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CAPÍTULO 5 – ESPACIALIDADES DA/NA POESIA DIGITAL

5.3 Poesia e espaço

Como se pode perceber por meio das explicitações acerca de “cibertexto” e comprovar com as categorias da poesia digital a serem retomadas no próximo capítulo, de um modo geral, as premissas de categorização consideram como critério as relações que se estabelecem entre autor/texto/leitor. Porém, se se observar bem, a consideração de fatores

88 Ibidem. 89 Ibidem. 90 Ibidem.

topológicos pode auxiliar de modo mais eficaz nessa tarefa, embora não seja objetivo do presente estudo propor classificações para a poesia.

Numa tentativa de resposta à pergunta já feita na seção anterior (o que há de novo na poesia desse meio?), supõe-se que, em uma primeira instância, seja o diferencial dessa poesia o fato de ser resultado de um processo algorítmico e, o que se analisa com maior ênfase no presente estudo, da relação do texto com o espaço.

Em textos com formato convencional linear, o trabalho feito pode ser detectado e acompanhado no momento da leitura, pois o poeta trabalha diretamente na materialidade do signo. Uma vez que se deu a elaboração do texto, o processo de estruturação dos signos é recuperado no ato de sua atualização.

Diferentemente disso, no poema digital, os signos advêm de códigos executáveis que são norteados por leis substancialmente diferentes da lógica da gramática verbal. A construção sígnica que pode ser vista na tela ou com a qual o leitor pode interagir é apenas reflexo de um processo intrincado do código binário que forma a linguagem computacional.

São sistemas de códigos de programação e cálculos matemáticos que possibilitam o surgimento do texto digital, bem como de toda a produção em arte nesse meio e que fazem com que essas manifestações sejam únicas no cenário artístico. A escrita poética que já trazia como marca o destaque para a materialidade do signo, agora de constrói por meio de códigos ilegíveis ao humano na sua integralidade.

A operação de atualização do texto não pode mais contar apenas com a predisposição do leitor em acompanhar o trabalho do poeta, mas de, por meio da máquina, executar um código. O que o computador faz, é muito semelhante à ação do músico ao ler a partitura e transformar códigos em música. Assim, para além de uma máquina determinista, o computador se torna peça fundamental no processo de criação e recepção do poético e pode, além da leitura de códigos programados, lidar com dados que o leitor pode inserir em determinadas plataformas ou mesmo ser um agente no processo quando a inteligência artificial se faz presente.

Como John Cayley afirma, “the presence and operation of code is, in many though not all instances, a significant part of the complex physical makeup of electronic text and is often a sine qua non for the operation of its signifying strategies” (2006, p. 307).91

Há uma série de elementos no processo de codificação que precisam ser “carregados”, combinados para que a superfície de leitura do texto se torne visível no ato de sua atualização. Como quer N. Katherine Hayles,

there are data files, programs that call and process the files, hardware functionalities that interpret or compile the programs, and so on. It takes all of these together to produce the electronic text. Omit any one of them, and the text literally cannot be produced. For this reason it would be more accurate to call an electronic text a process rather than an object92 (HAYLES, citado por CAYLEY, 2006, p. 310).

Quando se considera a questão do código de programação, consegue-se compreender mais profundamente porque o poema digital é processo e não produto. Além disso, é por causa das intrincadas relações possibilitadas pelo código executável que se costuma dizer que o texto digital é inseparável das condições de produção. Até mesmo o tráfego de dados no momento de execução pode alterar a forma de apresentação do texto. Os textos impressos também são marcas da sua própria condição de produção, porém, no texto digital, essa condição fica sempre em estado de latência à espera do acesso do leitor não só para se atualizar no ato de leitura (como no impresso), mas para vir à superfície da tela, em outras palavras, para mostrar sua natureza de existente.

Assim, a materialidade da poesia não se altera apenas na aparência. O modo de registro e a flexibilidade do código digital alteram a epistemologia do fazer textual. O registro não coincide mais com a mensagem lida. Isso, em um primeiro momento, poderia ser apenas simplesmente um modo diferente de registrar, mas implica mudanças profundas na natureza do texto poético. As possibilidades de atravessamentos sígnicos se potencializam, dessa forma.

De um modo geral, pode-se dizer que há sempre agentes humanos e não humanos na constituição dos experimentos digitais. Nos procedimentos de criação e recepção, não há como separar código e superfície. Entende-se por superfície, o texto que se vê na tela; o texto, que já era apontado por várias tendências críticas e estéticas como múltiplo, se torna executável.

This "strong sense" code is integral to all textuality, although it might be objected that this claim would be hard to substantiate before the historical advent of demonstrably programmable media. There have always been programs, I would

92 “Há arquivos de dados, programas que chamam e processam os arquivos, funcionalidades de “hardware” que interpretam ou compilam os programas, e assim por diante. Tudo isso é tomado em conjunto para produzir o texto eletrônico. Omitido qualquer um deles, e, literalmente, o texto não pode ser produzido. Por este motivo, seria mais correto chamar um texto electrónico de um processo ao invés de um objeto.” (Tradução nossa).

answer, and these programs are a necessary aspect of the materiality of language– an ever–present aspect of mediation between a text's physical characteristics and its signifying strategies. The difference lies in where-literally, and also within cultural structures and hierarchies-these programs run, and it also depends on who writes and runs them (CAYLEY, 2006, p. 314). 93

Como quer Roger Chartier, “assim, quanto à ordem dos discursos, o mundo eletrônico provoca uma tríplice ruptura: propõe uma nova técnica de difusão da escrita, incita uma nova relação com os textos, impõe-lhes uma nova forma de inscrição” (2002, p. 23-24). Se o foco de análise forem as relações entre meios e linguagens, há que se reler McLuhan sob outra perspectiva.

O meio era a mensagem quando se falava em meios de massa cuja formatação era unificada e a apresentação tinha, de um modo geral, o mesmo aspecto de uma matriz apresentada para um grande grupo. No digital, isso não funciona mais, dadas as infinitas variações que ele possibilita, como já se disse. A mesma mensagem pode se apresentar sob várias formas e também ser gerada por vários mecanismos de codificação, além das condições de recepção também serem diversas daquelas dos meios massivos.

Mais que em qualquer época, sistemas operatórios e superfície se encontram substancialmente em transformação. Quando a poesia vai para o meio digital e para o ciberespaço, ela não muda só sua forma de criação ou apresentação, ela altera sua própria epistemologia. É por isso que se insiste, no presente estudo, para que se altere também o modo como se avalia essa poesia.

Se se observar bem, não é possível pensar em todos esses traços inovadores sem a consideração do espaço e das espacialidades que os articulam. Se os melhores experimentos na poesia que se pesquisa no presente estudo são possíveis no espaço digital, a consideração desse é fundamental.

Como já se disse, na sua forma oral, a poesia, já contando com a musicalidade natural (já que poesia e música formavam uma substância só), empregava o espaço para se realizar como evento, quer seja por meio do teatro, quer seja em situações festivas quando era cantada por intérpretes contratados. Assim, se instaurava uma espécie de ambiência para que

93 “Nesse ‘sentido forte’, código é parte integrante de toda textualidade, embora possa ser contestado que esta afirmação seria difícil de confirmar, antes do advento histórico da mídia demonstravelmente programável. Sempre houve programas, eu responderia, e estes programas são um aspecto necessário da materialidade da linguagem, um aspecto sempre presente de mediação entre características físicas de um texto e suas estratégias

o contato com o poético acontecesse. O texto era performance sonora e dramática no espaço físico-social.

O que ocorre depois disso é um investimento na materialidade do texto e um distanciamento, de alguma forma, das práticas do e no espaço. Com o advento da imprensa, quando a poesia se separa da música, torna-se necessário um exercício de adaptação para que, na forma escrita, o texto, que já possuía regras estruturais, recupere, no ato da leitura, a musicalidade de antes, pois a espacialidade da página não é suficiente para a construção do poético como evento. A tipografia também serviu para alimentar as explorações em espacialidade por meio dos jogos visuais e combinatórios, como se pode perceber intensamente no Barroco. Porém, esses exercícios passam a ser bem menos valorizados em prol da supremacia do verbal. Como afirma Glazier,

[...] de fato, se consideramos o vasto papel que a imagem desempenhou na escrita em geral (pinturas rupestres, escrita chinesa, escrita hieroglífica), a era do códex pode ser considerada como um período aberrante quando o texto e a imagem foram temporariamente isolados um do outro (GLAZIER, 2001p.169, citado por SANTAELLA, 2007, p. 335).

O que se precisa perceber por meio dos aspectos históricos das formas de construção do texto poético é que, por um lado, a experimentação em linguagem acompanha e subverte os aparatos técnicos de uma determinada época para fazer advir o que há no limite na linguagem. Por outro lado, a exploração do elemento espaço na poesia é tão antigo quando ela mesma.

Retomando as ideias de Heidegger apresentadas na primeira seção deste capítulo, pode-se afirmar que, ao se constituir, a poesia que “emerge” do digital cria também um mundo outro por meio do elemento ciber. Na verdade, ela remodela o ciberespaço que, de experiências pautadas numa economia da sociabilidade e do consumo, passa a possibilitar experiências estéticas inimagináveis por meio do suporte papel. E, diga-se de passagem, isso não acontece apenas com a poesia digital, mas com a arte como um todo que se dispõe a se inserir no emaranhado reticular que forma o digital e o ciberespaço.

Para facilitar a observação do espaço no qual a poesia digital se encontra, torna-se necessário considerar os modos como ele é constituído e isso só é possível quando se observam suas espacialidades.

Considera-se espacialidade o modo como os objetos se apropriam do espaço ou como esse é capaz de se adequar à presença daqueles. Esse elemento é de inegável importância, pois, por meio dele, é possível perceber e analisar a categoria de espaço com a

qual se trabalha. Em outras palavras, o espaço se dá a conhecer por meio de suas espacialidades cuja semiótica, em se tratando de poesia digital, permite entender como o texto pode significar por meio de uma apropriação do entorno.

Espaço e arte são elementos que nunca estiveram separados. O que se fez ao longo da história foi evidenciar as implicações de um sobre o outro, mesmo que tal relação nem sempre tenha sido considerada de modo consciente, mas de forma intuitiva. Na verdade, se se observarem, as próprias inscrições rupestres pré-históricas são implicações da imposição do espaço sobre os modos de vida.

Porém, considerada como procedimento explícito, a preocupação com a espacialidade nas artes se evidencia de modo irrevogável a partir do Renascimento por meio da perspectiva, e é justamente um dos pontos de maior discussão das vanguardas do início do século passado, quando a lei da proporção passa a ser substituída por imagens desfocadas, deformadas, multifacetadas em situações de múltiplos pontos de vista.

O que os séculos seguintes à Renascença fazem é continuar a pesquisa em perspectiva até que, desgastada num mundo cujas técnicas ofereciam outras possibilidades de criação para além da representação como entendida pelos renascentistas, ao longo do século XX, ela é substituída pela expansão do caráter espaço, não só nas artes plásticas, mas também na poesia. O que se processa atualmente é uma reverberação das espacialidades, sobretudo no meio digital.

O espaço deixa de ser elemento sugerido ou representado pelo objeto estético para se tornar parte materialmente integrante do processo. Não é sem motivos que a videoarte nasce, sobretudo, como instalação, pois necessita da intervenção num determinado espaço (e tempo também) para acontecer. Também não é sem razão que os atos políticos dos poetas do Poema-Processo se faziam por meio de ações públicas, como já se viu no primeiro capítulo.

Quando a arte e a poesia passam a ser construídas no meio digital, sobretudo em sua constituição ciber, o que se tem, sob esse ponto de vista, é uma ampliação dessas interpenetrações arte/espaço que já vinham acontecendo. Como o texto agora, mais do que nunca, se encontra no meio informacional, o que acontece é uma relação de imbricação das possibilidades que, juntos, eles podem agenciar.

O espaço se mostra funcionalmente, em arte, sob três categorias distintas: como suporte, como mediação e como entorno físico e virtual. A retomada dessas categorias é necessária no sentido de auxiliar a demonstração dos modos de a espacialidade acontecer em

Na categoria do espaço como suporte, abordam-se os meios empregados para que o texto chegue ao seu leitor. Espaço é o que dá sustentação ao texto, que contém o texto. A princípio, esse espaço seria, então, mero depositório para a informação estética, sem quaisquer implicações para a natureza do texto. Porém, a historicidade desse espaço comprova que, mesmo nesses casos em que o texto está num determinado meio, mas poderia estar em outro sem prejuízo para a sua constituição semiótica, as práticas circunscritas por esse suporte podem ter implicações diretas no modo como o objeto que ele “guarda” é visto.

Com as práticas de impressão, criou-se, para o texto poético, uma tradição como arte da palavra escrita que, erroneamente, levou e ainda leva à inobservância de textos visuais como poemas, de fato. Isso comprova que, em certa parte, embora seja o texto que escolha o seu suporte, o suporte também, bem ou mal, agrega valores ao texto. Quando o texto migra do papel para a tela, sua constituição estrutural sofre alterações, pois obriga a criação de uma articulação que facilite o sistema de remissões. Por isso, um texto escrito para ser lido no papel pode proporcionar experiências diferentes quando acessado por meio da internet, por exemplo.

A poesia própria da página e da tradição oral erige, durante a leitura, um mundo do pensamento, um espaço psicológico. Por isso, sua disposição no papel não forma propriamente um elemento semiótico, assim, pouco importa se ela, a poesia, está impressa no papel ou em qualquer outra superfície. Porém, quando ela começa a suscitar outras explorações, o suporte é subvertido. A poesia para representação, por exemplo, se liberta do espaço da página enquanto registro para habitar o espaço do palco, da representação, da encenação e, nesse sentido, ela não é o mero texto que se compõe, mas todo o seu conjunto de elementos do gênero dramático ao qual ela passa a pertencer.

É nesse sentido que se podem considerar propostas de trabalhos do passado, como a de Mallarmé, por exemplo, subversivas, pois, com o suporte papel não se conseguiria, operacionalmente, alcançar o resultado que seu autor desejava – o papel tende ao linear e a proposta de “Le Livre”, no caso, não tinha nada de linearidade.

O rompimento do texto com a discursividade própria do papel faz com que o espaço no qual ele se encontra não seja mais meramente suporte. Assim, quando esse suporte começa a tocar direto o plano da criação deixando de ser mero receptáculo para atuar como linguagem no espaço interno do texto, passa-se a outra esfera de consideração – o espaço passa a funcionar como mediação.

Ao pensar no caráter de mediação, pensa-se em um texto que se molda conforme as mudanças operadas no espaço no qual se encontra e vice-versa.

Sem considerar que a leitura pode variar de um leitor para o outro, quando “linear”, um poema escrito no papel é o mesmo enquanto texto, mesmo que a folha comece a deteriorar. Porém, o texto no ciberespaço não é o mesmo quando se alteram as características do sítio onde se encontra. Até a materialização do texto na tela pode ser diferente de um computador para outro, sobretudo nos quesitos formas e cores, conforme variação dos pixels ou mesmo dependendo da qualidade e configuração do equipamento receptor.

Dessa forma, é fácil notar como a poesia digital se forma nas dobras do espaço estriado que é o meio ciber e que pode passar, assim, a atuar muito mais que um mero suporte, pois se torna um espaço midiático, sobretudo.

Então, como pensar a apropriação do espaço no entorno que habita o ciberespaço para que seu aproveitamento demonstre uma concepção semiótica de que o meio não é apenas depositório de informações a serem transmitidas, mas comprove sua apropriação como integrante da materialidade do texto poético?

Ao mesmo tempo em que se cria um espaço para que, nele, essa poesia possa se instalar, há também que se preocupar com o meio como sustentação de linguagem, quer seja quanto aos aspectos de sua visualidade, quer seja por meio de outras funções que acionem o sistema de articulação do texto em direção àquilo que o mantém como texto poético e, ao mesmo tempo, àquilo que define sua natureza, sua individualidade de existente (em termos semióticos).

Tendo em vista todos esses processos, esse espaço-mídia, ao ser conclamado a participar da constituição ontológica do texto, instaura, por vezes, circunstâncias tais que fazem o espaço passar de mediação para ambiente por meio de sua constituição como entorno (físico e/ou virtual). Além de mediação, trata-se, também, de um espaço-habitação, numa apropriação das ideias de Heidegger já explicitadas.

Como já se disse anteriormente, há textos que só existem num determinado espaço sem o qual começam a se desfazer. Nesse sentido, trata-se de textos que só existem como tais no espaço em que estão construídos e mais, na situação em que se encontram e para a qual são programados.

Nesse conjunto, os textos construídos para o meio digital com consciência semiótica auxiliam a responder, pelo menos a princípio, a uma pergunta: o que falta nos

ilustrativos de uma determinada tecnologia? Numa postura irônica, imitando certo aluno que, perguntado pela professora sobre o que faltava à resposta do outro aluno para que ela se tornasse correta, afirmou “a resposta, professora”, poder-se-ia dizer que falta a esses experimentos o texto propriamente dito, pois que não passam de exercícios embriagados pelos aparatos e que só fazem sentido num primeiro momento de descoberta de linguagem. Falta o texto porque o texto, no caso, é muito mais que a simples amarração de vocábulos por meio da sintaxe, é a estruturação de uma sintaxe outra, amálgama de sistemas semióticos diferentes que, mais que incrustados, se encontram metamorfoseados em espacialidades numa proposta epistemológica diversa daquela do poema mais convencional.

Já se está em uma fase das descobertas de aplicação do meio digital para a arte em que se cobra com mais rigor que o poeta assuma a postura de maior consciência do meio que ele emprega para a construção de seus textos, para que esses deixem de ser meros resultados do fetiche tecnológico.

Esse espaço que o texto habita de tal forma que dele passa a não se distinguir, é o espaço-ambiente. Não se trata de mera transposição de nomenclaturas, mas de uma forma diferente de “abrir a clareira” para o texto poético que, por sua vez, demanda textualidades múltiplas, como será visto mais adiante. Se se pensar bem, esse espaço é a soma dos dois anteriores porque continua sendo receptáculo e atua como linguagem. Porém, suas implicações na interioridade do texto são mais profundas, apresentando a propriedade de constituir com o texto que nele se encontra uma substância única.

O que se percebe, por meio das reflexões do presente capítulo, é que as