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PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL E OMISSÃO ESTATAL

Antes de adentrar especificamente quanto à qual modalidade de responsabilização estaria o Estado sujeito por sua omissão nas atividades fiscalizatórias, faz-se necessário um incurso na ideia de poder de polícia ambiental, ideia central da fiscalização ambiental, bem como uma análise acerca da omissão estatal.

No que concerne ao de poder de polícia administrativa, seu conceito legal é dado pelo artigo 78, do Código Tributário Nacional, que dispõe

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Por sua vez, o parágrafo único do mesmo dispositivo, conceitua o poder de polícia legal e regular

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MIRRA, Álvaro Luiz Valery. 1999. O problema do controle judicial das omissões estatais lesivas ao meio ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, n. 15. Disponível em: < http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/esgotamento/o_problema_do_controle_ju dicial_das_omissoes_estatais_lesiva.pdf>. Acesso em 26 mai. 2012.

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Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

Desse modo, o poder de polícia administrativa é o instrumento que confere legitimidade a Poder Público para interferir nos direitos dos particulares, sempre com vistas ao interesse público. Nesse sentido, Mello o conceitua como

A atividade da Administração Pública, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizatória, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (‘non facere’) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo243.

No que diz respeito à temática ambiental, conforme já afirmado, por ser o bem ambiental, bem de uso comum do povo, fácil é constatar que o poder de polícia tem larga aplicação. Sobretudo porque essa prerrogativa estatal tem um viés negativo, na medida em que seu objetivo principal é evitar um dano proveniente da ação de um particular244

e, nesse diapasão, desempenha papel essencial à tutela ambiental.

Nesse contexto, Milaré aponta que

o poder de polícia ambiental, em favor do Estado, definido como incumbência pelo art. 225 da Carta Magna, e a ser exercido em função dos requisitos da ação tutelar, é decorrência lógica e direta da competência para o exercício da tutela administrativa do meio ambiente. O poder de polícia administrativa é prerrogativa do Poder Público, particularmente do Executivo, e é dotado dos atributos da discricionariedade, da auto-

executoriedade e da coercibilidade, inerentes aos atos administrativos245.

Ademais, o Poder Público, como maior protetor do meio ambiente deve dispor de meios legais a fim de tolher interesses individuais danosos ao meio ambiente. Este instrumento é justamente o poder de polícia ambiental.

Sobre o assunto, Milaré alça o controle do Poder Público sobre os poluidores aos status de princípio, na medida em que consiste na adoção das

243

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo..., op. cit., p. 766.

244

Ibidem, p. 758-759.

245

medidas necessárias, por parte do Poder Público, com vistas à preservação e restauração dos recursos ambientais, obrigando-se a uma utilização racional246

. Corroborando essa ideia, o autor expõe que, não obstante o poder de polícia ser exercido mais frequentemente através de ações fiscalizatórias, o licenciamento ambiental também desempenha papel fundamental dentre os atos inerentes ao poder de polícia, na medida em que, a partir do momento que não forem observadas as condicionantes previstas na licença, podem vir a ocorrer ilícitos247.

Desse modo, percebe-se que o licenciamento ambiental, pelo fato de ser preventivo, não deixa de guardar características do poder de polícia ambiental. Na verdade, os atos de concessão de licenças e autorizações ambientais são manifestações do poder de polícia ambiental justamente por influir diretamente na esfera individual do empreendedor, infligindo-lhes comandos de não agir, estipulados nas próprias condicionantes do licenciamento ambiental.

Na verdade, o uso da palavra poder faz parecer que essa atividade é, de todo, discricionária. No entanto, tal pensamento é inexato, na medida em que a polícia administrativa, ora pode ser expressa por atos discricionários, ora por atos vinculados. A fim de demonstrar tal fato, Mello aponta dois fatos típicos de manifestação do poder de polícia administrativa, enquanto as autorizações são expedidas de maneira discricionárias, as licenças refletem a atuação administrativa totalmente vinculada248

.

Em que pese guardar o poder de polícia atos discricionários e vinculados, o exercício do poder em si é sempre obrigatório, eis que tais prerrogativas são conferidas ao Estado para que busque o interesse público, ou seja, os poderes do Estado só poderão ser exercidos sob o manto da indisponibilidade do interesse público.

246

MILARÉ, Édis. Princípios fundamentais do direito do ambiente. Justitia, São Paulo, v. 59, n. 181/184, p. 134-151, jan./dez. 1998. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/23663>. Acesso em: 17 mai. 2012. p.137.

247

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente..., op. cit., p. 879.

248

Meirelles, nesse contexto, afirma que o poder é, na verdade, um dever do agente estatal para com a comunidade e os indivíduos, na medida em que estará sempre compelido a exercitá-lo249. Desse modo, “se para o particular o poder de agir

é uma faculdade, para o administrador público é uma obrigação de atuar, desde que se apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício da comunidade”250

. Complementando essa ideia, pontua Di Pietro

Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração têm o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão. Assim, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei; não pode deixar de punir quando constate a prática de ilícito administrativo; não pode deixar de exercer o poder de polícia para manter o exercício dos direitos individuais em consonância com o bem-estar coletivo; não pode deixar de exercer os poderes decorrentes da hierarquia; não pode fazer liberalidade com o dinheiro público. Cada vez que ela se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado251.

Desse modo, o poder de polícia é, na verdade, vinculado no sentido de que o agente estatal não pode escolher agir ou não em busca da prevenção ou repressão do dano, sobretudo quando se trata do dano ambiental marcado por sua frequente irreparabilidade, onde é imprescindível uma forte atuação preventiva. Assim, traduz-se num poder-dever. Especialmente acerca da temática ambiental, expõe Mirra que

o ordenamento jurídico impôs o dever de o Poder Público agir para a preservação do meio ambiente, estabelecendo, em textos legais, obrigações específicas a serem cumpridas, sem possibilidade de invocar-se liberdade, em termos de competência discricionária, do administrador quanto às condutas dele exigidas e ao momento para o final adimplemento das prescrições constitucionais e legislativas. Ressalte-se que se está diante de obrigações indispensáveis à garantia de um direito humano fundamental, expressamente consagrado (art. 225, caput, da CF), que supõe e exige uma determinada situação, um status a ser mantido ou restabelecido: o meio ambiente ecologicamente equilibrado252.

O artigo 225, da Constituição Federal de 1988, impõe ao Poder Público o dever de proteção ambiental, uma de suas atuações se dá pelo seu poder-dever de

249

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo ..., op cit., p. 107.

250

Ibidem, p. 107.

251

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo... op.cit, p. 64.

252

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. 1999. O problema do controle judicial das omissões estatais lesivas ao meio ambiente..., op.cit.

polícia administrativa, o qual é exercido através das atividades de fiscalização ambiental.

O dispositivo legal que impõe ao agente administrativo o dever de agir ante a iminência de danos ambientais, é o artigo 70, §3º, da Lei Federal 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe que a “autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de corresponsabilidade” 253

.

Nesse sentido, vale colacionar trecho de acórdão do Superior Tribunal de Justiça de relatoria do Ministro Herman Benjamin, o qual tratou acerca da noção do poder-dever de fiscalização ambiental a ser exercido pelo Poder Público.

O dever-poder de controle e fiscalização ambiental (= dever-poder de implementação), além de inerente ao exercício do poder de polícia do Estado, jorra diretamente do marco constitucional (em especial dos arts. 23, VI e VII, 170, VI, e 225) e da legislação infraconstitucional, sobretudo da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81, arts. 2º, I e V, e 6º) e da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes e Ilícitos Administrativos contra o Meio Ambiente). Muito bem lembra, a esse respeito, José Renato Nalini, o jurista e literato, que ‘a natureza do direito ao meio ambiente é aquela de um patrimônio público a ser obrigatoriamente garantido e tutelado pelos organismos sociais e pelo Estado. Ônus imposto ao Poder Público e à coletividade, com vistas a permitir que as futuras gerações também usufruam desse valor’ (Direitos humanos e o ensino do Direito Ambiental , in José Renato Nalini e Angélica Carlini [coord.], Direitos Humanos e

Formação Jurídica , 1ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 305254.

Ante a importância desse julgado para o nosso estudo, cabe tecer mais algumas considerações. Aprofundando essa ideia do poder-dever de fiscalização ambiental, o Ministro expõe que o Poder Público dispõe de diversas ferramentas para colocar este poder em prática, como

medidas administrativas de caráter preventivo, precautório, mitigatório, reparatório e sancionatório, passíveis, inclusive, de imposição cautelar e liminar, que incluem, entre outros, embargo da obra ou atividade irregular, demolição de construções, multa diária, apreensão de instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na

253

BRASIL. Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso em: 03 abr. 2012.

254

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.071.741/SP. Relator Ministro Herman Benjamin. 16 de dezembro de 2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200801460435&dt_publicacao=16/12/2010>. Acesso em 15 mai. 2012

infração (art. 72 da Lei 9.605/1998), sem falar do desforço imediato , referido no art. 1.210, §1º, do Código Civil255.

Diante dessa ideia de poder-dever, é fácil perceber, portanto, que a inércia ou omissão da Administração Pública caracteriza abuso de poder256

, sendo, portanto ilegal e ensejando responsabilização. Assim, a conduta omissiva da Administração que fere direito individual ou coletivo dos cidadãos deve ser reprimida, sobretudo, no que concerne à atuação diante de um poder-dever do Poder Público, como o é o de fiscalização ambiental.

Faz-se necessário, agora, entender o que caracterizaria a omissão do Poder Público no exercício de seu poder-dever de fiscalização ambiental.

De início, cabe trazer à baila o conceito de omissão dado por Cretella Júnior, citado por Gonçalves.

A omissão ‘configura a culpa “in omittendo” e a culpa “in vigilando”. São casos de ‘inércia’, casos de ‘não-atos’ . Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por ‘inércia’ ou ‘incúria’ do agente. Devendo agir, não agiu257.

Assim, ante o dever genérico imposto ao Poder Público de proteção ao meio ambiente, em certas circunstâncias, o ato omissivo é determinante para a ocorrência do dano ambiental. Desse modo, o agente pode vir a ser responsabilizado por sua omissão na medida em que poderia ter prevenido o dano, ou ao menos, mitigado seus efeitos258

.

Aliás, nesse diapasão, Milaré ressalta o fato de a Lei 9.605/98, em seu artigo 54, §3º, alçar os casos de omissão na adoção das medidas de precaução ao mesmo patamar daqueles casos em que o agente causa, por sua ação, a poluição, no caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível259

.

No que diz respeito à omissão estatal, a responsabilidade civil por omissão adquire importância, na medida em que é o Poder Público que tem as

255

Ibidem.

256

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo ..., op cit., p. 117.

257

CRETELLA JUNIOR, José. Tratado de direito administrativo. v.8 apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume IV: Responsabilidade Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 139.

258

LEITE, J.R.M; AYALA, P.A. Dano Ambiental... op. cit. p. 195.

259

prerrogativas necessárias para “evitar o dano, por uma ação de vigilância ou fiscalização”260

, detendo os meios necessários para tanto. Desse modo, a partir do momento em que o Estado se omite, ficará civilmente responsável.

Canotilho, citado por Leite e Ayala, aponta vários exemplos de condutas omissivas do Poder Público, as quais podem incorrer em dano ambiente, surgindo a obrigação de reparação.

a) nos casos em que as autoridades responsáveis não instituíram, contra o dispositivo da lei, controle sobre as emissões de estabelecimentos industriais, ou, nos caos em que uma autoridade, tendo conhecimento de situações de prejuízo para o ambiente, não adota o necessário procedimento de urgência (ex.: medida de polícia), destinado a impedir o mais que provável evento ambiental danoso; b) a não suspensão (ex.: através de embargos administrativos) de atividades urbanísticas edificatórias ilegais das quais resultaram danos para o ambiente; c) nos casos em que a lei previu expressamente a obrigação de agir de certas entidades, verificados certos pressupostos, e, não obstante esta imposição, o agente não adotou um ato formal autorizativo261.

Segundo Séguin, a omissão estatal enseja responsabilização, uma vez que a Administração deve ser guiada pelo poder-dever e, portanto, é compelida a agir262. Aliás, a autora afirma que a omissão é verdadeira afronta ao princípio da

eficiência estatuído da Carta Magna, norteador da atuação da Administração Pública, eis que “omissão não é exemplo de eficiência”263.

Pelo que foi abordado, é possível perceber o caráter preventivo das medidas inerentes ao poder de polícia ambiental, as quais se não devidamente exercidas ensejam a omissão estatal caracterizadora da responsabilização da Administração.

Seguindo essa linha, Juarez realiza excelente vinculação entre a prevenção, implementada pelo correto exercício do poder de polícia ambiental, e a omissão estatal e assevera

Este, o princípio da prevenção, no Direito Administrativo Ambiental, estatui, com aplicabilidade direta, que o Poder Público, certo de que determinada atividade implicará dano injusto, encontra-se forçado a evitá-lo, desde que no rol das suas atribuições e possibilidades orçamentárias. Dito às claras,

260

SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.413.

261

LEITE, J.R.M; AYALA, P.A. Dano Ambiental... op. cit. p. 194.

262

SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental... op. cit., p.100.

263

presentes os requisitos, tem o dever incontornável de agir preventivamente. Tal certeza está condicionada e limitada pelos conhecimentos dominantes na época da decisão, de sorte a não haver certeza apodíctica ou mecânica. Como quer que seja, há certeza suficiente, naquele momento histórico, de que determinado prejuízo acontecerá se a rede de causalidade não for tempestivamente interrompida. O ponto relevante é que não se admite inércia do Estado, sob pena de responsabilização proporcional. A omissão passa - ou deveria passar - a ser vista como uma causa jurídica de evento danoso, não mera condição. Eis, sem tirar nem acrescentar, o princípio da prevenção, nos seus elementos de fundo: a) alta e intensa probabilidade (certeza) de dano especial e anômalo; b) atribuição e possibilidade de o Poder Público evitá-lo; e c) o Estado arca com o ônus de produzir a prova da excludente reserva do possível ou de outra excludente do nexo de causalidade. Em outras palavras, na prevenção, antevê-se, com segurança, resultado maléfico e, correspondentemente, nos limites das atribuições legais, surge a obrigação de o Estado tomar medidas interruptivas da rede causal, de molde a evitar o dano antevisto. Para ilustrar, trata-se de iniludível dever de prevenção (não de precaução) o combate a futuros danos trazidos pela prática do tabagismo em lugares como aviões, uma vez que tais malefícios são sobejamente conhecidos. Não se mostra remotamente plausível a argumentação contrária, baseada em dúvida, salvo por arte do sofisma. Viável, assim, a outorga da tutela específica para que o Poder Público tome as providências obrigatórias de caráter preventivo264.

Sob esses aspectos, o poder de polícia é tão importante à proteção ambiental, pois, conforme já visto, o caráter de difícil reparabilidade do dano ambiental, exige uma postura mais preventiva, a qual apenas pode ser alcançada se o Poder Público fizer o devido uso de suas prerrogativas, garantidas pelo poder- dever de fiscalização ambiental. Assim, nesse contexto, as omissões estatais devem ser coibidas para o alcance de uma efetiva tutela ambiental e, para isso, faz- se necessário seu regramento pelos ditames da responsabilidade civil.

3.3 APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA À OMISSÃO