• Nenhum resultado encontrado

Videoarte, videopoesia e holopoesia

CAPÍTULO 2 – POESIA, ARTE E COMPUTADOR:

2.3 Videoarte, videopoesia e holopoesia

A videoarte traz a inserção da temporalidade como um dos grandes ganhos na arte e na poesia (quando da videoarte deriva a videopoesia). Sendo entendida como uma experimentação audiovisual caracterizada pela interpenetração de signos provenientes de vários regimes semióticos, pois envolve a imagem, o áudio, o texto, a animação, dentre outros, esse tipo de trabalho foi decisivo para as mudanças na arte da década de 1960 até a contemporaneidade.

Além dos trabalhos do grupo Fluxus, em si, dentre os pioneiros da videoarte, podem ser citados Nam June Paik e Wolf Vostel. Vostel criou trabalhos multimídia abarcando

performances e happenings tendo aparelhos de TV como componentes desses processos. Preferia atuar em lugares públicos para um maior envolvimento do espectador e para, provavelmente, atingir melhor o objetivo de crítica da realidade muito presente em seus trabalhos.

Vostel apresenta trabalhos variados. Ready-mades, performance, ambientes, vídeo. Suas investigações estão quase sempre ligadas à problemática da destruição, da ruptura, do estado permanente de tensão entre os seres e as coisas, a realidade mental e a realidade material. Em seus happenings e instalações, ele faz uso de alguns símbolos de nossa sociedade de consumo, como o automóvel, a TV e o avião (FRANCO, 2002, p. 69).

Paik, em suas experimentações, causa ruído na imagem eletrônica e inaugura, de certa forma, os princípios da videoarte, mais tarde desenvolvidos, inclusive por ele mesmo. Depois de entrar em contato com a, então, chamada nova música (John Cage, por exemplo), por volta de 1963, ele começa a distorcer imagens na TV. Com o auxílio de um ímã, ele percebe que é possível alterar a trajetória dos feixes de elétrons no tubo de varredura, o que faz quebrar a coerência figurativa das imagens. Nessa época, chegou a projetar um trabalho de teletransmissão de TV para a costa oeste do Oceano Pacífico, entre São Francisco e Shangai. Em 1962, alugou um pequeno estúdio e iniciou experiências em televisores com a colaboração de engenheiros. O que Paik fazia consistia em causar um distúrbio no canhão de elétrons. É o que se pode ver em Magnet TV (1965). Vostel, na instalação 6 TV-dé-coll/agen (1968), apresenta seis televisores transmitindo imagens abstratas, segundo um princípio de desestruturação do fluxo eletromagnético.

Então o que ele vai trabalhar é no conceito básico dessa imagem. Onde é o básico dessa imagem? É uma junção de elétrons que está aí no ar através de ondas. Então ele vai mexer na base dela que é o quê? As ondas, no canhão de elétrons. Quando ele coloca um ímã ali na televisão ele está mexendo no canhão de elétrons. O canhão de elétrons é realmente o que está criando o suporte dessa imagem. Essa imagem só existe na sua junção de elétrons. Então ele muda aquele suporte e começa a fazer arte. Por quê? Porque ele começa a fazer imagens abstratas com aquelas imagens que eram totalmente representativas, eram pessoas falando, paisagens. E, quando ele coloca um ímã, vai ficar uma imagem abstrata que não tem... que estava sendo feita naquele momento e nunca mais existiria. Então ele muda, estoura o conceito de arte, estoura o conceito de suporte da arte e passa a criar um outro tipo de arte [...] (ALMAS, citado por FERREIRA, 2003, p. 73).

O vídeo traz para a arte o fator temporalização. A imagem eletrônica não existe no espaço, mas no tempo de sua exibição, no tempo de varredura da tela. Para Paul Virilio, vídeo é dromosfera (do grego dromo, corrida), espaço da velocidade sem outra referência que o elétron, sua partícula elementar. (citado por MACHADO, 2001, p. 48).

Além disso, o vídeo é um meio que, dada a precariedade das imagens e as lacunas, por isso, deixadas, se abre ao receptor. É nesse sentido que Marshall McLuhan define vídeo como um meio frio (MACLUHAN, 2002, p.38). Para ele, um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em “alta definição”, entendendo por alta definição um estado de alta saturação de dados. Um meio frio é aquele que abre um espaço maior à interatividade, ou seja, nele há mais espaços a serem preenchidos pelo receptor. Um meio quente permite menos participação que um frio: uma conferência envolve menos que um seminário, e um livro menos que um diálogo.

Vídeo é, antes de tudo, imagem iridescente, imagem-luz, em que a informação plástica coincide com a fonte luminosa que a torna visível. Tecnicamente ele não consiste em outra coisa que um ponto luminoso que corre a tela, enquanto variam sua intensidade e seus valores cromáticos (MCLUHAN, 2002, p.52).

Então, vídeo é metamorfose em seus processos de gravação, edição e apresentação. Flexibilidade e maleabilidade são suas principais características estetizadas pela videoarte.

A imagem imaterial, assim concebida no suporte vídeo, rompe com uma série de valores e formas tradicionais. Por não ter compromisso com a figuração, o vídeo propõe uma nova iconosfera, obtém resultado expressivo com uma flexibilidade que é negada ao cinema, diluindo a imagem, deformando-a, mesclando-lhe as cores, distorcendo-a e sobrepondo-a a outras imagens. Assim como a televisão, possui estrutura fragmentária, ao contrário da narrativa cinematográfica clássica, que se baseia nas leis da continuidade (FERREIRA, 2003, p. 67-68).

Ao tornar arte aquilo que a televisão oficial e o cinema consideram erro (granulosidade, nebulosidade, hipercoloração, deformação da relação espacial entre as linhas), a videoarte contribui para a quebra de paradigmas em processo desde quando se começou a falar em crise da representação. Além disso, a imagem na videoarte nunca é, fisicamente, a mesma, tendo em vista a fragilidade do sistema de registro e também a prática muito recorrente de sua associação a outros aparatos e materiais durante uma apresentação, como, por exemplo, quando o vídeo é utilizado em performances ou quando se criam videoinstalações.27

[...] o vídeo tende a superpor tudo, saturando de informação o espaço da representação. No limite, o destino do sintagma videográfico é acumular todos os planos num único quadro, como já acontece nos trabalhos mais radicais de Nam June Paik e do casal Vasulka, onde há um imenso encavalamento de imagens no interior de cada plano (MACHADO, 2001, p. 50).

Tendo em vista os experimentos do grupo Fluxus aos trabalhos atuais, é possível afirmar que alguns dos fundamentos da videoarte são:

 preocupação constante com a participação;

 emprego de sons e imagens, numa priorização do aspecto sensorial;  pesquisa na multiplicidade: hibridismo de linguagens;

 distanciamento do original: para a arte eletrônica, o objeto original não interessa, pois a imagem já constitui uma realidade em si.

Como se percebe, a videoarte se apresentou como uma forma de expressão plural, desde o início, mantendo estreitas relações com as artes plásticas (pintura, escultura,

performance) determinadas pela característica peculiar da imagem eletrônica (o seu ser tátil). Videoarte e videopoesia surgem basicamente na mesma época. O primeiro trabalho em videopoesia de Melo e Castro data de 1969, com o título de Roda Lume.28 Como na videoarte, no videopoema, o espaço, a cor, o movimento e demais técnicas, como corte,

zoom, plano de sequência ou (des)sincronização entre imagem e som, assim como o ruído, são elementos semióticos.

27 A facilidade de acesso ao vídeo por meio do aparecimento da primeira câmera de vídeo e videogravador portáteis, Portapack, em 1965, pela Sony (Nova Iorque), fez com que as tendências estéticas se multiplicassem nas últimas décadas do século XX, dando espaço ao surgimento de uma série de festivais.

28 Esse trabalho não é mais acessível porque, após a transmissão num programa de informação literária, foi destruído pela RTP – Cf. MELO e CASTRO. 1998, p. 64.

Em pesquisa anterior, por ocasião de dissertação de mestrado, foi considerada a ideia de que a videopoesia é formada por processos de intersemiose. No videopoema, o vídeo é friccionado com a literatura, o cinema, a pintura, a escultura e as artes gráficas, que trazem para esse suporte a sua linguagem, por meio da intersecção sígnica, ou seja, da intersemiose, princípios que não lhe são inerentes (FERREIRA, 2003, p 95).

Como um dos processos de linguagem da videopoesia se encontra na animação, alguns dos experimentos analisados neste estudo (capitulo 6) são também conhecidos como videopoesia, mesmo construídos em meio digital, pois se fizeram, inicialmente, registrar em suporte vídeo. Denominá-los videopoesia ou poesia digital animada não parece ser conflitante, uma vez que, realmente, essa primeira vertente do que hoje se disponibiliza em meios digitais começa com as experimentações em vídeo.

Como afirma Álvaro Andrade Garcia,

Texturas, cores e formas revestindo e fazendo fundos para as palavras permitem a superposição de elementos das artes plásticas no encadeamento sintático dos poemas. A videopoesia aproxima imensamente essas duas formas de expressão, tradicionalmente tão afins. A espacialidade dos poemas se torna premente nas programações. As palavras são objetos compostos e adornados segundo novas inspirações que se aglutinam ao sentido inicial do poema. (2000)

Numa perspectiva mais arrojada que o vídeo, a holopoesia é criada por Eduardo Kac como uma tentativa de renovar o repertório da poesia visual considerada por ele desgastada quando da década de 1980. Não é sem motivos que, num dos textos da época, Kac, entusiasticamente, defende a nova manifestação estética: “...porque é preciso criar verbivocovisomemo-lumiperceptualmente porque é preciso reaprender e recomeçar tudo de novo porque a holopalavra é evanescente e intangível porque a holopalavra é uma imagem real e virtual...” (2004, 293-294).

Uma vez que as vanguardas trouxeram ao poeta a liberdade de arquitetar o verso, era agora necessário libertar as palavras da bidimensionalidade, colocando a poesia no espaço físico. “É por essa razão que o poema adquire independência do suporte e, em termos de imagem real, permite que o espectador passe a mão entre a página e sua projeção holográfica” (Kac, 2004, p. 278).

Um filme fotossensível recebe, simultaneamente, a luz directa do laser e a luz laser reflectida por um objeto. Ambas interferem entre si, gerando na emulsão holográfica um padrão ótico geométrico que é o holograma, ou seja, a informação visual e espacial do objecto [...] se baseia no domínio total da luz, na imaterialidade e na

Ao se tornar pura luz no espaço físico, a holopoesia caminha numa linha de ruptura com a lógica do texto gutenberguiano iniciada pelas vanguardas e outros poetas já retomados no primeiro capítulo deste estudo. Na holopoesia, o verbal pode se tornar elástico, passar do legível ao ininteligível e mesmo apresentar duas palavras ocupando o mesmo espaço.

O primeiro holopoema de Kac é HOLO/OLHO (FIG. 22), que faz uma exploração lúdica das palavras holo e olho até a iconização de duas letras “o” sugerindo, juntas, o ser humano e a questão sensória implicada pela holografia.

O texto holográfico se constrói conforme os movimentos do leitor no espaço, é como se o texto reagisse à presença do receptor, dando a impressão de que ele apresenta comportamento enquanto objeto. Diferentes leitores leem diferentes textos conforme a sua posição no espaço – algo bem diferente da fixidez do texto imposta pelo papel. Nesse sentido, o texto é metamorfose no espaço, é deslocamento. Um dos últimos trabalhos de Kac é bem significativo nesse sentido. Em Zephyr (1993), o texto é composto de partículas minúsculas – o que o espectador vê ao se deslocar em relação à peça tem-se o que Kac denomina “nuvem de partículas” reagindo aos deslocamentos do leitor.

Os principais aspectos do holopoema que interessam ao presente estudo são o fato de a poesia se metamorfosear durante a recepção e de o poema ser objeto que ocupa o espaço físico.

Observando a constituição e a apresentação da holopoesia, não é preciso fazer análises muito profundas para se chegar à conclusão de que se trata de uma poesia do espaço. O poema ocupa o espaço físico como escultura evanescente. O tempo, embora também esteja presente, não mais se sobressai em relação ao espaço. Pode-se dizer que o holopoema dialetiza a relação entre espaço físico e virtual. Como afirma Kac, “One point can be the ‘present’ or the ‘future’ in relation to the other and the converse, which is to say that both are suspended in time nonsequentially”29 (1993). Não havendo, portanto, noção de hierarquia, linearidade, não há início ou fim no discurso poético.

Surge, assim, uma nova sintaxe visual que, em oposição ao branco mallarmaico, articula o poema, valendo-se de volumes invisíveis, buracos negros tridimensionais. É por essa razão que o poema adquire independência do suporte e, em termos de imagem real, permite que o espectador passe a mão entre a página e sua projeção holográfica (KAC, 2004, p. 278).

29 Um ponto pode ser o "presente" ou o "futuro" em relação ao outro e vice-versa, o que significa dizer que ambos estão suspensos no tempo não-subsequencialmente.

A abertura de acesso ao holopoema se dá de tal forma que Kac chega a falar em uma aproximação de exploração da linguagem do hipertexto, dadas as várias possibilidades de leitura abertas (1993). No holopoema, “a poesia é um enigma tridimensional” (KAC, 2004, p. 280).