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Capítulo 4: Tateando o livro didático com lentes focais e analisando suas imagens – O

4.4. Análise individual das imagens

4.4.13. Página de abertura 13

O título desta página de abertura de unidade se intitula “Você é mais humano que eu?”. Lido isoladamente nos convida a refletir sobre questões ligadas aos Direitos Humanos120, numa perspectiva que nos faz pensar nas díspares situações vivenciadas e em zonas de pobreza, marginalidade, falta de oportunidade, tratamentos sub-humanos dispensados a muitos pelo mundo afora, tendo como parâmetros do tipo: gêneros, questões de ordem étnico-racial, questões linguísticas121122, entre outras.

Quando passamos os olhos rapidamente sobre a página como um todo, logo confirmamos a hipótese levantada inicialmente com a leitura do título, onde reconhecemos quase instantaneamente se tratar de grupos minoritários, como é o caso das imagens que nos reportam aos lugares sociais/laborais ocupados pelas pessoas pertencentes às castas inferiores na Índia, sobretudo quando temos acesso às legendas ao lado; ao ativismo político de Martin Luther King e seus seguidores, em prol do reconhecimento dos direitos civis dos negros; às condições de desprezo, indiferença e violência em que têm se encontrado os indígenas brasileiros, desde que aqui chegaram os portugueses. As imagens aparecem de cima para baixo, nesta mesma sequência em que acabamos de mencionar.

Essas imagens são distribuídas pela página da seguinte forma: na parte superior, do lado direito, encontramos a imagem de um varredor de rua numa cidade na Índia, tendo como informação adicional, no lado esquerdo, um pequeno texto verbal. Ele serve de legenda, segundo a qual às castas inferiores são reservados os trabalhos de menos prestígio social. Em seguida, temos a imagem de Martin Luther King, no centro da página, em situação de liderança contra atitudes segregacionistas. Um evento que marcou a história do ativismo em favor da negritude por Rosa Parks123 nos Estados Unidos é informado pelo texto verbal no lado direito. Esta imagem, especificamente, está sobreposta em relação às outras duas imagens, a superior retratando o indiano varredor de rua e a inferior, em que aparecem índios

120 Quando nos referimos aos Direitos Humanos, queremos dar ênfase à concepção estampada logo no

preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que defende: “Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem.” (ONU, 1948)

121 A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (DUDL), em proclamação preambular, admite que “A

situação de cada língua, tendo em conta as considerações prévias, é o resultado da confluência e da interação de uma multiplicidade de fatores: político-jurídicos; ideológicos e históricos; demográficos e territoriais; econômicos e sociais; culturais; linguísticos e sociolinguísticos; interlinguísticos; e,finalmente, subjetivos.” (UNESCO, 1996)

122 A DUDL objetiva, também em seu preâmbulo, “Numa perspectiva cultural, tornar o espaço de comunicação

mundial plenamente compatível com a participação equitativa de todos os povos, de todas as comunidades linguísticas e de todas as pessoas no processo de desenvolvimento.” (UNESCO, 1996)

123 Considerada “a primeira dama dos direitos civis” nos Estados Unidos. No Alabama, ela foi compelida pelo

brasileiros da Amazônia, em situação de protesto contra as más condições em que vivem, conforme a legenda. Esta última imagem ocupa a parte inferior da página, à esquerda.

Um olhar mais atento desvela os significados que subjazem à composição desta página, fazendo perpetuar alguns posicionamentos críticos que temos assumido nesta tese, que assinala ser a Inglaterra e, principalmente, os Estados Unidos os principais países que encontram visibilidade dentro do livro didático de língua inglesa no Brasil, desconsiderando as demandas e a realidade do cotidiano com a língua e suas variadas culturas, em âmbito global, que pugnam pelo ensino de inglês numa perspectiva pluricêntrica, sem, portanto, fazer apelos quaisquer que destaquem estes ou aqueles países como representantes simbólicos da anglofonia.

Podemos observar que a ocupação central da imagem de Martin Luther King favorece um destaque, põe em evidente saliência o ativismo norte-americano em detrimento das demais imagens. Além da centralidade ocupada, atentemos para duas outras razões que intensificam sua visibilidade, conforme pontua Trajano (2012, p.04) quando fala que a saliência, “[...] diz respeito à maneira como os elementos participantes são produzidos para atrair a atenção dos “vierwers” em diferentes graus e realizados por diversos fatores [...]”. Assim, essa imagem é mais saliente, tendo em vista que:

1. A cor amarela possui uma maior saturação em relação ao verde da imagem superior e ao vermelho da imagem inferior.

2. O amarelo que contorna a moldura retangular da imagem central sombreia os quatro lados da forma; diferentemente das demais imagens, que parecem menos salientes, em virtude de terem um ou dois lados completamente contornados.

Sem almejar, em hipótese alguma, macular ou invalidar o ativismo em favor dos movimentos negros, queremos, porém, mostrar que a composição da página é tendenciosa sim, sugerindo que essa imagem é a mais saliente. Ademais, o enquadramento, a centralidade e a superposição desta imagem, juntas, em relação às demais coordenam a visibilidade e a lógica que ideologiza exclusiva e afirmativamente a hegemonia estadunidense.

Algo que permanece nos inquietando são as possibilidades de escolhas no momento de compor os textos visuais. Observemos que, para evidenciarmos uma suposta ‘diversidade’, podemos lançar mão de imagens diversas, inclusive trazendo imagens de países cujas línguas nativas não são o inglês, como foi mostrado nessa página de abertura.

Entretanto, não é possível rejeitarmos o fato de que a banda só toca conforme a orientação do maestro. Ou seja, essa metáfora nos mostra que, embora haja imagens em

referência à Índia e ao Brasil (tocadores da banda), os ecos estadunidenses (maestro) ressoam fortemente, delineando, assim, sua forte influência sobre o ensino e aprendizagem do inglês, marcadamente, se virarmos nossa atenção para o livro didático.

A imagem da Índia como país representante do círculo externo, a do Brasil como representante do círculo em expansão, além da dos Estados Unidos como representante do círculo interno, nos permitem, se estivermos desavisados, enxergar uma suposta diversidade no livro didático. Porém, as estratégias composicionais, se bem manuseadas, podem desconstruir essa pretensa policromia linguístico-cultural.

Quisemos entender, desde o instante em que pusemos os olhos sobre o título da unidade, as suas pretensões. Por fim, percebemos que, tendo como aliadas as manipulações sintáticas que coordenam a ocupação das imagens dentro da página, a resposta a que deveriam chegar os leitores com menos expertise, inevitavelmente, recairia sobre a imagem que permanece fazendo dos Estados Unidos um exemplário prototípico da anglofonia.