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Práticas restaurativas como modelo transformador do adolescente em conflito

4.4 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI Nº 8.069/90)

4.4.3 Práticas restaurativas como modelo transformador do adolescente em conflito

a lei

Antes do advento da Lei nº 12.594/12, a legislação juvenil não tinha qualquer previsão expressa para a aplicação da Justiça Restaurativa. Contudo, o modelo restaurativo encontrava espaço no ECA, em seu art. 100, ao disciplinar a aplicação das medidas legais, protetivas e/ou socioeducativas, ao adolescente em ação conflitante com a lei, permitindo ao juiz, em sua decisão, levar em consideração as necessidades pedagógicas, preferindo aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Nesse espaço legislativo, a Justiça Restaurativa iniciou-se, formalmente, em 2005, por meio da Secretaria de Reforma do Judiciário/Ministério da Justiça que elaborou o projeto promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, e, junto ao Pnud, implementaram dois projetos-piloto para a justiça juvenil, um na Vara da Infância e Juventude da Comarca de São Caetano do Sul/SP, e, o outro, na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância

407 SARAIVA, 2013, cap. 5.5, p. 27-37. 408 RAMIDOFF, 2012, cap. 5, p. 7-8.

e Juventude de Porto Alegre/RS. Os dois projetos-piloto, implantados na justiça juvenil, possuem características diferenciadas.

O projeto da Comarca de São Caetano do Sul/SP409 destinou-a à aplicação da prática restaurativa na fase de conhecimento para os adolescentes em conflito com a lei. A Vara da Infância e Juventude atua em parceria com a respectiva Promotoria de Justiça e, na fase procedimental da audiência de apresentação, seleciona o caso e o encaminha para a prática restaurativa, com a possibilidade de realizar um acordo e, eventual, cumulação da medida socioeducativa aplicada pelo juiz. Nessa hipótese, o juiz, geralmente, aplica a medida de prestação de serviço à comunidade que poderá ser cumulada com o acordo restaurativo. Os casos podem ser selecionados pelo juiz, promotor, assistentes sociais e pelo Conselho Tutelar. A prática restaurativa empregada é o círculo restaurativo.

Por outro lado, tem-se a 3ª Vara Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre410, cuja competência é da execução das medidas socioeducativas aplicadas no processo de conhecimento das 1ª e 2ª Varas Regionais do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre. O Projeto-piloto de Porto Alegre denominou-se “Justiça para o Século 21”411, nome que passou a ser marca registrada da Justiça Restaurativa no Sul do país.

Nessa configuração, as iniciativas do projeto têm sua principal inserção na rede de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, no “meio aberto” e no “meio fechado”. Assim, por ocasião da execução da medida socioeducativa, o juiz seleciona o caso, e, encaminha para o projeto “Justiça para o Século 21”.412 A prática restaurativa utilizada é o círculo restaurativo.

409 MELO, 2006.

410 Importante destacar que o juiz titular da 3ª Vara Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre, à época da implantação do projeto pioneiro, era o juiz Leoberto Brancher, atualmente, titular da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Caxias do Sul e coordenador do Projeto ‘Justiça para o Século 21. Leoberto Brancher, ainda, coordena a campanha nacional da justiça restaurativa na Associação dos Magistrados Brasileiros, denominada: A paz pede a palavra. (AGUINSKY, Beatriz Gershenson; HECHLER, Ângela Diana; COMIRAN, Gisele; GIULIANO, Diego Nakata; DAVIS, Evandro Magalhães; SILVA, Sandra Espíndola da; et al. A introdução das práticas de Justiça Restaurativa no Sistema de Justiça e nas políticas da infância e juventude em Porto Alegre: notas de um estudo longitudinal no monitoramento e avaliação do Projeto Justiça para o Século 21. In: BRANCHER, Leoberto; SILVA, Susiâni (Orgs.). Justiça para o século 21: instituindo práticas restaurativas: semeando justiça e pacificando violências. Porto Alegre: Nova Prova, 2008. p. 30).

411 BRANCHER, 2015.

412 Capitão e Rosa comentam a filosofia do Projeto Justiça para o Século 21: “A concepção restauradora desta nova Justiça, então pactua com perspectivas instauradoras, ou seja, projeta um conectar-se com as necessidades daqueles envolvidos no conflito, infratores, vítimas, seus familiares e a comunidade, aporta uma perspectiva de futuro, como ideal a ser alcançado, enquanto construção utópica de novas responsabilidades – responsabilidades sociais compartilhadas”. (CAPITÃO, Lúcia Cristina Delgado; ROSA, Lucila C. da. Vozes do querer. In: BRANCHER, Leoberto; SILVA, Susiâni (Orgs.). Justiça para o século 21: instituindo práticas restaurativas: semeando justiça e pacificando violências. Porto Alegre: Nova Prova, 2008. p. 105).

Contudo, o projeto “Justiça para o Século 21”, além de aplicar as práticas restaurativas no âmbito da rede de atendimento ao adolescente conflitante com a lei, estabelece parcerias visando fomentar sua expansão, em outras políticas públicas como as de Segurança, Assistência, Educação e Saúde.413

Alavancada por esses projetos-piloto de sucesso, a Justiça Restaurativa, nas Varas da Infância e Juventude, assumiu um importante espaço de aplicação, por ter imersão em todas as fases procedimentais, incluindo desde a desjudicialização, a fase pré-processual, passando pela fase de conhecimento e indo até a última etapa processual, a execução da medida socioeducativa.

Analisando as etapas processuais de aplicação da Justiça Restaurativa na Vara da Infância e Juventude, considera-se, inicialmente, a desjudicialização e a fase pré-processual, isto é, quando se resolve o litígio envolvendo adolescentes sem adentrar no processo judicial.

A desjudicialização, assim, consiste no meio de gestão de conflito sem acionar a máquina judicial. Em regra, ocorre nas entidades que atende adolescentes ou na comunidade que possui equipe capacitada em prática restaurativa. Assim, havendo conflito envolvendo adolescentes, dentro da sua esfera de atuação, a entidade encaminha o caso direto para a resolução do conflito sem acionar qualquer instância judicial.414 Como exemplo, destacam-se as experiências das unidades de medidas socioeducativas de “meio aberto”, bem como dos abrigos, das escolas e das ONG’s que estão aplicando as práticas restaurativas, como meio de gestão de conflitos internos, evitando, assim, a judicialização.415

Na fase pré-processual, pode-se dizer que alguma instância judicial já foi acionada. Entende-se por instância judicial, no âmbito criminal, a Delegacia, o Ministério Público, a Defensoria, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Poder Judiciário, ou seja, as instituições que exercem atividades profissionais, como fim, no Sistema de Justiça Criminal. Como exemplo, pode-se ilustrar com a hipótese do representante do Ministério Público, analisando o caso, verifica a prática restaurativa como medida mais adequada à hipótese. Assim, encaminha o adolescente para uma unidade restaurativa e,

413 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Justiça para o Século 21. Justiça para o Século 21, 26 abr. 2009. Disponível em: <http://www.justica21.org.br/j21.php?id=101&pg=0#.Vs9Bxn0rJQJ>. Acesso em: 16 dez. 2015.

414 Entenda-se por instância judicial desde Delegacia, Ministério Público, Defensoria até o Poder Judiciário. Vale dizer, todas as instituições que exercem atividades junto ao Judiciário.

retornando da prática com acordo, aplica-se a remissão que pode ser simples416 ou qualificada417.

A primeira hipótese, de remissão simples, pode ocorrer quando da prática restaurativa resultar em acordo, sem necessidade do adolescente exercer uma atividade externa, por exemplo, quando restam estabelecidos compromissos e valores morais, como respeito e perdão. A segunda hipótese, de remissão qualificada418, pode ocorrer, quando da prática restaurativa, resultar em acordo restaurativo e, eventual, cumulação da medida socioeducativa aplicada pelo promotor de justiça. O acordo pode sugerir uma medida socioeducativa em “meio aberto”. Assim, o representante do Ministério Público aplica a remissão e submete o adolescente a uma medida legal acordada. Em qualquer das hipóteses, os autos serão encaminhados ao Judiciário para fins de homologação (art. 181, do ECA).

Na fase processual, por outro lado, se o representante do Ministério Público não promover o arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação perante o juiz, propondo a instauração do procedimento judicial para a aplicação de medida legal. Nessa fase, o juiz, analisando o caso, seleciona o que entende adequado para a prática restaurativa, recebe a representação e suspende o processo, encaminhando-o para a unidade restaurativa. No caso de o processo retornar com acordo restaurativo, o juiz abre vista ao Ministério Público e extingue o processo.

Na hipótese da prática restaurativa não encerrar com acordo ou o juiz verificar que não é adequado o encaminhamento do adolescente à unidade restaurativa, o processo seguirá seu curso normal, realizando a audiência de apresentação e seguindo o seu rito nos termos dos arts. 186 e seguintes. Após a instrução processual, pode emergir versão fática diferente da constante na representação e, caso o juiz entenda que o adolescente mereça passar pela prática restaurativa, suspende o processo e o encaminha à unidade restaurativa.

Ao retornar com acordo, procede-se, da mesma forma anteriormente disposta, abrindo-se vista ao representante do Ministério Público e extinguindo o processo, se for caso. Isso é possível, ainda nessa fase, haja vista o disposto no art. 188, da Lei nº 8.069/90, que

416 “Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.”

417 “Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.”

418 Ramidoff questiona a legitimidade do instituto da remissão qualificada, à vista da aplicação de uma medida restaurativa, sem o devido processo legal. (RAMIDOFF, 2012, cap. 4, p. 3-5).

prevê: “a remissão, como forma de extinção ou suspensão do processo, poderá ser aplicada em qualquer fase do procedimento, antes da sentença”.

Na fase que antecede a sentença, a legislação da Nova Zelândia e da Áustria permite a possibilidade de aplicação de práticas de Justiça Restaurativa, tanto para a justiça juvenil quanto para justiça de adultos. As pesquisas demonstraram que o uso de práticas restaurativas, nessa fase, guiou o processo de decisão judicial, considerado corretos e justos por todos os participantes, com possibilidade de oferecer uma boa resposta para a vítima e responsabilizar o agressor com opções para o apoio contínuo a ele, auxiliando na sua reintegração à sociedade.419

Ademais, caso o juiz verifique que não se trata de hipótese de encaminhamento para a Justiça Restaurativa, sentencia o processo e, se for o caso, aplica a medida legal cabível. Após o trânsito em julgado da sentença, inicia-se a fase de execução da medida protetiva e/ou socioeducativa ao adolescente, autor da infração penal.

A Lei do Sinase, em seu art. 35, III, inovou ao adotar a Justiça Restaurativa, de forma complementar, entre os princípios basilares da execução das medidas legais, em especial, as medidas socioeducativas. Vale ressaltar que esse dispositivo da legislação juvenil é o único a disciplinar expressamente a Justiça Restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro.

Nessa via, a Lei nº 12.594/12 trata de priorizar as práticas ou as medidas restaurativas como proposição principiológica a servir de marco orientador no acompanhamento das medidas legais, e, sempre que possível, atender às necessidades das vítimas.

A preferência das estratégias restaurativas, segundo essa positivação normativa, alinha-se e orienta-se pelo princípio estatutário destinado à proteção integral do adolescente a quem atribuiu a prática de ação em conflito com a lei, apesar de contemplar, “sempre que possível”, atender ao interesse da vítima.

A técnica restaurativa utilizada na execução das Varas da Infância e Juventude do Brasil, tem sido os círculos restaurativos. Os círculos restaurativos são utilizados nas medidas socioeducativas de privação de liberdade e das aplicadas no “espaço aberto”, para a qualificação dos planos individuais de atendimento de adolescente, com o fim de facilitar a ressocialização. Contudo, uma boa oportunidade para sua aplicação é na progressão de medidas para o meio aberto, envolvendo parcerias com a rede de atendimento, que coordenam e co-coordenam os círculos familiares, formulando o plano de atendimento e seu

419 MAXWELL, Gabrielle. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005. p. 247.

acompanhamento com foco na responsabilidade compartilhada entre o adolescente, a família e a rede. Na construção e execução desse plano individual, sempre que possível, conta-se com a participação da vítima direta, quando não é possível, participa uma vítima indireta. Essa experiência já demonstrou seu êxito em programas para egressos em Porto Alegre420. Nesse formato, o círculo prepara o adolescente para reintegrar a sua família e a comunidade, onde irá residir, como suporte e estrutura a esse jovem no seu novo caminhar.

Nesse contexto, é importante capacitar toda a rede de atendimento da execução das medidas legais em prática restaurativa, para que um dos marcos principiológicos da Lei nº 12.594/12 não reste frustrado. Some-se a isto, a determinação da Meta nº 8/2016 do CNJ, para implantar, no mínimo, uma unidade de Justiça Restaurativa dentro de cada Tribunal de Justiça, o que resultará o contato do adolescente com técnicas restaurativas tanto para aplicação da medida como para sua execução. Essa combinação ensejará um êxito ainda não alcançado em termos de reintegração e ressocialização do adolescente em conflito com a lei na maioria dos Estados brasileiros.

Caso o Judiciário apenas atinja sua meta e não se preocupe em investir na capacitação da técnica restaurativa para a rede de atendimento da execução das medidas legais, correrá o sério risco de não se obter êxito com a nova estratégia. De toda sorte, nada adiantará trabalhar com a transformação do adolescente, mediante o diálogo e a sua conscientização, e quando o encaminhar para a rede de atendimento, ele seja recebido na perspectiva retributiva- repressiva, sem o tratamento humanista aplicado.

Por fim, convém ressaltar que a Vara da Infância e Juventude é o ambiente de maior sucesso da Justiça Restaurativa dentro do Judiciário brasileiro. Pode-se dizer que o espaço da justiça juvenil, na esfera criminal, é o exemplo de maior êxito da Justiça Restaurativa no Brasil e, aliás, também no mundo.