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Perspectivas Pré Processo Arteterapêutico

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Capítulo III: Resultados e Discussão

3.2 Perspectivas Pré Processo Arteterapêutico

Nesta sessão são apresentados e discutidos recortes das falas das participantes durante a Entrevista Pré Processo Arteterapêutico, ou seja, antes de iniciarem a participação no grupo arteterapêutico. De acordo com seus relatos, foram delineadas as seguintes categorias mais presentes entre as participantes:

Categorias de análise

1 Verbalização a respeito da situação de violência vivida 2 Esquecimentos e lembranças do trauma

3 Sentimento de culpa 4 Corpo afetado 5 Temor pelas filhas

Quanto à primeira categoria, foi observada a dificuldade das participantes em verbalizar a situação de violência que viveram: descrevendo em partes; omitindo significantes referentes à mesma; e/ou manifestando falas pausadas e delongadas, protelando a descrição solicitada. Algumas apresentaram essa característica durante a entrevista:

Beatriz: “E... Aí teve isso por parte do meu avô também, meu avô foi, foi, foi...

como que fala?! Não foi um abuso, foi... ai assim... Aí teve isso por parte do meu avô, e tal. E um amigo do meu pai também. Ele também fazia essas coisas... fazia isso” (violência sexual na infância).

O significante Isso em psicanálise geralmente diz respeito àquilo que nos ultrapassa ou ao que é recalcado ou suprimido. Em vários momentos, durante os relatos colhidos por meio da entrevista desta fase, as participantes usaram esse significante para descreverem o que viveram quanto ao fenômeno da violência. Diante do domínio da resistência em seu discurso, o sujeito entra em dificuldades, no caso dessas mulheres dificuldades em verbalizar, apresentando um embaraço quanto à descrição do trauma (Freud, 1923/2006).

Também relataram não conseguir falar sobre o ocorrido, revelando reconhecerem a dificuldade que têm em expor sobre o assunto:

Cláudia: “A gente fica com vergonha de falar, de revelar” (violência sexual na infância).

Segundo Lima e Werlang (2011), “o trauma retrata uma dor que é irrepresentável” (p. 514) causando um sofrimento a ponto de desencadear o desenvolvimento de conflitos, sintomas psicológicos e a dificuldade de admitir o acontecido, incidindo na resistência à fala sobre os conteúdos traumáticos. Contudo, ainda que o mecanismo de resistência atue, as experiências do trauma sempre aparecerão na fala. E, mesmo que os significantes a elas associados não sejam proferidos, sempre haverá a manifestação de algum resíduo dessa experiência traumática.

Na segunda categoria, sobre esquecimentos e lembranças, as participantes trouxeram questões sobre o fato de se esquecerem de alguns detalhes ou mesmo de dados que consideravam especialmente importantes sobre a situação de violência – a identidade do(s) agressor(es); cenas específicas sobre o fato; a idade que tinham quando ocorreu a violência; o local onde aconteceu; etc., como, por exemplo, no caso de Ivana:

Ivana: “Tinha cinco ou seis, na segunda vez acho que sete ou nove. Não sei

exatamente”. (a respeito de sua idade à época do abuso – violência sexual infantil).

As participantes, em sua maioria, declararam ter esquecido detalhes sobre a situação de violência que viveram, apresentando, inclusive, incômodo por não conseguirem relatar algumas especificidades sobre o ocorrido. Segundo Freud (1913a/2006), o fato de contar e descrever a respeito do trauma não significa que a recordação sobre este trauma de fato veio à mente. Haverá apenas fragmentos de memória, deixando lacunas sobre a cena ocorrida.

As mulheres que manifestaram esquecimento diante da descrição dos fatos de situação de violência sexual foram vítimas durante o período da fase infantil. As

lembranças – parcialmente esquecidas – sobre esses fatos podem ter sido “provenientes” da infância ou mesmo “relativas” a essa fase (Freud, 1899/2006, p. 304). As demais participantes que sofreram lapsos de memória sobre as cenas vividas foram vítimas de violência obstétrica, alegando que na situação do ato violento estavam sob efeito de medicação ou por não quererem lembrar como foi. O próprio grau de violência pode impedir que a vítima narre aquilo que é inenarrável (Silva, 2008).

As mulheres mencionaram também a respeito das lembranças que foram ocorrendo à medida que relatavam sobre a situação e as sensações corporais que se presentificaram durante as falas:

Ana: “E eu comecei a sentir mal, comecei a sentir dormência, formigamento no

corpo, repuxões na boca, ela adormecia, tremia, comecei a sentir a síndrome da boca ardente. Ai! Só de eu falar agora minha boca tá ardendo (passa a mão pelos

lábios), acredita? Ai!” (quando relata sobre o momento do aborto – violência obstétrica).

As manifestações corporais são indícios notáveis sobre as marcas residuais de uma situação traumática (Fontes, 1999). O trauma o qual essas mulheres vivenciaram está em um plano cronológico passado, contudo está constantemente sendo revisitado, provocando o pronunciamento do corpo que foi acometido. Falar sobre a cena traumática é, portanto, reviver o trauma no corpo e deixá-lo arguir. Freud (1915/2006) afirma que “corresponde à palavra um complicado processo associativo no qual se reúnem os elementos de origem visual, acústica e sinestésica” (p.221).

Quanto ao sentimento de culpa, as participantes disseram se sentirem culpadas, atribuindo a si mesmas a responsabilidade pelo acontecido:

Beatriz: “A criança tem como se, aquilo fosse você é que tivesse sido culpada,

porque você de repente, não sei... De alguma forma você, você... é culpada daquele homem ter sentindo aquilo a seu respeito, você entendeu?! Então, por isso que às vezes a criança não conta, não fala (...) E eu tive muita dificuldade quando eu casei em relação a isso. Porque parece que a todo o momento aquilo tava acontecendo, que era errado aqueles toques, sabe assim?!” (violência sexual na

Segundo Freud (1930 [1929]/2006), o sentimento de culpa tem duas origens prováveis: a primeira, advinda do medo de uma autoridade, insiste numa renúncia às satisfações; a segunda, por sua vez, para além disso, teme o superego, exigindo dele punição. O sentimento de culpa declarado pelas mulheres diante da situação da qual elas foram vítimas surge como uma punição pela violência ocorrida, “o indivíduo presume que cometeu algum crime” (Freud, 1924/2006, p. 180). Mesmo que não seja conscientemente declarada, a culpa se expressa pelo adoecimento, pelo sentimento de revolta, pelo sofrimento ou pela resistência.

A respeito da relação que essas mulheres têm com seu próprio corpo, afirmaram que de alguma forma a situação de violência que sofreram incide diretamente no modo como lidam com sua imagem corporal atualmente. Sentem seu corpo afetado, como pode ser verificado nas falas:

Flávia: “Tava ficando com aquela mágoa o tempo inteiro. E isso a gente se olha no

espelho e vê seu corpo feio, né?!” (violência física).

A saúde de qualquer pessoa está “prestes a ser afetada profundamente, toda vez que o corpo entra em manifestação, ou pela demanda de uma representação ou pela constatação de que algo não vai bem na interioridade corporal” (Carneiro, 2008, p.864). A corporeidade dessas mulheres está afetada pela demarcação de poder masculino, como também pela negação e pela opressão ao gênero feminino. Passa a ser um corpo imbuído de significado territorial pela supremacia masculina (Almeida, 2014) afetando, inclusive, o encontro com seu próprio Eu corporal. O ato de violência “de alguma forma é sempre um atentado contra o íntimo” (Barros, 2014, p.6).

Dentre os relatos trazidos pelas participantes, foi apontada também a dificuldade em se relacionar sexualmente com outros parceiros depois das situações de violência as quais viveram:

Hortência: “Ixi, depois do 1º parto num queria saber de mais nada, assim de ter

relação sexual, era dor e agonia, medo de engravidar só de pensar no parto que eu tive, aí nem fazia as coisas, sabe?! Medo de passar aquilo tudo de novo” (violência

obstétrica).

As consequências do ato violento experienciado por cada uma dessas mulheres estão além do corpo abusado, dos danos quanto à imagem corporal e da devastação sexual. A violência por elas vivida causou danos psicológicos irreparáveis em suas vidas (Oliveira, Araújo, Silva, Crispim, Lucindo & Oliveira, 2017), evocando a elas algumas saídas subjetivas para lidarem com os resquícios do trauma, muitas vezes sob a configuração do medo de reviverem tais situações. Segundo Teixeira e Porto (1998), “o imaginário do medo ocupa um espaço material no corpo, ou seja, tem uma inscrição corporal” (p. 54).

A maioria das participantes revelou que, por terem sofrido violência durante a fase de infância e/ou adolescência, temem que aconteça o mesmo com suas filhas:

Cláudia: “Eu não deixo brincar sozinha, eu tenho esse medo. Medo! Medo de

acontecer e tipo assim... e eu não ver, e ela não contar nada, como eu. Aí eu fico com medo” (violência sexual na infância).

Elaine: “Eu fiquei com medo, fiquei com muito medo de o M. (marido) pegar

minha menina e abusar dela. Aí o M. nunca triscou nessa menina. Eu sei que ele é um homem bom, mas se meu pai pegou eu e fez isso, ele também é pai dela, né?! Aí... Eu fiquei com medo mesmo” (violência sexual na adolescência).

“Essas mulheres precisam conseguir modificar as suas atitudes para que seus filhos não levem adiante esse ciclo que parece impossível interromper” (Lima & Werlang, 2011, p.516). O medo inconsciente da repetição, fenômeno este que ocorre ao longo de gerações, provoca nessas mulheres o comportamento de superproteção em relação a suas filhas, acreditando que, com isso, possam impedir a violência - que no caso de todas as participantes, ocorreu com pessoas da família ou muito próximas a elas.

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