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Após explicitarmos as características dos saberes docentes e como ocorreram as trocas nas reuniões para coleta de dados procuraremos discutir como estes saberes podem ser sistematizados em pesquisas do campo educacional e também nesta pesquisa. Algumas conseqüências decorrem de compreendermos o saber docente baseado na racionalidade de natureza argumentativa (Gauthier et al., 2006): 1) A racionalidade é definida como uma capacidade própria a cada agente, à sua faculdade de fornecer motivos, dar razões ou justificativas para seu discurso ou ação; 2) A capacidade de reflexividade de cada agente depende de sua capacidade de elaborar regras e procedimentos para orientar sua ação, fazer modificações e adaptações de acordo com as contingências da situação e fornecer razões para tanto. Essa capacidade de reflexividade pode ser apreendida, em nossa pesquisa, na fala da professora Fabiana:

Adorei essa professora aqui, vou usar essa estratégia! “Quem tem seis anos, sabe caminhar educadamente”! Adorei. Vou copiar mesmo! Agora, eu acho que a fala da professora C que afirma que “no primeiro ano é preciso explicitar até mesmo a hora de abrir o caderno, sentar na cadeira”, eu acho que não é só no primeiro ano não.

Fabiana mostrou-se animada ao conhecer uma nova estratégia para organizar o deslocamento de crianças de um espaço para outro, afirmou que iria colocar essa idéia em prática. Já a segunda afirmação, sobre a necessidade de explicitar direcionamentos para crianças do primeiro ano ela concordou, mas completou: “acho que não é só no primeiro ano não”. Fabiana endossou a estratégia, mas a completou; modificando-a e adequando-a à sua maneira. “Saber algo significa que el sujeto particular se apropia de los contenidos de

su medio, incorpora en ellos su propia experiencia, consiguiendo así llevar a cabo los heterogéneos tipos de acciones cotidianas” (Salgueiro, 1998, p. 32).

Durante as reuniões de coleta de dados, as professoras puderam retornar a um problema real da prática pedagógica, o que propiciou uma reflexão acerca da prática. O conceito de “prática reflexiva” é sustentado pelas discussões de Dewey (1959) e Schön (1997). Para

Dewey, o pensamento reflexivo origina-se no confronto com situações problemáticas e sua finalidade é prover o professor de meios para enfrentar essas situações. A reflexão oportuniza voltar atrás e rever acontecimentos e práticas e é necessária para criar condições de análise e crítica entre professores e possibilitar novos modos de trabalho coletivo dentro das escolas. Schön (1997) argumenta que a conversa reflexiva com outros participantes ou colegas é o centro da reflexão sobre a prática, e que essas conversas podem colaborar e contribuir para tomada de decisões, compreensão e troca de conhecimento e experiências.

Zeichner (2008) problematiza a inserção da prática reflexiva na formação de professores e, entre outros aspectos, salienta que existe pouca ênfase sobre a reflexão que acontece em comunidades de professores que se apóiam mutuamente e sustentam o crescimento do outro. O pesquisador salienta que ser desafiado e apoiado por meio da interação social é importante para o esclarecimento de crenças e ideais. Para Freire (2002), ensinar exige refletir criticamente sobre a prática; é pensando criticamente sobre a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. A fala da professora Lúcia, ao final de uma das reuniões de coleta de dados desta pesquisa, evidencia as constatações de Zeichner e Freire:

Na educação essas ferramentas são criadas, são inventadas, às vezes ali na hora da prática. É a razão pela qual eu acho ‘super legal’ esse trabalho, porque você traz à tona ferramentas que a gente cria para lidar com essas situações e que os colegas criam. Acho que nesse ponto tem duas questões fundamentais: a criação e o compartilhar. Nós criamos, mas compartilhamos pouco. Acho que esse momento da pesquisa é isso... compartilhar! (Lúcia).

A professora Lúcia destaca a criação e compartilhamento de saberes. Tardif e Gauthier subsidiam o próximo passo: a sistematização dos saberes. Para Tardif (2002), um dos objetivos de sistematizar os saberes da experiência é permitir que estes forneçam respostas ou pistas para as situações do dia-a-dia na escola. Para Gauthier e colaboradores (2006), outro objetivo da sistematização dos saberes da experiência é contribuir para a profissionalização do trabalho docente. “A importância das pesquisas sobre a determinação de um repertório de conhecimentos reside precisamente em revelar outros saberes validados pelas pesquisas e essenciais à atividade docente” (Gauthier et al. 2006, p. 185).

São considerados saberes a serem incluídos no repertório discursos, proposições e ações cujos agentes (pesquisadores e professores) podem apresentar razões que as justifiquem.

Para concretizar esse repertório, Gauthier e colaboradores (2006) ressaltam que pesquisadores precisam admitir que professores que atuam na Educação Básica possuem a capacidade de racionalizar sua prática e os professores devem aceitar que seu saber experiencial pode comportar lacunas. Salgueiro corrobora dessa afirmação:

El profesorado se apropia de saberes y prácticas históricamente construidos, deriva nuevas prácticas a partir de ciertos saberes o produce nuevos saberes en torno a las prácticas. Estos saberes, que se encuentran implícitos en las prácticas cotidianas de los enseñantes, quedan ignorados e infravalorados. Por eso me parece que hacerlos evidentes, explicitar su proceso de elaboración y, se es posible, sistematizarlos sería una tarea importante en la dirección de una integración entre los cursos de formación y la realidad escolar, entre la teoría y la práctica (1998, p. 19).

Verloop (2001) e Hiebert e colaboradores (2002) também defendem que o conhecimento prático seja público, representado de maneira a ser acumulado, compartilhado com outros membros da profissão e continuamente conferido e melhorado. Verloop (2001) afirma que as “rodas” de ensinar precisam ser reinventadas a cada nova geração, pois o conhecimento dos professores experientes nunca é totalmente comunicado aos professores iniciantes. Segundo esse autor, estabelecer uma base de saberes para o ensino não é somente uma condição para melhorar o status da carreira docente enquanto profissão, mas também é válido para colaborar na formação de novos professores.

Gauthier e colaboradores (2006) ressaltam, com pertinência, que os saberes docentes incluídos no repertório expressarão fatos (declarativos, denotativos) ou indicarão ações a serem realizadas (prescritivos, procedimentais), por serem em essência relativos ao ensino. A natureza normativa desses saberes gera por si só uma desconfiança, primeiro porque em pesquisa científica descrevemos, analisamos, postulamos, mas raramente recomendamos. O registro e análise desses saberes podem se tornar futuramente “senhas” para o ensino, podendo ser utilizados ou não. Refutamos, no entanto, a idéia de que os saberes aqui expostos poderão tornar-se “leis imutáveis do ensino” (idem, p. 189). Como Salgueiro (1998) entendemos que “hay que tener cuidado para no transformar estas situaciones de

enseñanza en modelos que sean adoptados” (1998, p. 261). Não é objetivo desta pesquisa

elaborar um manual para o ensino, mas sim contribuir com o campo da formação de professores por intermédio do registro dos saberes de um grupo de professoras, validá-los a partir da interação entre as docentes e confrontá-los com pesquisas acadêmicas.

Importantes interlocutores dessa pesquisa são os resultados de pesquisas empíricas realizadas em salas de aula nas últimas décadas que foram reorganizados no trabalho de Gauthier et al. (2006). Ao fazermos referência ao trabalho de Gauthier e colaboradores (2006) durante a análise dos dados, consideramos imbuídos nessa citação os resultados de pesquisas empíricas sistematizados por eles. Os resultados dos trabalhos de Salgueiro (1998), Vieira (2002), Borges (2004), Nunes (2004) e Zibetti (2005) também participam da construção e elaboração de um repertório de saberes docentes para o ensino. Essas pesquisadoras acompanharam e analisaram a produção de saberes docentes no interior da escola e os resultados dessas pesquisas são importantes interlocutores para este estudo.

Salgueiro (1998), por meio da realização de uma pesquisa etnográfica, buscou reconstruir o processo de constituição e apropriação dos saberes gerados na prática e, para tal, acompanhou a sala de aula de uma professora, em uma escola pública espanhola, durante um ano escolar. A pesquisadora conclui que o fazer cotidiano docente pode constituir-se com um suporte significativo para os currículos de formação dos novos professores, pois os saberes docentes são, em geral, ignorados e desvalorizados. Ela sugere torná-los evidentes, explicitar seu processo de elaboração e sistematizá-los.

A partir da observação diária e de entrevistas com os professores dos anos inicias do Ensino Fundamental em uma Escola Estadual Pública da cidade de Mariana, Minas Gerais; Nunes (2004) buscou revelar os saberes produzidos e praticados pelas professoras em seu cotidiano. A pesquisadora afirma que é na prática cotidiana que o saber da experiência se manifesta. Este saber é influenciado pelo clima institucional favorável e pelas contradições existentes no âmbito escolar. Zibetti (2005), ao utilizar também uma abordagem etnográfica, investigou os saberes presentes na atividade docente durante a fase da alfabetização. A pesquisadora estudou os processos de apropriação/objetivação e criação de saberes na prática pedagógica de uma alfabetizadora. Zibetti (2005) acompanhou a prática pedagógica de uma professora, durante um ano, e utilizou instrumentos de pesquisa como a observação participante, entrevistas, análise documental e fotografias para responder as seguintes perguntas: Que saberes são mobilizados pela professora durante seu trabalho com as crianças? Que elementos contribuem ou influenciam na constituição dos saberes da professora? Como ela lida com situações que a defrontam com o não-saber?

Vieira (2002), de uma maneira diferente de Zibetti, analisou professores em escolas para averiguar quais práticas pedagógicas são desencadeadas pelos atos de indisciplina dos alunos. A pesquisadora identificou e analisou a produção de saberes docentes construídos a partir dos desafios enfrentados pelos professores no cotidiano escolar. Borges (2004), por sua vez, interessou-se pela influência das disciplinas escolares na elaboração dos saberes dos professores do segundo segmento do Ensino Fundamental e investigou as seguintes questões: como os professores de 5ª a 8ª série concebem seus saberes profissionais, considerando que estes são fortemente marcados por uma orientação disciplinar? Qual é o peso, o significado e o lugar dos componentes disciplinares na edificação dos saberes docentes?

Bons professores deixam marcas e legados em seus alunos, mas quando deixam de exercer a docência levam consigo os saberes acumulados da prática. A pesquisa que busca revelar e validar um repertório de saberes vem exatamente em resposta a esse problema, para que os saberes adquiridos ao longo dos anos na prática pedagógica e na troca com professores não fique confinado ao professor e não seja perdido quando esse professor deixar de exercer a docência. “Além disso, uma jurisprudência privada é de pouca utilidade para a formação e profissionalização dos professores” (Gauthier et al. 2006, p. 187).

Baseados em pesquisadores de referência: Tardif (1991, 2000, 2002, 2007), Gauthier et al. (2006) e Shulman (1986) localizamos nosso objeto de pesquisa na racionalidade de natureza argumentativa, uma construção coletiva oriundo das trocas entre os agentes. Reconhecemos que os saberes das professoras participantes desta pesquisa provêm de diversas fontes, são influenciados pelo tempo e contexto de trabalho e nele ganham sentido. Estes saberes podem manifestar-se nas trocas entre as docentes como conselhos, proposições sobre e para a prática pedagógica. As trocas assemelham-se a partilhas, pois nem sempre ocorrem como um processo de mão dupla, no qual os sujeitos oferecem e recebem ajuda e conselhos. São considerados saberes a serem sistematizados nesta pesquisa discursos, proposições e ações cujos agentes podem apresentar razões que as justifiquem.

2 O CENTRO PEDAGÓGICO E O NÚCLEO BÁSICO