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PARTE II OS PROCESSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

SEÇÃO 1 A PESQUISA COM FONTES AUTOBIOGRÁFICAS

A pesquisa (auto)biográfica não tenta neutralizar a validade dos métodos científicos herdados. Sua mirada epistemológica visa superar uma concepção fragmentada do humano. As pesquisas são guiadas pelo desejo de considerar o que uma pessoa pensa sobre ela e sobre o mundo, o sentido que confere às suas ações e a tomada de consciência de sua historicidade (PASSEGGI, 2010).

O debate sobre o que é e como se produz conhecimento científico traz uma série de questionamentos sobre rigorosidade metódica, fundamentação teórica e abordagem dos dados. A pesquisa quantitativa utiliza métodos rígidos e generalizações objetivas que não dão conta da natureza relacional do conhecimento e da realidade humana, apresentando pouca aplicabilidade e ocasionando desencantamento.

Elementos como singularidade, contexto social e participação efetiva dos envolvidos no processo de construção do conhecimento evocam a subjetividade, delineando um quadro epistêmico que transcende o senso comum e as racionalidades primárias. Trata-se de considerar e construir formulações bem fundamentadas que consideram as práticas de interação dos sujeitos no cotidiano, suas experiências e o modo como atribuem significado à práxis humana.

A pesquisa qualitativa diz respeito à ideia de que o mundo, as relações e, especialmente, a construção de conhecimentos pode e deve ser regulada. A pesquisa (auto)biográfica filia-se à abordagem qualitativa, apresentando especificidades epistemológicas inerentes à utilização e à valorização do material biográfico que, em articulação com os quadros metodológico e pedagógico, aparecem no campo da formação e constituem o material de análise.

No Brasil, a pesquisa qualitativa em educação ganha notoriedade a partir dos estudos sobre currículo e avaliação, requerendo o envolvimento do pesquisador, o enquadramento teórico coerente e o tratamento adequado dos dados que permitam a

“leitura dos achados de modo mais acurado e de elaboração de sínteses significativas, por processos indutivos/dedutivos consequentes” (ANDRÈ, GATTI, 2011, p. 36).

A construção científica relativa à educação exige domínio do campo de estudo, capacidade de interpretação, análise fundamentada e construção de argumentos que sustentem aquilo que foi observado nos dados, não se limitando à leitura e à análise de dados quantitativos. A prática teórica diz respeito à constelação de conceitos, ideias e metodologia de conhecimento mais coerente com o objeto de estudo (JOSSO, 2010a).

A pesquisa (auto)biográfica no Brasil tem como gênese as discussões acerca da escrita de si para a formação de professores, na década de 1990, apresentando inúmeros desdobramentos. Os trabalhos fundamentados nas histórias de vida como método de investigação qualitativa e como prática de formação tem como propósito estudar “o modo como diferentes pessoas dão sentido as suas vidas” (BOGDAN, BIKLEN, 1994, p. 50).

A esse respeito, o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Autobiografia, Representações e Subjetividades – GRIFARS vem trabalhando com a pesquisa (auto)biográfica no Brasil e contempla diferentes linhas de pesquisa. Esta tese é o terceiro trabalho concluído, cujos participantes dele são jovens, e o segundo que enfoca a formação de jovens implicada em processos de reflexão, de tomadas de consciência e do devir. Trata-se de um campo de investigação fundamental, abarcando os processos de desenvolvimento desse público juvenil, os quais podem fundamentar a compreensão e a projeção de si.

Cristóvão Pereira de Souza, autor da tese A Videobiografia como Dispositivo

de Pesquisa-Ação-Formação: Uma Prática Educativa com Adolescentes Abrigados,

aponta a produção videobiográfica como um dispositivo de formação que promove a reflexão e o acompanhamento dos processos de tomada de consciência, possibilitando a reinvenção de lugares e de outros mundos para si por parte dos adolescentes abrigados. Andréia Gomes da Silva, em sua dissertação de Mestrado, dialoga com jovens que (con)vivem com a doença crônica desde a infância, bem como problematiza a constituição de si em relação à sociedade em meio aos sintomas e às limitações que a doença traz.

Já este trabalho, enfoca a formação de jovens e a maneira como constituem- se e projetam-se a partir da própria realidade de vida e de formação em uma instituição de educação profissional. Defende-se um espaço de educação formal para refletir

sobre a própria vida e, por conseguinte, para a projeção de si. Em vista disso, apresentamos e nos aprofundamos em diferentes dispositivos de mediação biográfica que promovem a reflexão e subsidiam os processos de autoformação.

Delory-Momberger (2014) chama a atenção para o fato de as histórias de vida surgirem vinculadas ao campo da formação no momento em que as pessoas têm mais dificuldade de encontrar o seu lugar na história coletiva, elucidando o fato de que elas têm, agora, a responsabilidade “de definir suas próprias referências e fazer sua própria história” (DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 314). Nesse aspecto, o LAQVi é criado no contexto da educação de adultos, materializando-se na educação popular, emancipadora e militante e situando-se no quadro de autoformação e de apropriação do poder de formação. Porém, o interesse central dessa pesquisa-formação corresponde à análise minuciosa do QE, com vistas ao seu potencial pedagógico e metodológico, sendo o LAQVi o método de investigação qualitativa.

Concernente à estratégia de pesquisa e aos dispositivos de mediação biográfica que ela integra, é fundamental refletir sobre a metodologia mais coerente com o objeto de estudo, permitindo “integrar e fazer funcionar as ferramentas e as práticas que medeiam as interações com as pessoas, de tal forma que essas interações suscitem a emergência daquilo com o que se considera necessário estar em contato [...]” (JOSSO, 2010a, p. 85).

A pesquisa (auto)biográfica e a pesquisa-formação entrelaçam-se ao passo que compreendem o pesquisador como alguém comprometido com o processo de construção individual e coletivo a partir de um conjunto de atividades implicadas com a necessidade de pensar juntos (participantes e pesquisador-formador) a complexidade dos fenômenos ligados à vida.

Ao trabalhar com metodologia e fontes dessa natureza, o pesquisador conscientemente adota uma tradição em pesquisa que reconhece ser a realidade social multifacetária, socialmente construída por seres humanos que vivenciam a experiência de modo holístico e integrado, em que as pessoas estão em constante processo de autoconhecimento. Por esta razão, sabe-se, desde o início, trabalhando antes com emoções e intuições do que com dados exatos e acabados; com subjetividades, portanto, antes do que com o objetivo. Nesta tradição de pesquisa, o pesquisador não pretende estabelecer generalizações estatísticas, mas, sim, compreender o fenômeno em estudo, o que lhe pode até permitir uma generalização analítica (ABRAHÃO, 2003, p. 80).

O trabalho de pesquisa expresso nesta tese “se preocupa em articular diretamente a perspectiva de conhecimento e a perspectiva de mudança nessa mesma sequência temporal” (JOSSO, 2010a, p. 102), provocando transformação nos modos de agir, pensar, compreender e explicar e, assim, o LAQVi se insere “no quadro de vida dos participantes e formula com eles os desafios do saber visado” (JOSSO, 2010a, p. 102).

Os participantes da pesquisa, em parceria com o pesquisador-formador, utilizam os QE com vistas ao processo de mediação biográfica, o qual contribui para a compreensão de si e para a construção de projetos de vir-a-ser. Há, portanto, um processo de (co)construção da pesquisa e do conhecimento.

A pesquisadora-formadora torna-se instrumento de recolha e análise dos dados, já que investiga o QE e contribui para a formação dos participantes concomitantemente. A oferta do curso Laboratório de Aprendizagem e Qualidade de Vida foi apresentada aos participantes antes da efetivação da matrícula e contou com a abertura para a participação dos estudantes no decorrer das atividades, explicitando a primeira das cinco características da pesquisa qualitativa.

A tese O quadro de escuta é um dispositivo de mediação biográfica que

contribui para a compreensão de si e para a construção de projetos de vir-a-ser tem

como proposta de fundamentação a descrição e a análise de diferentes dispositivos devidamente articulados com o QE na totalidade do processo de mediação biográfica, elucidando a segunda característica da pesquisa qualitativa (ou seja, ser descritiva). Atenta-se para cada detalhe, pois “[...] tudo tem potencial para construir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo” (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 49).

O QE é um dispositivo de mediação biográfica, utilizado em um grupo reflexivo de formação, cujo processo envolve uma série de etapas e procedimentos externos (do curso) e internos (da pessoa que participa), demonstrando maior interesse pelo processo do que pelo produto e/ou resultados da pesquisa – terceira característica da pesquisa qualitativa.

O processo de fundamentação teórica integra-se ao processo de construção e coleta de dados, oportunizando agrupamentos particulares e uma análise indutiva. A constituição do corpus é realizada mediante a participação e a formação dos estudantes, com vistas aos seus próprios interesses, dando margem às duas últimas

características da pesquisa qualitativa – o significado deve ser um dos princípios de análise e os dados devem ser estudados de forma indutiva.

A pesquisa (auto)biográfica tem entre os seus fundamentos a abordagem hermenêutica, valorizando a interpretação e o significado, daí a importância da horizontalidade do pesquisador-participante. Ambos constroem, individual e coletivamente, reflexões, interpretações e tomadas de decisão sobre si e sobre a pesquisa.

Cada etapa pode ter desdobramentos diferentes, delineando sentidos conceituais e operacionais para os participantes (pesquisador e participantes), consonantes e/ou dissidentes, seja no campo individual (vida particular) ou da pesquisa enquanto processo científico (trabalho planejado com flexibilidade). De acordo com Pineau e Le Grand, é vital que “sob o aspecto da pesquisa [..] as teorias sejam postas em questão pelas realidades pessoais e sociais, pelos movimentos da sociedade que se tornam operantes através de atores sociais” (2012, p. 150).

A pesquisa corresponde a um processo de formação para todos os participantes, pesquisador-formador e estudantes, favorecendo a transformação das práticas em geral, já que “a pessoa é, simultaneamente, objeto e sujeito da formação” (NÓVOA, 2004, p. 15).

Nesse aspecto, o método (auto)biográfico explicita o diálogo entre o individual e o sociocultural, possibilitando investigações a respeito da construção de conhecimentos em uma perspectiva interacional que considera a memória em constante organização. O ato de narrar e/ou projetar-se é fundamental na busca produtiva de significados e fundamenta a consciência da impermanência da pessoa, da fluidez dos saberes e da maleabilidade da experiência humana em diferentes contextos.

Conforme Passeggi (2010), a pesquisa (auto)biográfica desenvolve-se segundo dois eixos que direcionam a investigação. O primeiro eixo trata das fontes autobiográficas como método de investigação, podendo ter como direcionamento a constituição e análise de fontes autobiográficas e as tradições discursivas referentes às maneiras de autobiografar.

O ato de narrar como dispositivo de formação é o segundo eixo e contempla dois direcionamentos, nos quais o processo e a atuação do pesquisador são essenciais. Trata-se das atividades autorreflexivas, voltadas à formação e à atividade

profissional, e do acompanhamento das escritas de si, que enfatiza a formação de formadores na área.

Assim, esta pesquisa tem como objeto de estudo um dispositivo de mediação biográfica que contribui para a formação, a constituição das fontes autobiográficas, a análise dos dados e para a formação do formador. O QE nasce das inquietações da pesquisadora-formadora que tem a necessidade de potencializar os processos de reflexão e seus desdobramentos

O QE, investigado neste trabalho, apresenta-se como constituinte de um processo de formação que considera e potencializa as relações em geral (com o mundo, com o outro e consigo mesmo) e que pode, isolada ou enquanto constituinte da proposta de formação, apresentar-se como método de recolha de fontes autobiográficas.

A pesquisa (auto)biográfica possibilita a compreensão de fontes autobiográficas como método de pesquisa para apreender práticas humanas (BERTAUX, 2010; FERRAROTTI, 2010) e para a potencialização da atividade reflexiva sobre a experiência, tendo em vista a formação (JOSSO, 2010b; DELORY- MOMBERGER, 2008), daí a importância de realizar estudos que englobem, especificamente, fontes autobiográficas.