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1.2 SABERES DOCENTES

1.2.3 Os saberes docentes são personalizados e situados

Além de serem temporais, plurais e heterogêneos, os saberes docentes são personalizados, ou seja, é difícil dissociar os saberes das pessoas e sua experiência. Eles também são situados, construídos e utilizados em função de uma situação de trabalho particular e nela ganham sentido. As situações de trabalho na escola realizam-se entre seres humanos, crianças e adultos que negociam e juntos constroem o significado de seu trabalho.

A seguinte fala da professora Laura, em nossa pesquisa, demonstra a construção de um saber experiencial em uma situação específica de trabalho: a construção de uma rotina de trabalho com seus alunos. Em seu relato transparecem os diferentes segmentos presentes na construção de seu saber, especialmente as falas das crianças da sala. A prática de construir uma rotina de trabalho com a turma foi apresentada à Laura por uma colega de trabalho e a partir dessa partilha ela realiza diversas tentativas com as crianças do primeiro ano do primeiro ciclo. Ao final de um ano de trabalho a professora iniciante afirma que atingiu uma forma satisfatória de trabalhar essa questão com a turma, conforme constatamos em sua fala:

Em relação a essa coisa da rotina, ano passado o problema da rotina era comigo, como professora, eu não sabia... Eu custei a perceber a necessidade da rotina. Eu pensava: “Por que eu estou fazendo isso”? Eu não conseguia controlar a turma. Enquanto eu escrevia a rotina no quadro os meninos estavam bagunçando... Eu comecei a fazer a rotina, de anotar a chegada, a organização da sala, colocar as disciplinas em ordem, Matemática, Português, mas eu ia pedindo as crianças para me ajudarem: “Fulano fala para mim as letras que eu uso para escrever a palavra chegada”. Foi ficando um pouco melhor. Depois as meninas pediram para escrever a rotina e passaram a escrever a rotina, os colegas ajudavam, elas escreviam e depois a gente conferia para ver se estava tudo certo. Mas eu ainda não estava satisfeita com aquela rotina. Eu comecei a fazer o seguinte, eu colocava... “Ah, Português! O que nós vamos fazer agora em Português”? Vamos fazer isso, ótimo. Qual a próxima atividade? Não estava muito legal. Eu fui mexendo na rotina o ano todo. O problema com a rotina não era os meninos, era comigo. Eu não conseguia entender. Eu peguei um texto aqui em algum lugar, levei para mim, mas eu vou devolver, li aquilo lá sobre rotina e tal... E fiquei fazendo várias mudanças. Esse ano eu faço o seguinte: eu coloco lá a data, o dia da semana, chegada, organização da sala, Português. Debaixo de Português, eu coloco tudo que eu pretendo fazer. Aí o José [aluno] deu a idéia de cada coisa que a gente vai conseguindo terminar a gente coloca “ok” do lado. “Em Português fizemos tudo?” “Fizemos”. “O que nós não fizemos?” “Vai ficar para a próxima aula” (...) Está funcionando bacana lá na sala. Eu escrevo, mas a sala já não fica desorganizada, porque eles têm interesse em saber o que nós vamos fazer durante a aula. Então a rotina pelo menos para mim, já consegui absorver isso, essa necessidade e a praticidade de você ter a rotina.

Ao longo do ano Laura criou diversas estratégias4 para que tanto para ela quanto para as crianças houvesse um sentido naquela organização do tempo escolar: chamou alunos para soletrarem as letras das palavras, convidou alunas a escreverem a rotina no quadro, acolheu a sugestão de outro aluno etc. A professora também relata que leu um texto que a ajudou a pensar no uso da rotina em sala de aula. Notamos nesse relato a reflexão da professora sobre a própria prática, a atenção às falas das crianças, seu movimento de tentativa e erro. Segundo Nunes (2004),

É na prática do trabalho que o professor, além de desenvolver certezas “experienciais”, avalia os outros saberes retraduzindo-os e incorporando-os à sua prática, em categorias do seu próprio discurso. A experiência assim “filtra e seleciona os outros saberes; e por isso mesmo ela permite a(ao) s professor(a) s retomar seus saberes retraduzidos e submetidos ao processo de validação constituído pela prática cotidiana (Tardif et al apud Nunes, 2004 p. 51)

Segundo Gauthier e colaboradores (2006) os saberes docentes dependem das condições históricas e sociais nas quais os professores exercem sua profissão, pois estão ligados às condições concretas que inspiram os professores a produzirem soluções para os problemas que encontram. Com essa constatação, o pesquisador reafirma a realidade complexa da sala de aula, mas ele assevera que existe uma estrutura estável que possibilita estudar a sala de aula de forma rigorosa. Segundo o pesquisador, a sala de aula mantém uma estrutura estável desde o século XVII: um professor encarregado de ensinar certos conteúdos para um número de alunos, em um determinado período de tempo. Consequentemente, o ensino permite que estudos científicos identifiquem regras de funcionamento e em certa medida generalizem os resultados sobre os diversos aspectos da sala de aula.

Essa possibilidade de generalização é atestada pelas temáticas que emergiram da pesquisa

Profknow (2007): o desafio de se trabalhar com uma população estudantil cada vez mais

heterogênea, a indisciplina dos alunos e, por último, a perda de prestígio e respeito da sociedade pela profissão docente. As duas primeiras temáticas coincidem com as encontradas nesta pesquisa.

Os resultados dessas pesquisas oferecem indicações preciosas sobre os diversos aspectos da sala de aula; uma gama de informações úteis sobre a preparação e a apresentação do ensino e a gestão dos comportamentos; o que constitui um excelente instrumento reflexivo

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para o professor iniciante e experiente. Dado a complexidade da sala de aula e ao mesmo tempo a possibilidade de generalização e sistematização que ela comporta, Gauthier e colaboradores (2006) recomendam prudência nos usos de resultados de pesquisa sobre o ensino; o profissional é aquele que ao estar diante de uma situação complexa, munido de saberes "deve deliberar, julgar e decidir com relação à ação a ser adotada, ao gesto a ser feito ou à palavra a ser pronunciada antes, durante e após o ato pedagógico" (2006, p. 331).