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PODER PROBATÓRIO DO JUIZ E AUTORITARISMO 36

PARTE II ASPECTOS RELACIONADOS À PRODUCÃO DA PROVA PELO

2   PODER PROBATÓRIO DO JUIZ E AUTORITARISMO 36

Ada Pellegrini Grinover85 alerta ser o ponto central dos processos individuais o incremento dos poderes do magistrado, não obstante “a soma dos poderes atribuídos ao juiz do processo coletivo é incomensuravelmente maior”.

Conforme expendido nos argumentos anteriores, a prova assume suma relevância no processo, já que, quanto mais provados estiverem os fatos, maior será a chance de o juiz prolatar decisão justa.

Fixadas essas premissas é emblemático entender o poder probatório do juiz como meio de superação da neutralidade do julgador, que deverá atuar energicamente para efetivação de direitos fundamentais consagrados, em todo caso, dentro da estrita legalidade.

Autores como José dos Santos Bedaque86, Joan Picó I Junoy87, Barbosa Moreira88, Michele Taruffo89, compactuam da premissa adotada no trabalho, de que o juiz possui amplos poderes de determinar de ofício a produção probatória, quando as teses jurídicas dos litigantes estiverem retratadas de modo insuficiente.

Nesse sentido, é dever das partes e do juiz atuar conjuntamente na instrução, na busca da igualdade e consecução do acesso à justiça, com respeito às garantias constitucionais, ao dever de informação e colaboração, posto que o magistrado não pode ser mera “boca da lei”, como escreveu Montesquieu90, pelo contrário, deve ele atuar de forma cooperativa.

Os juízes desempenham uma magna função ao cumprirem os fins colimados pelo processo. Para tanto, devem utilizar todas as ferramentas disponibilizadas pelo ordenamento

85GRINOVER, Ada Pelegrini; MENDES, Aluisio de Castro; WATANABE, Kasuo. Direito Processual coletivo

e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 13.

86 BEDAQUE, 2009, p. 48, nota 40.

87 PICÓ Y JUNOY, Joan. El derecho a la prueba en el proceso civil. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1996, p.

224-253.

88 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O neoprivatismo no processo civil. In: Temas de direito processual:

nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 88.

89 TARUFFO, 2006, p. 472, nota 72.

jurídico, com o fito de julgar bem sem, contudo, substituir o legislador ou agir em contrariedade a lei e aos direitos dos litigantes.

Resta clarividente a posição do magistrado como diretor do processo, sendo livre na busca das provas, tanto nas lides coletivas como individuais, já que é melhor sentenciar quando houver nos autos elementos de convicção, objetivando prestar a justiça por meio da adequada aplicação do direito. Em vista disso, é um contra senso inadmitir sua atuação ativa no desenrolar da ação, mormente a falta de prova representa um alijamento da garantia constitucional.

Nessa linha de ideias, entendemos que a regra inserta no artigo 130 do CPC é resultado da evolução social, política e cultural. Extrai-se daí que os poderes instrutórios do juiz estão intimamente ligados à noção de processo justo e efetivo. Contudo, há setores da doutrina contrários à concessão de maiores poderes ao juiz, sob o pretexto de corresponder a um autoritarismo. Para eles, “as coisas andarão tanto melhor quanto mais forem deixadas aos cuidados dos interesses em conflitos o que convém fazer ou não fazer para resolvê-los”91. Entendem que o incremento dos poderes do juiz é típico nas legislações autoritárias, emanadas de governos antidemocráticos.

Na linha de ideias de Micheli Taruffo92, um processo em que ao magistrado se confiram poderes instrutórios não implica em autoritarismo. Ao contrário, representa uma atuação dele em conjunto às partes, até mesmo para resolver questão a respeito da prova. O mesmo autor cita como exemplos de regimes ditatoriais em que estava ao livre monopólio das partes a condução do processo e a disposição sobre provas, o Código Napoleônico de 1806, que serviu de modelo a outros códigos do século XVII, como o Austríaco de 1815.

É imperioso afirmar ser o processo influenciado pela posição política adotada pelo Estado. No entanto, como destaca Barbosa Moreira93, é inconcebível associar que toda lei emanada de um governo autoritário será contrária às garantias democráticas. Isso porque há exemplos no Estado Brasileiro de leis criadas sob a égide do governo militar, mas de índole social e democrática, como por exemplo a Lei nº. 4717 de 1965, que regula a Ação Popular, e a Lei 7347 de 1985, que regula a Ação Civil Pública.

À guisa de ilustração cabe mencionar a Alemanha que, dentre as reformas introduzida na ZPO, em 1933, reforçou os poderes judiciais de esclarecimento e direção do processo, e

91 BARBOSA MOREIRA, 2007, p. 88, nota 88. 92 TARUFFO, 2006, p. 451-482, nota 72.

continuou em vigor por muito tempo, mesmo depois da queda do nazismo e divisão daquele país94. Ainda, no que concerne ao código Austríaco, de cunho social, não emanou de ordem constitucional democrática e subsiste nos dias atuais.

Resta inconteste o equívoco em associar os poderes probatórios do juiz aos regimes autoritários, pois nesses regimes reforça-se o Poder Executivo e não o Judiciário. Conforme ensinamento de Dalmo Dallari95, as ditaduras, por serem governos ilimitados, são contrárias à

independência da magistratura. Desta feita, nesses tipos de regimes, só se admite uma magistratura dócil e favorável ao governo, o que retira a possibilidade de atuar com ampla liberdade.

Nesse contexto, cita-se, no Brasil República, como exemplos de Constituições que restringiram os poderes do juiz, a de 1937 e a de 1967/1969. A Constituição Federal de 1937, conhecida como “Polaca”, limitou o âmbito de atuação dos juízes, a fim de garantir excessivo poder ao chefe do Executivo.

Ainda, durante o regime militar instaurado no Brasil, a partir de 1964, com a outorga do Ato Institucional nº. 01, de 9-04-1964, iniciou-se uma redução dos poderes dos juízes e ampliação do Poder Executivo, como se depreende da análise dos artigos 7º, § 4º do Ato Institucional nº. 01 e do Artigo 6º do Ato Institucional nº. 03, de 5-02-1966 96. A Constituição Federal de 1967/69, com a instituição do Ato Institucional nº 5, permitiu ao Poder Executivo demitir, remover, aposentar ou colocar em disponibilidade magistrados, além de suspender as garantias constitucionais da vitaliciedade e inamovibilidade.97

A partir das explanações acima infere-se que, para melhor servir aos regimes ditatoriais, os julgadores devem estar despojados de autonomia e reduzidos a meros instrumentos do

94 BARBOSA MOREIRA, 2007, p. 89, nota 88.

95 DALLARI, Dalmo de Abreu. Poder dos Juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 49-51.

96 Ato Institucional nº. 01, Art. 7º - Ficam suspensas, por 6 (seis) meses, as garantias constitucionais ou legais de

vitaliciedade e estabilidade.

§ 4º - O controle jurisdicional desses atos limitar-se-á ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que o motivaram, bem como da sua conveniência ou oportunidade.

Ato Institucional nº. 03, Art. 6º - Ficam excluídos de apreciação judicial os atos praticados com fundamento no presente Ato institucional e nos atos complementares dele.

97 Ato Institucional nº 5 de 1967: Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de:

vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.

§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.

Art 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

Executivo. Por isso, não merece prosperar o entendimento de autores que assemelham o incremento de poderes dos magistrados ao caráter antidemocrático de determinado regime político. Aqui, o que se vê são juízes presos ao rigor da estrila legalidade formal, que muitas vezes poderá ser manipulada pelos governantes.

Na Inglaterra, berço do Adversary System, adotou-se, em 1988, as Civil Procedure Rules, que outorgaram amplos poderes aos juízes no que concerne à atividade probatória. Houve o deslocamento do controle do processo das partes para o juiz. Tal fato não pode ser associado a um governo autoritário.

Sem esgotar o tema e pôr fim a celeuma objetivou-se demonstrar o erro em associar a concessão de poderes ao juiz aos regimes autoritários, posto que o caráter mais ou menos liberal do sistema político de um estado não serve de base a qualificar como autoritária a iniciativa probatória oficial98. Como entende Michele Taruffo99, as expressões “Poderes Probatórios do juiz-regime autoritário” e “Juiz Passivo- regime liberal” são vagas e genéricas, e se revelam desprovidas de valor científico.

Com essas palavras entendemos que independentemente do regime adotado poderá ser conferido aos julgadores amplos poderes. O que se deve perquirir são os motivos que determinam a necessidade de se ampliar os poderes dos aplicadores da lei na direção e instrução do processo como, por exemplo, na determinação de prova de ofício, e estabelecer limites ao seu exercício. A resposta só pode ser que, não há espaço para o juiz descomprometido, mas sim, deve ele ser atento à realidade histórica, aos dados do caso concreto, aos princípios que informam o sistema, ao mundo que o cerca, visto que dizer o direito não se resume à subsunção da lei ao caso.

Em contrapartida, é inviável interligar a atribuição de poderes ao juiz ao autoritarismo, ou entre a ausência de poderes e o sistema democrático Deve haver a justa medida entre ambos, afinal, o modelo de processo que se almeja é incompatível como a atuação passiva do magistrado frente às provas.

Nesse ponto, deve-se relacionar tais poderes a partir da análise do modelo de Estado que se almeja construir no Brasil que, de acordo com Alexandre Câmara100, é um “Estado Ativo”,

pois tem como fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e

98 PICÓ Y JUNOY, 2007, p. 117. 99 TARUFFO, 2006, p. 458, nota 72.

100CÂMARA, Alexandre Freitas. Poderes instrutórios do juiz e processo civil democrático. In: JAYME,

Fernando G.; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (Coords.). Processo civil: novas tendências:

como objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, garantir o desenvolvimento nacional, e promover o bem de todos.

Em conclusão, quando o juiz determinar, de ofício, a produção probatória o fará no exercício de sua função de julgar bem, atendendo as finalidades do processo, já que não há nessa atitude autoritarismo.

Dalmo Dallari101 adverte que um Judiciário independente do rei ou do governo é

necessário, contudo, se for independente da coletividade é um erro no governo republicano. Ou seja, respeitando-se os direitos constitucionais dos sujeitos processuais, não haverá óbices ao exercício, pelos magistrados, dos poderes que lhe são conferidos pelo ordenamento jurídico, já que o Poder Judiciário é fundamental, no sistema de freios e contrapesos, para impedir o excesso de poder, apto a destruir a liberdade.