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A família, por ser a primeira instância formadora do indivíduo, tem um papel de grande importância no processo de letramento deste. Na pesquisa realizada por Mendes (2012), por exemplo, a autora comprovou, por meio de relatos autobiográficos de seus alunos, que a família não obteve papel de destaque no processo de letramento, devido à não existência de incentivo para que os alunos se interessassem pela escrita antes e durante a Educação Básica. Na pesquisa da referida autora, o papel da família figura ao lado da escola como sendo um dos responsáveis pelas dificuldades que os alunos enfrentam no presente em relação à escrita. Diferentemente do que ocorreu na pesquisa de Mendes (2012), os sujeitos que participaram desta pesquisa afirmaram, por meio de seus relatos pessoais, que suas famílias tiveram participação significativa, com exceção de apenas um aluno, o qual afirma que o seu interesse pela escrita ocorreu por seu próprio interesse, como ficará evidente nos excertos selecionados abaixo.

O primeiro trecho selecionado foi o do relato autobiográfico do estudante A09, no qual é possível notar que a participação familiar se dá por meio do incentivo de desenvolvimento da escrita, através de exercícios de caligrafia, o qual é compreendido como sendo um gênero recorrente da escola.

[1] [AR09] A leitura e a escrita foi algo cultivado e estimulado ao longo da minha vida. Desde o início da minha infância já era incentivada a aprender ler e a escrever. O meu pai que sempre colocou a educação em primeiro lugar apresentou-me as primeiras letras e números através de livros de caligrafia que ele comprava. Ele propunha muitas atividades educativas quando estava com tempo livre para que eu aprendesse a escrever, ou melhor, identificar as letras do alfabeto, e os números.

O relato da estudante nos mostra como a caligrafia, um gênero típico da escola, sobretudo nas primeiras séries, é legitimado no seio familiar, haja vista o incentivo por parte do pai da aluna. Para o familiar em questão, o desenvolvimento da escrita consiste no aprimoramento do exercício da caligrafia.

Do mesmo modo, selecionamos um excerto do relato da aluna A01 no qual ela expõe de que forma a participação familiar incentivou sua inserção na escrita:

[2] [AR01] Sua mãe e seu pai lhe incentivavam de modo particular a cultivar esse gosto por ir à escola, comprando todo o material necessário para que seu desejo de estudar só aumentasse. Além disso sempre que lhes sobravam tempo, estudavam juntos na cozinha de sua casa

Nos excertos de AR09 e AR01, evidenciamos que a família exerceu um papel de destaque no processo de letramento, seja através de procedimentos tradicionais, como no relato por meio do uso de livros de caligrafia, ou, como no caso do AR01, em que os pais contribuíram comprando o material necessário e desenvolvendo as atividades escolares de forma conjunta.

Tal como nos dois excertos selecionados, identificamos no relato do aluno AR04 a participação da família em sua inserção na escrita, materializada pelas ações de sua mãe:

[3] [AR04] Eu entrei na escola e no decorrer disso minha mãe ia ensinando, ia reforçando em casa. Por volta dos cincos anos eu fui alfabetizada[...] Meu pai era bom em redação e me dava uns toques. Lia meu texto e dizia o que está ruim.

No excerto 3, notamos a valorização do conhecimento da redação, algo que não é visto de forma negativa, pois comprova a participação do familiar em seu aprendizado, podendo ser considerado como sendo um agente de letramento. Dessa forma, fica claro que em todos os três casos selecionados percebemos que a família propiciou um ambiente favorável para o aprendizado de práticas de escrita. O incentivo da família também se faz presente nos três excertos selecionados abaixo, extraídos das entrevistas:

[4] [A06] Minha mãe quando eu era criança ela gostava muito de ficar lendo para mim histórias, contos e depois de um tempo como tinha quatro filhos ela não podia e a gente dormia em horários diferentes aí depois de um tempo ela pediu para eu começar a ler para ela e depois de um tempo eu comecei a ler sozinha. E nesse processo de ficar lendo sozinha eu fui me interessando cada vez mais pela leitura. [...] Minha família teve um papel fundamental.

[5] [A03] Minha mãe me incentivou muito a ler. Ela já lia bastante. Meu pai não lia muito assim, só para trabalho mesmo. E dizia muito que eu devia ler. Ela comprava livros, contos e mandava eu escrever. Ela me ensinava a escrever. Eu escrevia sem paragrafo nenhum porque era tudo pensamento. Eu escrevia sem pontuação e ela mandava eu consertar. Ela era bem sincera.

[6] [A07] Eu sempre tive a ajuda de minha mãe. Então era muito fácil a leitura. Eu tinha vários livros de leitura. Sempre com participação de meus pais, me auxiliando na leitura. Tinha momento de leitura. Eu lia com gosto para ler para minha mãe e para meus pais, as vezes tinha a participação de meus avós.

Em outros relatos, notamos que a família também ocupa um papel de destaque, mesmo diante de dificuldades financeiras, como fica evidente neste trecho:

[7] [AR10] A lembrança mais forte que tenho dessa parte da minha infância foi a de morar numa casinha que mal cabia nós quatro [...] e que tinha uma escolinha em frente à casa. Era uma escola pequena, mas para min, no auge dos seus 2 anos de idade era um castelo. Nessa época meu irmão tinha seus 4 anos de idade e meus pais decidiram que era hora do mesmo ir para a escolinha, também quis ir, mas meus pais não tinham condições financeiras, para manter dois filhos na escolinhas [...] Minha mãe teve a brilhante ideia de ensinar o pouco que ela sabia para mim, então ela pediu uma cadeira de madeira antiga para o diretor da escola, que cedeu-a, comprou um lápis, e um caderninho, para ensinar-me a ler a escrever.

Observamos no excerto 7 que, diante das dificuldades de cunho financeiro, a mãe da aluna se propôs a ensinar o que sabia, para que sua filha não ficasse sem ter acesso às primeiras letras. Ao narrar este episódio no relato autobiográfico, a estudante em questão mostra o quanto se sente grata à mãe por este ensinamento. Esse relato chama novamente atenção para a importância que a família pode exercer no processo de letramento, sobretudo, por partimos da concepção de que letramento vai além do que é ensinado na escola, pois diz respeito a todas as práticas sociais que envolvem a escrita em diferentes contextos.

Diferentemente dos outros alunos, o sujeito A05 não atribui um papel de destaque à família. Para ele, o despertar da leitura e da escrita é uma característica sua, algo inerente, apesar de o trecho de sua entrevista permitir outra interpretação:

[8] [A05] Eu acho que é algo inerente a mim mesmo, porque meus pais não liam muito. Meu pai só lia jornal. Minha mãe também lia jornal. Mas, enfim. Mas, meu pai me levou uma vez à uma Bienal de Livros foi quando aí eu conheci aquele mundo. Então, as vezes ele comprava um livrinho para mim para eu ler. Mas, o interesse sempre partiu de mim. De pegar na biblioteca, locar o livro e começar a ler. Foi de mim, mesmo.

Embora o participante A05 afirme que o gosto pela leitura e a escrita não foi proporcionado pela família, o seu relato dá indícios para outra interpretação. No momento em que o aluno sinaliza que os pais tinham costume de ler jornais, podemos inferir que esta prática serviu de modelo para a sua formação, além do fato de ter sido levado à Bienal de Livros pelo pai, visto que é um ambiente que proporciona o contato com a leitura e a escrita. Estas informações nos levam a crer a importância que a família pode ter exercido em seu processo de letramento, mesmo que não de um modo explícito ou direto, uma vez que as práticas dos pais comumente servem de modelo para os filhos.

Diante dos relatos apresentados, acreditamos que a família dos participantes exerceu um importante papel em seu processo de letramento, embora tenha sido observado que algumas práticas, a exemplo do uso da caligrafia para facilitar o aprendizado da escrita, bem como o incentivo da elaboração das redações de forma mecanicista, sejam identificadas como sendo tradicionais, não refletindo, portanto, a língua em uso. Por outro lado, durante o estágio, devido a um contato mais próximo com os participantes da pesquisa, foi possível observar que estes apresentavam boas referências de leitura, proporcionadas pelo incentivo familiar. Assim sendo, podemos interpretar que as dificuldades que são apresentadas em termos de produção textual, em parte, estão relacionadas com as práticas desenvolvidas no contexto familiar. Na próxima seção investigaremos o papel da escola no processo de escrita, com vistas a apresentar outro contexto para uma possível interpretação do quadro de dificuldades apresentados pelos alunos.