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PODER, DISCURSOS, CONTRADISCURSOS NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS . 70

5. OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: INTERESSES E PERSPECTIVAS SOBRE O

5.1. PODER, DISCURSOS, CONTRADISCURSOS NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS . 70

O poder é central nos estudos sobre o espaço social, podendo ser avaliado sob duas perspectivas, conforme Martinez-Alier (2011). Uma delas é o poder de um ator social sobre o outro – podendo ser expandido, aqui, para a hegemonia de um uso em determinado território. Essa concepção vai ao encontro do exposto por Raffestin (1993): nos estudos, o poder difere-se conforme o objeto de controle e dominação, que podem difere-ser três: da população, do território ou dos recursos. Martinez-Alier (2011) acrescenta a essa lista o poder de procedimento, capaz de impor a outros ou todos os usuários uma determinada linguagem de valoração como critério básico para julgar o conflito.

Nas análises sobre conflitos socioambientais, averígua-se que estes são permeados por jogos de poder, representado pelo capital, principalmente político e econômico, e quanto

maior o capital, maior probabilidade de “ganho” na arena do conflito (VIÉGAS, 2009). Nesse

aspecto, o Estado desponta como um ator privilegiado nas relações de poder21 e no

entendimento e estabelecimento de verdades22, dentro dos mais diversos campos.

Raffestin (1993), debatendo o poder na geografia política, aponta que o Estado é a maior das organizações, mas não a única que age no controle e dominação do espaço concreto

ou do espaço social23. Outras organizações canalizam as funções; bloqueiam, isolam e

dominam as disjunções; controlam, criando “um espaço de visibilidade no qual o poder vê, sem ser visto” (RAFFESTIN, 1993, p. 39).

O Estado tem papel crucial, ao expressar os interesses da classe dominante e lançar mão de políticas voltadas às classes subalternizadas. Mas, como abordado por Harvey (2004b), não se pode desconsiderar que o “dinheiro” e as finanças têm grande influência. Em realidade, os detentores do poder de investir tornaram-se importantes sujeitos na determinação das políticas econômicas, ambientais, urbanísticas, entre outras (ACSELRAD; BEZERRA, 2010). Esse poder, mascarado, se apresenta em um discurso ideológico que domina os valores a ponto de, frequentemente, a sociedade não suspeitar que é induzida a aceitar, sem questionamento, determinado conjunto de valores (MÉSZÁROS, 1989).

Nesse sentido, Viégas (2009) destaca que os conceitos, os programas, os planos, as avaliações e as análises técnicas, entre diversas outras formas de intervenção política, são instrumentos de percepção e expressão do mundo. O autor observa que, “se a disputa se dá no campo simbólico, os produtores de símbolos, legitimados e reconhecidos como tal, ocupam uma posição privilegiada já que detêm o discurso autorizado” (VIÉGAS, 2009, p. 151).

Não obstante, em um conflito socioambiental, o discurso autorizado entra em choque com os contradiscursos. Os atores sociais adentram em uma arena de disputa pela apropriação

21 O poder é aqui pensado como relacional; ele não existe em si mesmo, mas se exprime nas relações entre os atores sociais, conforme Foucault (2004).

22 Considera-se, aqui, que não há debates e conflitos sobre ‘a verdade’, mas sobre ‘qual verdade’. De acordo com Foucault (2004), cada grupo social ou cada coletividade constrói seu regime de verdade, ou seja, constrói os tipos de discurso que ela agrega para si, os mecanismos e as instâncias que permitem diferenciar enunciados entre verdadeiros e falsos, os modos de sancionar uns e outros, as técnicas e os procedimentos valorizados para a obtenção da verdade, o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

23 Raffestin (1993) destaca que é preciso diferenciar ‘Poder’ de ‘poder’. O primeiro refere-se ao conjunto de instituições e de aparelhos que garantem a sujeição dos cidadãos a um Estado, ou seja, refere-se à soberania do Estado, à forma da lei ou da unidade global de uma dominação. Nesse sentido, segundo expressa o referido autor, o ‘Poder’ se torna mais comum, marcante e habitual quando aparece envolto em sua dignidade de nome próprio; no entanto, afirmar que o ‘Poder’ é o Estado significa mascarar o ‘poder’. Esse ‘poder’ encontra-se, por vezes, nas mãos de agentes que não o Estado, como, por exemplo, o mercado, representado pelas grandes corporações, multi e transnacionais, ou outra das organizações atuantes, como igrejas, escolas, associações, entre outros. Essa visão vai ao encontro do que apregoa Foucault (2007) quando afirma que o poder está no discurso de diversos atores sociais, não apenas o Estado.

do espaço, com estratégias de legitimação do discurso, de enfrentamento e movimentos de resistência, em diferentes escalas, situação em que certos atores sociais detêm maior poder econômico e político e, portanto, maior capacidade de articulação e influência nas tomadas de decisão.

Quanto a isso, Viégas (2009) aponta que os discursos proferidos estão sempre relacionados à posição dos que os utilizam. Para proferir seus discursos, os envolvidos nos conflitos recorrem a diversas estratégias práticas e simbólicas, utilizando, inclusive, o apoio ou a validação do discurso autorizado (detentores de títulos acadêmicos, especialistas de prestígio, consultores ambientais, mandatários do Estado, entre outros). Esses discursos têm sido frequentemente mobilizados por formas dominantes de poder político-econômico para negar, questionar ou diminuir as contestações a respeito dos impactos ambientais (HARVEY, 1996b).

Sobre isso, Robbins (2012) aponta que, em tais disputas, determinados grupos prevalecem simplesmente por acessarem e mobilizarem poder para criar um consenso sobre a verdade. Ou seja, por meio do uso do poder, cria-se uma “verdade” a respeito de determinado local/ação/projeto.

Não obstante, quando os discursos são proferidos, são elaborados os contradiscursos, também respaldados por detentores de discurso autorizado. Os contradiscursos surgem quando o conflito se torna explícito. As vítimas nem sempre se constituem como sujeitos passivos, se organizando em movimentos, associações e redes (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2014), ambientalizando seus discursos, esboçando ações coletivas, seja questionando os padrões técnicos de apropriação do território e seus recursos, seja contestando a distribuição de poder sobre eles (ACSELRAD, 2010). É uma luta por reconhecimento, respeito e empoderamento (HARVEY, 1996b).

Cabe ressaltar a Licença Social para Operar (LSO), comumente presente no setor de mineração, mas também em outros setores potencialmente degradadores. Essa licença é um processo informal pelo qual os grandes empreendimentos passam, a fim de aumentar o “estoque de capital reputacional” (ACSELRAD, 2014), por meio de programas de responsabilidade social, medidas mitigatórias e compensatórias e, assim, ter apoio da população local (que, em realidade, se dá por meio de grupos de interesse).

Essas ações são possibilitadas pelo “vazio” deixado pelo Estado em setores como

saúde e educação24, possibilitando a atuação de agentes privados, que se estabelecem

comprometendo-se a suprir as demandas sociais locais. Ressalta-se que, para além do apoio da população, a licença social é um mecanismo que neutraliza críticas ao empreendimento, inclusive porque em diversos deles há meios de “participação social” na fiscalização das atividades. Essa licença se faz importante para executivos, pelo fato de poder inibir ações que possam encerrar ou barrar um projeto, oriundos de mobilização social, da comunidade local ou ativistas ambientais (SANTIAGO, 2016).

Conforme exposto por Santiago (2016), o nível de apoio dependerá das expectativas da sociedade com relação à forma como a empresa conduz suas operações e, também, às medidas socioambientais que impactem positivamente a sociedade. Esses atores sociais – incluindo os geradores do conflito, os favoráveis, os contrários e toda rede de apoiadores – se posicionam e se dispõem diferentemente entre si, se articulam ou se opõem, em um movimento constante, ocupando ora um lugar, ora outro (NASCIMENTO, 2001), como um jogo de xadrez, onde peças do adversário são cooptadas.

De forma simplificada, Nascimento (2001) aponta as posições possíveis de um ator social dentro de um conflito. Nesse caso, são conflitos em geral: a) Promoção: quando os atores sociais envolvidos no conflito estão dispostos a se movimentar com todos os seus recursos para que haja um determinado desfecho; b) Apoio: quando têm uma posição favorável a determinada iniciativa ou desfecho, mas não estão dispostos a se jogar com todas as suas forças ou processos; c) Neutralidade: quando, por alguma razão, não têm ou não querem assumir posição favorável a qualquer dos lados em disputa; 4) Oposição: quando se colocam contra determinadas iniciativas ou desfecho do conflito, mas não estão dispostos a utilizar todos os seus recursos; e 5) Veto: quando utilizam todos os seus recursos possíveis para impedir que o conflito caminhe em um determinado sentido.

Tem-se, ainda, o que o autor denomina de mediadores e de observadores. Ambos estão à margem do conflito, o presenciam, sem necessariamente tomarem partido ou sem estarem diretamente envolvidos nele. Os mediadores têm papel de mediação do conflito, enquanto os observadores são indivíduos ou grupos envolvidos marginalmente em um conflito, sem interesse definido. Estes, em geral, são as vítimas do conflito.

24 Acselrad (2014, p. 96) exemplifica o que a LSO representa: “conforme relata um executivo de grande mineradora multinacional na Amazônia: ‘- Antes os movimentos sociais nos criticavam dizendo que deixávamos na região apenas um buraco. Agora, é diferente, deixamos também uma escola ou um posto de saúde’”.

Há que se destacar que estão incluídos no grupo de atores sociais de promoção os responsáveis pelo conflito socioambiental, seja um empreendimento, seja o Estado, seja qualquer outro ator que se propõe a modificar o status quo. Cabe mencionar também que não fica claro em Nascimento (2001) se órgãos que cumprem papel técnico de licenciamento ambiental, por exemplo, seriam categorizados como atores sociais “neutros”, pois não há garantia de neutralidade no processo. Ademais, tais atores sociais não representam o papel de observadores ou mediadores.

A participação desses atores sociais vai sendo aprimorada, modificada, intensificada ou até mesmo atenuada conforme o conflito passe de uma etapa para outra. Quanto a isso, Little (2001) aponta cinco macroetapas para análise. A primeira é a confrontação, que pode ser de ordem política, econômica, física ou simbólica. A confrontação cria situações conflituosas que demandam atenção; portanto, o conflito latente se transforma em conflito explícito, tendo na confrontação tentativas de resolução. Depois, tem-se a repressão, tendo na ação policial ou militar sua expressão mais comum, assim como imposição estatal por meio de sanções ou multas. Tem-se também a manipulação política, processo que explicita que o uso de relações políticas clientelistas continua sendo um modo comum de fazer política. Para grupos sociais com pouco poder político ou econômico dentro de um conflito, a participação em formas clientelistas pode representar a melhor opção (LITTLE, 2001). Cabe mencionar que a manipulação política pode ser entendida também como cooptação de atores sociais envolvidos ou não no conflito socioambiental, de modo a angariar um aliado e agregar mais poder para um dos envolvidos na disputa.

O autor supracitado menciona ainda a negociação/mediação, que instala meios formais para seu tratamento, geralmente depois da utilização de outras formas. É comum que a mediação seja feita por uma pessoa ou um grupo externo ao conflito. Um dos aspectos positivos da negociação de conflitos socioambientais é a criação de espaços de cidadania fundamentados em ações conscientes e legais por todas as partes envolvidas, mas, por outro lado, se existem grandes assimetrias de poder entre os atores sociais, a negociação pode ter o efeito de sancionar uma imposição por parte dos grupos mais poderosos. Tem-se, também, o diálogo/cooperação, que é o tratamento que mais se aproxima da noção de resolução stricto sensu dos conflitos socioambientais. Não obstante, há o risco de um grupo se sacrificar em detrimento de outro. Entende-se que, nesse caso, ocorre um silenciamento dos afetados, que é feito, em boa parte, tendo como moeda de troca as ações compensatórias ou mitigatórias.

No constante movimento de atores sociais dentro da arena de conflito, há a tentativa de convencimento de outrem. Nascimento (2001) recorre à teoria dos jogos e destaca a trilogia “luta, jogo e debate”. Enquanto a luta visa à destruição ou à submissão do adversário, o jogo tem como objetivo vencê-lo sem destruí-lo. Por sua vez o debate – ação relevante para a presente pesquisa – possibilita que cada um dos participantes tente convencer o adversário ou ganhar os observadores ou a plateia com seu discurso e argumentos.

Nascimento (2001) afirma que os verdadeiros debates têm o objetivo mais de ganhar a simpatia dos que assistem a ele do que propriamente convencer o debatedor. Essa perspectiva tem grande importância para as análises feitas sobre o conflito socioambiental estudado, pois, ao analisar os argumentos, o discurso, faz-se necessário entender a quem se direciona e qual o objetivo da mensagem. O que se vê é que nem sempre visa-se ao convencimento do “adversário”, e o convencimento nem sempre vem acompanhado por um debate, mas reveste-se de outras estratégias, como a violência, a coerção e o próprio uso do marketing.

Pode ocorrer, também, a ausência de discurso por parte de certos grupos sociais, incluindo os próprios grupos afetados, indo ao encontro das categorias apontadas por Nascimento (2001). Nesse aspecto, há que se considerar a precariedade ou a falta de clareza das informações. Por exemplo, abordando os procedimentos de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos, autores como Zhouri, Laschefski e Paiva (2014) e Abers (2016) ressaltam que as audiências públicas são, não raro, o único momento de consulta às comunidades afetadas. Configura-se como a única oportunidade não apenas de consulta, mas também de disseminação de alguma informação sobre o empreendimento que se pretende instalar.

A falta de transparência, de informação, de conhecimento e de acompanhamento dos projetos desde seu planejamento comprometem a qualidade da participação social nas decisões (ZHOURI, 2008; RIBEIRO, 2008). Remete-se, aqui, à análise de Raffestin (1993) sobre a relação íntima entre poder e manipulação dos fluxos que atravessam e desconectam a relação, o saber, a energia e a informação. Segundo esse autor, a energia pode ser transformada em informação, portanto, em saber; a informação, por sua vez, permite a liberação de energia, portanto, de força. Com isso, a falta de acesso à informação impossibilita a obtenção de força. Essa condição amplia a possibilidade de uma porcentagem considerável da população não ter posição de protagonismo frente a dadas circunstâncias,

como em um processo de instalação de uma obra potencialmente poluidora ou que irá transformar a dinâmica social local.

No entanto, é necessário destacar que a não participação de grupos sociais pode estar relacionada a outros fatores para além da falta de informação ou conhecimento. É possível que ela tenha outras motivações, como a coerção, o medo ou o próprio desinteresse em participar dos espaços formais de discussão (inclusive por não se sentirem ouvidos ou porque a linguagem utilizada nesses espaços não compreende seu modo de vida e de valoração da natureza).

Nesse processo, a detenção de poder faz-se mister para a população local, para ser capaz de controlar seu próprio ambiente, com possibilidade de evitar se tornar objeto da vontade impostas por agentes externos ou dos imperativos de forças estruturais expansionistas (RIBEIRO, 2008). Nuñez (2009) expõe que a probabilidade de ganhos para os grupos sociais locais em um processo de disputa, como ocorre nos conflitos socioambientais, é maior quando sujeitos políticos locais se mantêm próximos aos instrumentos simbólicos de poder.

A existência de aliados poderosos (detentores de poder simbólico, econômico, cultural, entre outros), pode promover maior acesso às informações e incentivar a contestação por parte dos afetados. Tais aliados, por vezes, constituem redes entre atores estatais, entidades comunitárias e organizações nacionais e internacionais, conforme constatado por Abers (2016). No entanto, entende-se que aliados dotados de poder podem também interferir na autonomia e na autodeterminação dessas populações, uma vez que podem atuar de forma a induzir posicionamentos e ações que lhe convenham. Outra consideração da autora supracitada refere-se ao fato de a mera existência de instituições participativas formais não garantir a organização popular para delas participarem e nem mesmo exigir compensações. Portanto, o discurso precisa ser proferido em espaços formais e informais de discussão.

6. METODOLOGIA DE PESQUISA

Pesquisas que valorizam o discurso vão do dito ao não-dito, num movimento permanente entre o manifesto e o oculto, num afastamento dos sentidos imediatos para a identificação de sentidos contextualizados (Roque Moraes e Maria do Carmo Galiazzi, 2007).