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Perfil do modelo consensual da Lei nº 9.099/95

4.3 JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS (LEI Nº 9.099/95)

4.3.1 Perfil do modelo consensual da Lei nº 9.099/95

Nos anos 1990, em meio à crise do Estado-providência, da superlotação das prisões, da sobrecarga processual, registrava-se a existência de uma “litigiosidade reprimida” no corpo social que não chegava às instâncias de controle, haja vista o baixo potencial ofensivo das infrações, da sua reduzida expressão econômica, dos interesses da não estigmatização da vítima, das relações de inevitável proximidade e continuidade com o agressor e da falta de confiança no sistema de justiça. Todos esses fatores contribuíram para justificar a não movimentação da pesada máquina judiciária.344

344 FERREIRA, 2006, p. 17.

Nesse exato cenário, no Brasil, antes da Lei nº 9.099/95, as infrações de menor gravidade, em especial, as situações mais frequentes de violência interpessoal, não eram recepcionadas pelo Judiciário, chegando, às vezes, às delegacias de polícia, mas, ali mesmo, eram arquivadas. Aliás, na atualidade, esse fenômeno ainda ocorre, apenas em menor proporção. Evidentemente que, à época quando essas infrações eram denunciadas pelo Ministério Público ou pelas partes ao Judiciário, em sua grande maioria, prescreviam antes do seu julgamento, o real acesso à justiça era inexistente para esse tipo de demanda.

A Lei nº 9.099/95, decorrente de iniciativas do Executivo e do movimento internacional de acesso à justiça345, disciplinou os Juizados Especiais Criminais e introduziu o conceito de “infrações de menor potencial ofensivo”346, trazendo uma importante contribuição para viabilizar o acesso de contingentes expressivos de infrações penais de menor porte que não eram atendidas pela Justiça brasileira, por falta de estrutura para receber esse tipo de demanda.

Os Juizados Especiais Criminais, com suporte nos mecanismos de despenalização e de informalização processual, foram apontados como tentativa para solucionar o problema do processo penal tradicional. Com um microssistema dentro do Poder Judiciário, voltado para resolução de infrações de menor densidade jurídica, ou seja, menos complexas, com regras procedimentais simplificadoras, buscou-se um paradigma diferenciado, para proporcionar mais efetividade e legitimidade ao processo penal.

Nesse sentido, Silva Júnior347 afirma que os Juizados Especiais é a única proposta do constituinte, a partir da República, de modelo judicial de efetiva “modificação estrutural” do Judiciário, já que adota um “perfil político-filosófico” compatível em aproximar as classes sociais mais carentes das instâncias judiciais, com a finalidade de melhor satisfazer, adequadamente, os interesses dos jurisdicionados.

O autor mencionado348 considera, ainda, o modelo proposto para o juizado criminal uma ruptura com a processualística clássica. Eis que prevê a existência de jurisdição voluntária como fase precedente à etapa contenciosa do processo criminal. Isto porque dispõe de duas fases, uma preliminar, voltada à solução consensual e, a outra, contenciosa, para o caso de insucesso da fase anterior, resultando em processar a persecutio criminis.

345 AGUIAR, 2009, p. 61.

346 Na primeira versão, o art. 61 da Lei n° 9.099/95 definia como infração de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima em abstrato não excedesse um ano, excluindo aqueles que fossem disciplinados por procedimentos especiais. Com o advento da Lei n° 10.259/01, que institui os Juizados Especiais Federais, o limite anteriormente estabelecido foi alterado e passou a ser de dois anos, sendo, posteriormente ratificado pela Lei n° 11.313/06, que modificou a redação do art. 61 já mencionado. 347 SILVA JÚNIOR, 2015, p. 292.

Nesse contexto, o procedimento adotado para o microssistema criminal (Lei nº 9.099/95), se dá com o comparecimento da vítima ou o seu representante legal à Delegacia que narra o fato delituoso a ser reduzido a TCO, com a dispensa do inquérito policial. Após a sua lavratura, a polícia remete ao Juizado Especial, em regra, certificando da intimação imediata do autuado e do ofendido, para comparecer em juízo, no dia e hora designados (art. 69). A audiência preliminar será presidida por um juiz ou conciliador, sob sua orientação, com a presença do representante do Ministério Público (art. 73). Deverão estar presentes ainda o autuado acompanhado de advogado, a vítima e, se possível, o responsável civil349 (art. 72). Importa registrar que o autuado deve estar acompanhado, obrigatoriamente, de advogado, sob pena de ser-lhe nomeado defensor. Nesse ato, possibilita-se a autocomposição dos conflitos, através da composição de danos civis e da transação penal350 (arts. 72 e 76). No caso de restar frustrada a via conciliatória, oferece-se a acusação oralmente, pela denúncia ou queixa (art. 77), aprazando-se data para audiência de instrução e julgamento (AIJ).

O procedimento criminal segue com a adoção do rito sumaríssimo (art. 77 e ss.). Na audiência de instrução, o juiz renova a fase conciliatória; caso não obtenha êxito ou não seja possível essa via, segue com a apresentação da resposta à acusação, pelo defensor. Com o recebimento da denúncia, surge a oportunidade para o acusado e seu defensor se manifestarem sobre a proposta da suspensão condicional do processo, e quando da sua aceitação, encerra-se a audiência por outra modalidade de consenso (art. 89). Na hipótese de recusa da proposta ou do acusado não fazer jus ao benefício, prossegue-se com a oitiva da vítima, testemunhas de acusação e defesa e, por último, com o interrogatório do acusado. As partes oferecem as alegações finais e, após, é prolatada a sentença. A parte sucumbente pode oferecer recurso para a Turma Recursal, composta por três juízes (art. 82).

Os juizados criminais são norteados, assim, tanto na esfera policial (lavratura de TCO), quanto na fase preliminar e no rito sumaríssimo, pelos princípios da oralidade, informalidade e simplicidade, economia processual e celeridade.

No princípio da oralidade, prevalece a forma oral sobre a escrita no processo, sem a exclusão desta. A concentração de atos encontra-se na previsão de que tudo seja resumido a duas audiências, uma preliminar e outra de instrução e julgamento, esta quando já tiver instaurado o processo. Os depoimentos da vítima e das testemunhas e o interrogatório podem ser gravados. Apenas, os atos essenciais são objeto de registro, havendo flexibilidade nas

349 “Quando o responsável civil for outro que não o autor da infração penal, aquele deverá ser cientificado para comparecer à relação processual e assumir o seu ônus.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n° 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 27).

350 Quando cumpridas as medidas restritivas decorrente da transação penal enseja a absolvição, em face da extinção de punibilidade. (SILVA JÚNIOR, 2015, p. 294-295).

audiências e nos atos de comunicação. A denúncia e a queixa são apresentadas verbalmente, sendo reduzidas a termo. A defesa e os debates finais, igualmente, são orais, podendo ser reduzidos a termo ou não.351

O princípio da informalidade e simplicidade combate o excesso de formalismo dos atos que não traz resultado útil e diminui a quantidade de material que é incluso nos autos sem prejudicar a tutela jurisdicional. Os atos processuais são válidos sempre que seus objetivos forem alcançados, via de consequência, não se pronunciará qualquer nulidade sem que se tenha demonstrado o prejuízo (art. 65, § 1º). Exemplifica-se por: i) não haver necessidade da elaboração de inquérito policial, devendo a autoridade policial lavrar um TCO; ii) não se exigir o exame de corpo de delito para o oferecimento da denúncia, admitindo-se a prova da materialidade por meio de boletim médico (art. 77, § 1º); iii) dispensar o relatório para a sentença.352

O princípio da economia processual e celeridade busca o máximo de resultado com o mínimo possível de atos praticados, bem como agilidade no procedimento para prestar a atividade jurisdicional no menor tempo possível (duração razoável do processo). Exemplifica- se por: i) haver previsão de composição civil e transação penal a fim de se evitar o processo; ii) na audiência de instrução e julgamento serão produzidas todas as provas, havendo concentração de atos; iii) nenhum ato será adiado e, para tanto, o juiz pode determinar a condução coercitiva de quem deva comparecer.353

Nos conflitos em que envolvem relações interpessoais, assume uma peculiaridade importante, o não uso da celeridade extremada, ou seja, não fazer a audiência imediatamente após o fato delituoso, o que pode trazer muitas vantagens para uma boa resolução do conflito. É importante haver um hiato de tempo, entre a situação conflituosa e o reencontro no Judiciário, para a busca de uma solução consensuada e harmônica. Isto se dá porque o tempo é um aliado importante, para minorar a raiva, o espírito de vingança e o ressentimento da vítima, podendo trazer amadurecimento da questão experimentada.

A dinâmica da Lei nº 9.099/95, portanto, implantou regras procedimentais simplificadoras e menos burocráticas, recursos limitados e sistema de declaração de nulidades que privilegia a finalidade do ato e não o formalismo.354 Essas regras deveriam avançar para o processo penal comum, sem prejuízo das garantias conquistadas.

351 BEZERRA, Virginia Rêgo. Parte II – Juizados Especiais Criminais. In: ALENCAR, Hadja Rayanne Holanda de; BEZERRA, Virginia Rêgo (Coords.). Manual expresso dos juizados especiais cíveis e criminais. Natal: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, 2010.

352 Ibid.

353 BITENCOURT, 1999, p. 27. 354 LEITE, 2013, p. 152.

A referida lei firmou nas disposições gerais, entre seus propósitos, a busca da reparação do dano suportado pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62). Esses dois aspectos são de grande relevância por fundamentar a política-criminal adotada para os Juizados Especiais Criminais,355 não somente em resolver a lide advinda da infração, mas também de compor o litígio da esfera cível.356

A valorização da vítima foi destacada, como um dos objetivos que orientou a Lei nº 9.099/95, pelo fato de a reparação do dano passar a ser uma obrigação natural, decorrente da prática da infração penal. Essa obrigação pode ser tanto do infrator como do responsável civil, simplificando a busca da reparação pela perda sofrida com o crime ou contravenção penal.357

Outro objetivo visado pela lei foi a aplicação da pena não privativa de liberdade. A proposta formulada, em sede de transação penal, não pode dispor de pena de prisão, ainda que reduzida, por consistir numa fase administrativa em que não há condenação. Aliás, essa fase situa-se fora do Direito Penal punitivo, de seus esquemas e critérios.358 Por fim, convém considerar que houve o cuidado da transação penal não repercutir na vida do autuado, gerando consequências prejudiciais, como a possibilidade dos efeitos da reincidência.359

A Lei nº 9.099/95 estabeleceu esse modelo de maior proximidade e intensidade relacional, com estrutura alternativa à punição, por limitar o dever-poder de punir estatal e por consistir num instrumento de despenalização, destacando-se pelo estímulo ao consenso, por meio dos institutos da composição de danos civis, transação penal e suspensão condicional do processo.

Instituiu-se, desse modo, uma nova forma de garantir direitos e solucionar conflitos que possibilitassem a democratização do acesso à justiça, contemplando, atualmente, todas as infrações de menor gravidade, seja contravenções penais seja crimes com pena em abstrato até dois anos de privação de liberdade, cumulada ou não com multa. Foram excluídos os crimes de violência doméstica ou familiar contra a mulher, ainda que o limite em abstrato não ultrapassasse dois anos, por previsão expressa da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). A respeito desse assunto, ver o item 4.5.1.

355 LEITE, 2013, p. 152.

356 SILVA JÚNIOR, 2015, p. 293. 357 BITENCOURT, 1999, p. 27.

358 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei n° 9.099/95, de 26.09.1995. 4. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei 10.259/2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 76.

Para as infrações de menor potencial ofensivo, a legislação nacional adotou as medidas alternativas (para fase conciliatória) e penas alternativas (para a condenação)360, relegando o seu aparato mais complexo para as penalidades mais graves, a ser tramitada na Justiça Comum, nas varas criminais.

Por fim, é válido salientar que o sistema consensual penal, inserido na proposta da informalidade, investiu no diálogo e valorizou a participação das partes na condução de resposta à infração, concedendo destaque à vítima e responsabilizando o autuado com medidas alternativas à pena privativa de liberdade, democratizando a forma de pensar e fazer justiça, como meio capaz de alcançar a pacificação social.