• Nenhum resultado encontrado

A ZONA COSTEIRA COMO TERRITÓRIO USADO, DE RECLUSÃO E INCLUSÃO

4. USOS E PODER CONFORMANDO O TERRITÓRIO

4.2. A ZONA COSTEIRA COMO TERRITÓRIO USADO, DE RECLUSÃO E INCLUSÃO

As zonas costeiras são espaços contemplados pela confluência de pessoas, embarcações, mercadorias e significados (ANDRIGUETTO FILHO, 2004). É uma zona de usos múltiplos, pois em sua extensão é possível encontrar diversas formas de produção socioespacial e a manifestação das mais diferentes atividades humanas, perpassando desde as práticas e formas de vida de etnias indígenas até a instalação de indústrias; desde comunidades rurais tradicionais até metrópoles modernas. É o espaço de múltiplos territórios marcados pela diversidade e também conflitos (MORAES, 2007).

Os núcleos urbanos dos municípios que compõem a zona costeira16 concentram

milhões de habitantes, fazendo com que ela tenha densidade populacional média cinco vezes maior do que a média nacional (NAKANO, 2006). Não obstante, a zona costeira é heterogênea; os habitantes da zona costeira, conforme destacado por Andriguetto Filho (2004), distribuem-se de forma não igualitária, passando de áreas de adensamento populacional a amplas extensões de povoamento disperso e rarefeito, em grande parte ocupadas por comunidades tradicionais17 e indígenas.

As peculiaridades dessa zona, seus limites e contrastes nítidos, as heterogeneidades de paisagens naturais e construídas, as desigualdades entre a riqueza da urbanização ao lado da extrema pobreza das favelas ou de comunidades tradicionais rurais, os diferentes usos do espaço por grupos sociais mais variados, entre diversos outros fatores, são bastante evidentes no ambiente costeiro (ANDRIGUETTO FILHO, 2004). As populações tradicionais são formadas por sujeitos políticos, com usos, costumes, práticas, organizações sociais, traços culturais e modos de vida baseados em tradições que definem suas identidades. Em todo território brasileiro, lutam por direitos culturais, fundiários e territoriais, que geram deveres correspondentes. As territorialidades dessas populações são produzidas e utilizadas segundo

16 São considerados municípios da zona costeira os defrontantes com o mar; não defrontantes com o mar, localizados nas regiões metropolitanas litorâneas; não defrontantes com o mar, contíguos as capitais e as grandes cidades litorâneas, que apresentam conurbação; não defrontantes com o mar, distantes até 50 quilômetros da linha da costa e que contenham em seu território atividades ou infraestruturas que impactam ambientalmente na zona costeira ou nos ecossistemas costeiras de alta relevância; municípios estuarinos-lagunares, mesmo que não diretamente defrontantes com o mar; não defrontantes com o mar que tenham todos os seus limites com municípios defrontantes com o mar ou estuarinos-lagunares; e aqueles desmembrados de outros municípios já inseridos na zona costeira (BRASIL, 2004a).

17 Na zona costeira do Paraná encontram-se comunidades caiçaras, cipozeiras, quilombolas, pescadores artesanais e comunidades indígenas (Guarani Mbya) (CUNICO, 2016).

leis, instituições, integração coletiva e formas de liderança passadas de geração em geração (NAKANO, 2006). Nesse sentido, o uso do espaço é orientado à subsistência não apenas física, mas também cultural.

Nesse contexto sociocultural, a relação com o espaço e com o meio ambiente se dá de forma distinta daquela que envolve as sociedades urbano-industriais, pois as populações tradicionais vivenciam um espaço apropriado, onde as práticas sociais estão presentes em um processo contínuo de produção e reprodução da materialidade, das dimensões e das interações (LEFEBVRE, 2006).

Por um lado, a zona costeira como território usado é locus de boa parte da sociedade urbano-ocidental, inserida no sistema capitalista. Essa parcela da população tem origem não apenas na constituição de núcleos urbanos desde a chegada dos europeus ao território brasileiro e consequente expansão do povoamento, mas também em um fenômeno mais recente de expansão da fronteira econômica e de ocupação do território, em que os centros urbanos que cresceram em torno da atividade portuária e atividade industrial recebem fluxos migratórios em busca de oportunidades de emprego, renda e qualidade de vida (CUNHA, 2006), levando a inchaços populacionais.

Esse crescimento populacional e a expansão urbana derivada revelam um padrão de urbanização marcado por desigualdade, exclusões territoriais, vulnerabilização de populações e riscos ambientais (MORAES, 2007). Na busca por melhor qualidade de vida, fortemente influenciado pela expansão construção civil, um fluxo migratório expressivo chegou ao litoral, especialmente na década de 1990, sendo responsável por outra forma de urbanização: a favelização (MORAES, 2007). Agregados a isso, tem-se os fluxos sazonais de turistas, especialmente no período de verão (CUNHA, 2005).

Em decorrência, a questão fundiária é marcante nesse espaço produzido e dominado por meio do mercado de terras. Pode-se afirmar que os problemas mais expressivos no litoral brasileiro, especialmente nas áreas de expansão da ocupação, residem nos conflitos pela posse e propriedade da terra, mais especificamente por conta da sobreposição dos títulos de propriedade, com origem tanto na grilagem de terras quanto em processos de supressão de povoamento tradicionais (MORAES, 2007).

Por outro lado, as zonas costeiras são território indígena e/ou tradicional. O território é um importante elemento na relação das populações tradicionais com a natureza, podendo ser mais ou menos definido. Para os pescadores artesanais, o território é vasto, englobando terra e

mar, e sua posse é mais fluída. Para os camponeses, as dimensões territoriais são mais definidas (DIEGUES, 2001). Para os povos indígenas, a legislação nacional impôs a ideia de “terra”, a qual não se configura como sinônimo de território.

Sobre isso, há que se levar em consideração a importância da luta e da demarcação dos territórios tradicionais frente às novas fronteiras de acumulação do capital, referentes, principalmente aos ajustes espaço-temporais relacionados ao agronegócio e outras commodities. Emergem disso disputas territoriais (COSTA; MURATA, 2016). O território, bem como a desterritorialização, são categorias – políticas – essenciais no que se refere a denúncias e críticas aos impactos produzidos pelo avanço de certas frentes de acumulação capitalista e que ocasionam desagregação de usos, costumes e modos de vida tradicionais de comunidades indígenas e povos da costa, como jangadeiros, ribeirinhos, pescadores artesanais e caiçaras (NAKANO, 2006).

Também chama a atenção a despossessão de terras das populações tradicionais, que venderam seus terrenos por valor ínfimo ou, por vezes, foram submetidas à expulsão violenta (CUNHA, 2005). Os povos tradicionais são, assim, pressionados pela territorialização turística, e veem suas territorialidades alteradas (CANDIOTTO; SANTOS, 2009), embora tal alteração não se deva apenas à territorialização do turismo, mas também de outros setores, como o industrial-portuário.

Os empreendimentos imobiliários trouxeram a moderna sociedade de consumo, com ênfase na alta temporada, sendo comum o fenômeno da perda de identidade cultural dos mais jovens das populações locais, que não sentem motivação para continuar com a vida de pescadores de seus pais (CUNHA, 2005). Há também quem abandone as atividades tradicionais em decorrência da falta de incentivo à sua manutenção, como ocorreu na Ilha do Mel, onde a pesca artesanal sofreu depreciação ao longo do tempo porque os pescadores não tiveram estímulos por parte do Estado e tampouco das cooperativas ou qualquer outro órgão, inviabilizando ou tornando a pesca artesanal muito dificultosa e pouco rentável – tendo em vista seu caráter comercial. Assim, os pescadores passaram a se ocupar também (ou exclusivamente) de atividades do turismo (TELLES, 2007).

Também há diversas situações de conflitos ao longo da costa brasileira em relação aos pescadores. Os conflitos são os mais variados. Os que envolvem a pesca, por exemplo, se expressam na costa brasileira especialmente no que se refere à relação entre o uso tradicional, o industrial e de lazer (pesca amadora), além da atividade turística, da aquicultura e das

grandes obras de infraestrutura – como as relacionadas ao transporte, as plataformas de extração de petróleo, entre outras. Também se ressalta a atuação ou omissão do Estado, em especial no que se refere às políticas públicas (AZEVEDO, 2012).

Essa situação é exemplificada por Diegues (2001): pescadores precisam “disputar” a praia com o turista, criando, por vezes, regras de uso com sistema de “direito à vez”, fazendo da praia uma arena de confronto de códigos e direitos; comunidades são alijadas de seus espaços comunitários para dar lugar a empreendimentos imobiliários, com concordância do Estado. Isso quando não sofrem desterritorialização com a criação de UCs, dando origem à exclusão territorial (HAESBAERT, 2004a).

4.3. PRESERVAÇÃO E CONSERVAÇÃO AMBIENTAL NA ZONA