadas pelas diferentes terminações ou casos dentro do mesmo número, quer pelas diferentes preposições que se lhe ajuntam em ambos o números para substituírem os mesmos casos. (SOARES BARBOSA, 1875. p.105).

Assim, elege o critério das “relações” ou da sintaxe para propor que a frase portuguesa é ordenada pelo: a) sujeito – palavra que, por sua relação com outros expressa o agente, ou o sujeito do verbo, é equivalente ao caso nominativo; b) atributo – palavra que expressa, na sua relação com as demais, o atributo, ou o que se afirma do sujeito; c) o complemento restritivo do nome – palavra que, precedida

de preposição, restringe a significação do nome que o antecede para restringir-lhe a significação (genitivo); d) complemento objetivo do nome (acusativo) – palavra que se faz, na sua relação com o verbo, objeto imediato da ação designada pelo verbo; e) complemento terminativo, f) complemento circunstancial – acusativo, dativo) – palavra que, precedida de preposição, expressa uma circunstância verbal. (p.105)

Os pronomes primitivos, segundo esse critério de ordenação, exercem todas essas funções, conforme a síntese apresentada abaixo, referente a descrições propostas pelo gramático, quais sejam:

a) na ordenação estrutural da ação, referentes ao fato de eles serem empregados, a.1) na posição ocupada pelo sujeito, destituídos de preposição; a.2) no modo imperativo, eles serem empregados após o verbo (fala tu), a.3) em quaisquer dessas posições ou funções, sempre pressuporem uma determinação individual da pessoa ou do papel que cada uma delas desempenha no discurso; b) embora plurais, caso de “nós” e “vós”, poderem ser usados no singular: “(...) quando os prelados falam em nome da sua Igreja, ou por modéstia, quando alguém quer comunicar com outros seus louvores, é quando um escritor quer fazer sua obra comum com o público para quem a destina” (p. 108).

Os estudos desse gramático apontam ser necessário considerar - para o estudo das classes de palavras do discurso e especificamente, no caso dos pronomes entre as demais - o fato de que qualquer processo classificatório não pode estar centrado na palavra isolada. Assim sendo, é preciso atribuir relevo às relações estabelecidas entre as palavras selecionadas e ordenadas entre si, de modo a fazerem remissão aos modos de raciocinar, de significar. A seleção dos elementos lexicais, portanto, não são aleatórios, mas orientados pelo que se busca dizer, por meio de atos de fala, o que justifica a seguinte definição de gramática proposta pelos gramáticos gerais: “A gramática é a arte de falar. Falar é explicar seus pensamentos por meio de sinais que os homens inventaram para esse fim (...) Esses sinais eram os sons de vozes.” (p.XXIII - Gramática Geral e Razoada ou Gramática de Port Royal).

Por conseguinte, os estudos gramaticais são aqueles que se voltam para o produto das atividades de fala, fundados no uso adequado da língua, de modo a facultar a compreensão da linguagem como processo que desencadeia ações, inscritas nos atos de fala.

Os pronomes, desse modo, são sinais que se remetem às vozes por meio das quais os homens constroem os seus discursos, dizem o mundo por eles representado uns para os outros, para estarem uns com outros. (GUSDORF,1995). Essas vozes, evocadas pelos sinais lingüísticos, quando analisadas se inscrevem no fluxo das palavras empregadas. Analisar os pronomes pessoais é compreender as vozes que falam por meio das estruturas lingüísticas, sem dissociar estas estruturas de suas funções: significar o mundo representado em língua; logo, os estudos gramaticais não se reduzem à morfologia e à sintaxe, pois eles abarcam a dimensão semântica do que se diz em língua. Crê-se ser esse o ensinamento de Soares Barbosa, quando considera a relevância dos modos de significar para se analisar as funções das estruturas lexicais na dimensão das relações que ordenam o pensamento humano, por meio das formas da língua portuguesa: fato desconsiderado por nós, professores, quando nos propomos a ensinar gramática.

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