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PARTE II OS PROCESSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

SEÇÃO 1 A PESQUISA COMO PROCESSO DE INVENÇÃO

Considero que no trabalho de construção de um objeto de estudo deverá predominar a alegria e que esse prazer encontra-se, também, associado ao desapego de certezas postas como a priori. Nesse sentido, pressuponho como fundamental a atitude de “artesão”. Como tal, o importante é desenvolver com rigor um método pessoal e em harmonia com os princípios considerados como os mais adequados. Dessa forma, sou contrária ao apego desmesurado de uma postura que torna seus princípios como que uma receita e os seus discursos como apologia (SILVA, 2006, p. 48).

A articulação contínua do objeto de estudo com o campo de pesquisa é fundamental, pois decisões acerca da organização e das etapas de trabalho que envolvem a composição e a análise dos dados da/na pesquisa dependem desse diálogo. O movimento dinâmico do pesquisador e da pesquisa em prol de “atenção e abertura para rever continuamente o que na véspera era tido como certo, diante de um novo índice que surge inesperadamente” (SILVA, 2018) é imprescindível.

O quadro de escuta, constituído como objeto de estudo, compõe o LAQVi juntamente com uma série de procedimentos e dispositivos, orientando a coleta, a organização e a análise das fontes autobiográficas. Tendo em vista a quantidade de material pedagógico e biográfico que compunha o LAQVi, optou-se pela seleção de quatro fontes (auto)biográficas para fundamentar os processos de análise: os projetos de vida, os quadros hermenêuticos, os quadros de escuta e a síntese reflexiva que os participantes construíram ao final do curso.

Os PV, os QH e os QE foram apresentados na primeira parte desta tese, tanto porque compõem todos os componentes curriculares do curso e a totalidade da pesquisa quanto porque têm uma contínua relação entre si, revelando o potencial do QE como dispositivo de mediação biográfica. A síntese reflexiva corresponde ao último registro dos participantes e diz respeito à materialização das ideias e sentimentos suscitados mediante a visita ao próprio portfólio, ou seja, a observação da pasta que continha todas as atividades desenvolvidas durante o LAQVi.

Os participantes foram convidados a elaborarem e/ou revisarem três projetos de vida, a comporem três QH e sete QE e, ainda, a escreverem uma SR. Todos, em

movimento de retroalimentação, colaboraram para a compreensão de si e para a construção de projetos de vir-a-ser.

Ao refletir sobre a função das atividades biográficas no LAQVi, observa-se, imediatamente, a contribuição de cada uma isoladamente ou em colaboração com determinadas atividades partilhadas. No entanto, é necessário analisar as minúcias do processo de mediação biográfica a partir da centralidade do objeto de estudo – o QE.

Considerando que a pesquisa-formação conta com seis participantes, o corpus selecionado corresponderia a 18 projetos de vida, 18 quadros hermenêuticos, 42 quadros de escuta e seis sínteses reflexivas. Entretanto, alguns estudantes não participaram do LAQVi em momentos pontuais, gerando uma diminuição de algumas fontes (auto)biográficas. Dessa maneira, a pesquisa-formação considerou 15 projetos de vida, 17 quadros hermenêuticos, 40 quadros de escuta e as seis sínteses reflexivas.

Como lidar com tantos registros e, ao mesmo tempo, investigar o potencial pedagógico e metodológico do quadro de escuta? A tese construída e defendida nesta pesquisa-formação coloca o QE em relação com o processo de mediação biográfica e com a elaboração de projetos de vir-a-ser, então o primeiro passo é organizar os dados de modo a visualizar a totalidade da pesquisa para, em seguida, construir o caminho mais adequado para a realização da análise e da construção teórica.

É preciso construir arquivos/documentos que possibilitem a visualização da materialização física do processo de mediação biográfica em termos objetivos (material físico e explicitação de propostas de trabalho) e subjetivos (processos internos vivenciados pelos participantes e pelo pesquisador-formador), pois “nesse arquivo, você, como artesão, tentará reunir o que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando como pessoa” (MILLS, 2009, p. 22).

Considerando que a pesquisa qualitativa e, mais especificamente, a pesquisa (auto)biográfica não se baseia em um conceito teórico e metodológico unificado e, ainda, que uma pesquisa-formação equivale ao “relacionamento dialético entre uma experiência existencial e uma experiência intelectual” (JOSSO, 2010a, p.129), tomou- se como inspiração para o tratamento dos dados as ideias de Jean-Claude Kaufmann (2013) ao teorizar a entrevista compreensiva.

A leitura realizada durante o curso de Doutorado é oriunda dos estudos na disciplina Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Pesquisa em Educação:

Abordagens Qualitativas e Quantitativas, cuja ementa privilegiava a pesquisa qualitativa. Ao tratar de entrevista compreensiva, o autor destaca quatro dimensões fundamentais da pesquisa, as quais se desdobram em princípios para a organização dos dados a serem apresentados neste trabalho: o início do processo de investigação, o trato com o material, a fabricação da teoria e o término do trabalho.

O planejamento e a flexibilidade inerentes à elaboração da proposta do LAQVi, unidos à atenção ao tema, ao tempo e à fase de contato direto com os participantes, demonstraram zelo quanto à condução do processo e à relação pesquisador-formador e participantes, marcando o início do processo de investigação.

A atenção ao contexto e aos modos como as pessoas se relacionavam e se envolviam com as etapas do LAQVi evidenciaram que a proposta estrutural (Projeto Pedagógico do Curso e o planejamento contínuo dos encontros) foi fundamental para os participantes se sentirem à vontade e se comprometerem, concomitantemente, com o processo de formação e com a construção do projeto de vir-a-ser.

A participação ativa da pesquisadora possibilitou a identificação de pistas sobre as hipóteses construídas no decorrer do processo, orientando a seleção e a análise das fontes autobiográficas que permitiram, posteriormente, a objetivação do material a ser analisado. Qualquer obra tem como pré-requisito a disponibilidade e a organização da matéria-prima orquestradas com a utilização de ferramentas.

O conteúdo coletado (material de análise) foi organizado, objetivando a contemplação e a interpretação dos dados, potencializando a capacidade analítica da pesquisadora-formadora em consonância com o fio condutor do trabalho, ou seja, com “um encadeamento de ideias centrais, permitindo não se deixar apagar pelo material ou pela emergência controlada das hipóteses” (KAUFMANN, 2013, p. 150).

A fabricação da teoria e, logo, o término do trabalho requerem agilidade intelectual e o desejo feroz de entender (KAUFMANN, 2013). Desse modo, coube à pesquisadora-formadora diminuir a complexidade inerente ao corpus, através da construção de instrumentos que dessem conta do que se chama, convencionalmente, na pesquisa científica, de amostra.

Os elementos centrais contemplados pelas fontes (auto)biográficas selecionadas foram organizados em quadros que favorecem o estabelecimento de relações do conteúdo nas mesmas fontes e em fontes diferentes, permitindo o jogo dos três polos (pesquisador, participante e objeto do estudo), evidenciado na

teorização da entrevista compreensiva e que gera um trabalho teórico sobre o quadro de escuta e sobre a própria vida.

Sendo assim, “o resultado não depende do conteúdo, simples matéria-prima, mas da capacidade analítica do pesquisador” (KAUFMANN, 2013, p. 119), o qual se envolve na pesquisa como um processo de investigação ativa e produtiva, ou seja, como processo de invenção.