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A pobreza, de modo geral, costuma ser classificada como extrema, moderada ou relativa. Como nos ensina Jeffrey Sachs na obra “O fim da pobreza”, as famílias que se encontram em situação de pobreza extrema ou absoluta, o que equivale dizer, miséria, “não podem satisfazer as necessidades básicas de sobrevivência”170.

E o que devemos entender por necessidades básicas de sobrevivência? Certamente, nada menos do que seja considerado o patamar mínimo para a digna existência da pessoa humana. É a temática do mínimo existencial que, como veremos, segundo considerável parcela da doutrina que escreve sobre direitos fundamentais, trata-se do aspecto material da dignidade humana.

Assim, está em situação de miserabilidade a pessoa que não pode garantir sua alimentação e saúde, que não tem acesso ao saneamento básico, à habitação, à educação, ou mesmo ao vestuário minimamente adequado. Sachs também exemplifica as famílias extremamente pobres como aquelas que nem ao menos têm chaminé para tirar a fumaça de seu fogão171 – o professor de economia narra casos de intoxicação devido à fumaça

acumulada nas “casas” durante o preparo das refeições.

A pobreza moderada, explica Jeffrey Sachs, trata-se da condição de vida, na qual, enfrentando muitas dificuldades, as pessoas conseguem satisfazer as necessidades básicas. Já a pobreza relativa é o quadro daqueles que têm menos renda do que a média nacional, que conseguem satisfazer as necessidades básicas, mas que “não têm acesso a bens culturais, entretenimento, recreação e à saúde e educação de qualidade, bem como a outros privilégios da mobilidade social ascendente”172.

Segundo Sachs, o Banco Mundial define que estão em situação de miséria todos aqueles cuja renda não ultrapassa 1 dólar americano por dia, e em situação de pobreza moderada aqueles cuja renda diária oscila entre 1 e 2 dólares americanos173. Contudo, informações do início de 2015 do próprio Grupo Banco Mundial apresentam como miserável

170 SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: como acabar com a miséria mundial nos próximos vinte anos. Prefácio

Bono. Prefácio à edição brasileira Rubens Ricupero. Tradução de Pedro Maia Soares. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 46.

171 Ibid., p. 46.

172 SACHS, J. 2005, p. 47. 173 Ibid.

a pessoa que ganha até 1,25 dólar americano por dia174, o que, de qualquer modo, não muda substancialmente o quadro traçado pelo professor norte-americano.

De acordo com estudos feitos pelo Grupo Banco Mundial, no ano de 2011, 17% dos habitantes de países em desenvolvimento, isto é, cerca de 1 bilhão de pessoas, viviam com até U$ 1,25 por dia. No mesmo ano, mais de 2 bilhões de pessoas contavam com menos de U$$ 2,00 diários175. Nos países em desenvolvimento, mais do que o rendimento médio diário, essas informações demonstram que bilhões de pessoas não tinham acesso a serviços essenciais como ensino e saúde de qualidade, eletricidade e água potável176.

Uma vez que a definição do que é pobreza guia as políticas públicas e a atuação do Poder Judiciário no que diz respeito às prestações estatais positivas, é fundamental compreendermos a razão de o Grupo Banco Mundial ter adotado como critério de renda o valor de U$$ 1,25 para caracterizar a pobreza extrema.

Os critérios do Grupo Banco Mundial são, em grande parte, frutos do estudo de Martin Ravallion, professor de economia da Universidade de Georgetown, que foi diretor do grupo de pesquisa sobre desenvolvimento da instituição de Bretton Woods177. Seu trabalho de maior notoriedade, “Comparaisons de la Pauvreté”178, explica conceitos e métodos de comparação de níveis de vida.

E, afinal, o que é a pobreza para Ravallion? A resposta, diretamente relacionada ao mínimo existencial, vem logo nas primeiras linhas de seu trabalho, explicando que “pode-se dizer que a pobreza existe em uma dada sociedade quando o bem-estar de uma ou mais pessoas não atende um nível considerado como um mínimo razoável segundo os critérios dessa mesma sociedade”179.

174 La Banque Mondiale. Pauvreté - vue d’ensemble. Disponível em:

<http://www.banquemondiale.org/fr/topic/poverty/overview>. Acesso em: 7 fev. 2015.

175 Ibid.

176 Ibid.: “Certains pays en développement connaissent encore une forte persistance, voire un creusement, des

inégalités entre riches et pauvres et pour l’accès aux opportunités. Cela veut dire concrètement que, dans les pays en développement, beaucoup d’habitants ne peuvent guère accéder aux services essentiels, comme un enseignement et des soins de santé de qualité, l’électricité et l’eau potable. En outre, les menaces que constituent les chocs économiques, l’insécurité alimentaire et le changement climatique risquent de saper les progrès accomplis ces dernières années”.

177 La Banque Mondiale. World Bank Blogs - Martin Ravallion. Disponível em:

<http://blogs.worldbank.org/team/martin-ravallion>. Acesso em: 7 fev. 2015.

178 RAVALLION, Martin. Comparaisons de la Pauvreté - Concepts et méthodes. LSMS Étude sur le mesure des

niveaux de vie. Washington D.C., Banque internationale pour la reconstruction et le développement, premier tirage février 1996.

179 RAVALLION, Martin. Comparaisons de la Pauvreté - Concepts et méthodes. LSMS Étude sur le mesure des

O autor do estudo explica que pesquisas sobre pobreza podem ser influenciadas de acordo com a abordagem escolhida. A despeito do sentido filosófico, a abordagem utilitarista define bem-estar segundo as convicções pessoais daquele que responde à pesquisa e mede as opiniões públicas pelo termômetro das preferências e opiniões do entrevistado. Seu oposto, a abordagem não utilitarista, baseia-se em dados objetivos, não relacionados à perspectiva do indivíduo180.

Assim, enquanto a abordagem não utilitarista é mais objetiva, a utilitarista é seu oposto, mais subjetiva. O problema pertinentemente aventado pelo economista é que, ao decidirmos usar a abordagem não utilitarista para mensurar a pobreza, somos nós quem ditamos o rol do mínimo existencial, o que pode ser arbitrário181, isso porque não se parte

mais do ponto de vista pessoal, de cada entrevistado, sobre o que é ou não um bom nível de vida, mas daquilo que o pesquisador assim o considera.

Para fugir da queda de braço entre as duas visões, Ravallion sentencia que o nível de vida está ligado ao ser e não ao ter182. Assim, explica o autor de “Comparaisons de la

Pauvreté”, é partindo do “ser” que a pobreza deve ser analisada, como uma privação das faculdades intrínsecas da pessoa183.

Uma consequência desse pensamento é que, embora as abordagens utilitarista e não utilitarista considerem a importância do poder de consumo para mensurar o nível de vida, mais do que contabilizar o que é oferecido pelo setor privado, ambos os tipos de pesquisa também devem levar em conta aquilo que o Poder Público pode colocar à disposição da população184. Isso é particularmente desafiador para a abordagem utilitarista, que reconhece tirage février 1996, p. 4: “On peut dire que la “pauvreté” existe dans une société donné lorsque le bien-être d’une ou de plusieurs personnes n’atteint pas un niveau considéré comme un minimum raisonnable selon les critères de cette même société”.

180 Ibid., p. 5.

181 Ibid., p. 6: “Les approches non utilitariste sont plus diverses. Certaines de ces approches existent de longue

date. Elle ont donné lieu à l’identification de forme spécifiques de probation de biens et sont fréquemment utilisées dans les études sur les pays tant développés qu’en développement. Elles vont de la “privation absolue de bien” (dans les approches axées sur la nutrition ou sur d’autres “besoins fondamentaux”, qui sont plus courantes dans les études sur les pays en développement) à “la privation relative de biens” (comme, par exemple, dans Townsend, 1979). Elles sont cependant toujours quelque peu arbitraires car l’analyste doit décider quels sont les biens qui sont importants et (les cas échéant) quelles sont leurs valeurs relatives”.

182 Ibid., p. 6. 183 Ibid., p. 7.

184 RAVALLION, Martin. Comparaisons de la Pauvreté - Concepts et méthodes. LSMS Étude sur le mesure des

niveaux de vie. Washington D.C., Banque internationale pour la reconstruction et le développement, premier tirage février 1996, p. 9: “A un niveau ou à un autre de l’analyse, les deux approches attribuent un rôle important à la consommation de biens et de services fournis par le secteur privé en faisant un des facteurs déterminants du bien-être. Les partisans des deux approches sont aussi tout à fait conscients des inconvénients que présente le

como bem- estar apenas o que a pessoa consome, excluindo aquilo que não pode ser comprado, como os bens públicos e aspetos imateriais da condição humana, como a liberdade185.

Fato é que a maior parte das análises sobre a pobreza parte de questionários e pesquisas nos lares, o que também pode criar algumas distorções do ponto de vista dos resultados, dado que muitas vezes os mais pobres dos pobres moram em locais isolados, ou nem sequer têm domicílio fixo, como os sem-teto186.

Como ex-diretor do departamento de pesquisa do Grupo Banco Mundial, Ravallion explica que, para estudar e analisar a pobreza, é preciso levar em consideração tudo o que se consome – incluindo todos os tipos de bens e serviços adquiridos ou recebidos –, bem como todo e qualquer rendimento, mesmo que seja in natura187.

Tal como faz o Grupo Banco Mundial ao estabelecer patamares de pobreza extrema, moderada e relativa, Ravallion trabalha com a ideia de limiares, isto é, de faixas da pobreza. O economista explica que há níveis de consumo de certos bens considerados essenciais, que, estando em situação de pobreza, a pessoa não consegue atingi-los188. A ideia de se estabelecerem limiares da pobreza não é aceita como unanimidade: seus críticos expõem que pode haver casos nos quais alguém que se enquadre em um nível de pobreza não tão rigoroso se encontre em situação pior do que o indivíduo considerado mais pobre, se a pobreza for mensurada pelo consumo189. Ravallion rebate a crítica explicando que os limiares são

choix de la consommation privée en tant qu’indicateur du bien-être. Ils reconnaissent qu’il faudrait aussi considérer l’accès aux biens fournis par le secteur public”.

185 Id.

186 Ibid., p. 14: “Les pauvres ne sont toutefois pas nécessairement bien représentés dans les enquêtes par

sondage. Il se peut, par exemple, qu’il soit plus difficile de les interroger parce qu’ils vivent dans des endroits isolés ou n’ont pas de domicile fixe. De fait, une enquête auprès des ménages peut ne pas toucher un sous- groupe spécifique des pauvres, à savoir les sans-abris”.

187 Ibid., p. 16.

188 Ibid., p. 32: “Une évaluation de la pauvreté suppose généralement qu’il existe un niveau de vie prédéterminé

et bien défini qualifié de <seuil de pauvreté> et qu’une personne doit avoir atteint pour ne pas être considérée comme <pauvre>. Il existe indéniablement des niveaux de consommation de différents biens (aliments, vêtements, abri) en dessous desquels la survie de l’individu est compromise à brève échéance, mais ce que sont ces niveaux pour chaque individu n’est pas évident. Qui plus est, dans la plupart des sociétés, y compris dans certaines des plus pauvres, la notion de ce que constitue la <pauvreté> dépasse le simple cadre de l’obtention du minimum absolu nécessaire à la survie. Il existe différents seuils de pauvreté, mais les opinions différents quant à leur niveaux”.

189 RAVALLION, Martin. Comparaisons de la Pauvreté - Concepts et méthodes. LSMS Étude sur le mesure des

niveaux de vie. Washington D.C., Banque internationale pour la reconstruction et le développement, premier tirage février 1996, p. 32: “Une école de pensée rejette totalement l’emploi des seuils de pauvreté, parce qu’elle estime qu’il n’est pas raisonnable de dire qu’une personne dont le niveau de vie est tant soit peu inférieur à un

comparações feitas com um nível de vida já estabelecido, e, se assim não o fosse, a pobreza seria mensurada em função de ganhos e perdas coletivas, quando, no entanto, a perda nos rendimentos de um milionário não influencia a contagem de aumento da pobreza.

Os métodos empregados para fixar os limiares, isto é, os limites da pobreza, são mais afetos à aproximação não utilitarista, sendo, portanto, ligados ao que é predeterminado como o mínimo necessário para se atender a um dado nível de vida.

Em seus estudos Ravallion explica que a pobreza absoluta costuma ser ligada à mera sobrevivência da pessoa, critério demasiadamente severo e estanque. Referido economista prefere classificar a pobreza absoluta como sendo um limiar constante, não ascendente, em termos de nível de vida190. Para ele, diferentemente da miséria, os outros limiares da pobreza

podem variar, acompanhando possíveis melhoras globais191.

<seuil de pauvreté> spécifique se trouve dans une situation sensiblement pire que celle d’une personne qui se trouve légèrement au dessous de ce même seuil”.

190 Ibid., p. 34: “Pour certains, un <seuil de pauvreté absolue> est un seuil de pauvreté <de survie>

particulièrement rigoureux. Cette définition est toutefois trop restrictive pour pouvoir être applicable. De fait, je doute qu’aucun des seuils de pauvreté utilisés en pratique, même dans les pays les plus pauvres, ne représentent rien de plus que ce qui est nécessaire pour assurer la survie. Il vaut mieux concevoir le seuil de pauvreté absolue comme un seuil constant en termes de niveaux de vie, et unique sur l’ensemble du domaine dans lequel les comparaisons de la pauvreté sont effectuées”.

191 Ibid., p. 47: “Le concept de <pauvreté absolue> - selon lequel le seuil de pauvreté ne varie pas avec le niveau

global - semble pertinent pour les pays à faible revenu, tandis que celui de <pauvreté relative> semble mieux adapté aux pays à revenu élevé”.