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Rupturas, desconstruções e reconstruções: século XIX e Modernismo

CAPÍTULO 1 – EXPERIMENTALISMO E VISUALIDADE

1.3 Rupturas, desconstruções e reconstruções: século XIX e Modernismo

Fica de Mallarmé, para a poesia e mesmo para a arte, o condensamento do texto poético feito por meio da ousadia de inovar buscando espaços intersticiais. É inevitável retomá-lo para a rememoração do painel de transformações semióticas da poesia nos últimos séculos, tanto pelo que realizou (Un coup de dés), quanto por aquilo que deixou como idealização (Le Livre, por exemplo).

No poema galáctico, Un coup de dés (FIG.11), o poeta atesta um novo aspecto para a identidade literária em meio à supremacia do progresso industrial e tecnológico, a partir da relação criativa entre tipografia e escritura, entre poesia e artes plásticas, modelizando semioticamente o texto com intenção criadora. Trata-se, inclusive, de uma obra de sugestão randômica.

Contribuem para a formação desse poema-mosaico uma série de apostas estéticas. No trabalho de lapidação tipográfica, tendo em vista uma tipografia funcional, Mallarmé utiliza-se de tipos gráficos variados (usos de tipos ora dominantemente maiúsculos, ora variados) e de fontes diversas. Parte da criatividade reside na utilização de novidades técnicas da imprensa da época. Essa organização tipográfica leva a pensar o poema também como uma partitura musical e as linhas tipográficas são anticonvencionais, tendo em vista o que se fazia até então. O poeta escreve ora versos compostos de palavras monossílabas, ora outros que atravessam de uma página para outra. Isso contribui para a noção de movimento no texto e possibilita uma leitura multidirecional: há a possibilidade de leitura linear da página e a leitura por cruzamentos. De acordo com esta última, a linha da página da direita é complemento da linha da página da esquerda; o que acontece ora de modo linear, ora por intercruzos das linhas, como se a prega central do livro funcionasse para seccionar ou para estabelecer, como ponto de apoio, a interseção entre as duas páginas. Pode-se dizer que isso ainda abre possibilidade de ler a obra também com outros direcionamentos dentre os quais o leitor pode escolher seu percurso. Tanto o fluxo do texto quanto suas dobras têm importância (FERREIRA, 2003, p. 31-32).

É interessante como, na bidimensionalidade do papel, o poeta consegue efeitos tridimensionais num trabalho de pesquisa com a visualidade e com o caráter lúdico do texto.

O salto de uma palavra a outra e as possibilidades de ligação entre elas pelo olhar são o que causa esse efeito tridimensional. Isso por meio do enfoque semiótico da página tal qual o texto que nela se encontra arquitetado – o que transforma o texto num evento pictórico- -escultural. Há síncopes de leitura instauradas pela variação entre páginas quase vazias e outras cheias de experimentações tipográficas, desconstrução e reconstrução do processo de escrita/leitura. O poeta faz com que a leitura se torne um jogo e dependa (mais que em textos convencionais) das escolhas do leitor – por isso o “lance de dados” e o jogo do suposto acaso. O ato de ler se torna vibração, pulsação pelas folhas do livro-poema que explora os recursos mais avançados que se tinha na época em termos de impressão.

O projeto mais auspicioso de Mallarmé, entretanto, foi O Livro, projeto inacabado (divulgado por Jacques Sherer em 1957). “O trabalho consistiria num gerador de textos, talvez parecido com as atuais tendências de hipertexto disponíveis on-line, por exemplo, em que, ao leitor-espectador, é dada a chance de montar o poema à sua maneira e de contribuir para a formação deste livro ‘em progresso’” (FERREIRA, 2003, p. 33). As folhas do livro seriam cambiáveis, cabendo ao leitor manuseá-las a sua maneira. A ideia de incompletude é a base epistemológica do experimento do qual Un coup de dés seria parte inaugural, ou seja, os poemas de Mallarmé seriam apenas parte do processo.

[...] um livro, pura e simplesmente, em tomos muitos, um livro que seja um livro arquitectónico e premeditado [...]

Eis pois, caro amigo, confessado, desnudado, o meu vício, que, de espírito machucado ou lasso, mil vezes rejeitei, mas que me possui - e hei-de talvez conseguir; não fazer essa obra no seu todo (para isso, teria que ser sei lá quem!) mas mostrar um seu fragmento executado, fazer-lhe cintilar por um lugar a autenticidade gloriosa, indicando tudo o resto para o qual uma vida não basta. Provar pelas porções feitas que esse livro existe, e que conheci o que não poderei consumar (MALLARMÉ, 1885).

É possível perceber que o poeta sugere a superação do livro, entendido, em seu sentido convencional, como suporte do poema. A proposta mallarmaica não concebe o texto para o entregar generosamente ao leitor, mas como obra de evento, sempre prestes a acontecer. É interessante pensar que, embora impossível de ser realizado na época devido a questões técnicas, o trabalho de Mallarmé é viável atualmente com as tecnologias contemporâneas, o que faz com que a sua obra ressoe ainda mais na pós-modernidade.

Já não se trata nem mesmo de uma obra aberta ou polissêmica, no sentido corrente dos termos, mas de uma obra verdadeiramente potencial, um livro onde os poemas

um livro limite, o limite da própria ideia ocidental de livro (MACHADO, 2001, p. 165).

Uma afirmação muito comum quando o tema é a poesia mallarmaica é a instauração da crise do verso pelo poeta, o que leva a afirmações como: “mais imediatamente, o que explica as recentes inovações, é o ter-se compreendido que a antiga forma do verso era, não a forma absoluta, única e imutável, mas uma receita segura de fazer bons versos” (MALLARMÉ, s/d).5

No entanto, é preciso perceber que, mais que implodir a estrutura da poesia de até então, Mallarmé trabalha na própria razão de ser da poesia. A investigação semântico- -sintática, o trabalho arquitetônico sobre a página, resultando num poema mosaico (poema- -montagem) e polissêmico, mais que crise do verso, anunciam o renascer de uma poesia múltipla que dialoga com as práticas orais e a ressonância das vozes da transmissão e com as renovações do século XX, chegando a abrir espaço para se abordarem seus procedimentos na poesia contemporânea que se constrói no âmbito tecnológico. Há uma proposta de Cláudio Fajardo de poesia variacional por meio de Um Coup de Dés. O leitor tem, assim, a chance de ver um conjunto considerável das possibilidades de combinatória do texto.6

Numa linha próxima à de Mallarmé, estão os trabalhos de James Joyce e Ezra Pound. Denominado alquimista do léxico por Haroldo de Campos (2001, p. 28), Joyce, em

Finnegans Wake, propõe um dos mais complexos jogos de linguagem em literatura dos tempos contemporâneos – um marco, em se tratando de experimentalismo. Texto hermético, aparentemente impenetrável. Impossível de ser entendido na primeira leitura, o enigma joyceano, não muito bem aceito, a princípio, dadas as dificuldades criadas por seu autor7 por meio das experimentações na linguagem, atravessa as décadas dialogando com as propostas não lineares da criação experimental. A obra comprova que, assim como o conhecimento, a arte e a literatura não precisam ser sequências artificiais do pensamento, pois esse tipo de linearidade não existe. Ao contrário do que se possa pensar, o caos e a fragmentação é que são naturais. Assim como Um Coup de Dés, com estrutura circular e onírica (começa pelo fim e finaliza pelo começo), o texto de Joyce é guiado pelo fluxo da consciência e o monólogo interior, além da mescla de registros literários que vão da linguagem coloquial aos discursos científicos e religiosos em uma prosa experimental e multifacetada. Soma-se a isso o fato de a

5 Resposta de Mallarmé ao inquérito feito por Jules Huret aos escritores franceses no final do século XIX. Disponível em: < http://user.online.be/~olx09003/vanguardas/mallarme.htm> Acesso em: jun. de 2002.

6 Ver: <http://telepoesis.net/lance/lance.html>. Acesso em: fev. de 2010.

7 Na leitura complexa, reside a dificuldade de aceitação da obra. Trata-se de uma incompreensão que persistiu ao longo dos anos. O próprio Ezra Pound reagiu negativamente à obra.

obra possibilitar leitura por qualquer parte que se procure assediá-la, numa cadeia infinita:

work in progress.

A estrutura se compõe com base na exploração da polissemia das palavras, da plurissignificação do texto e até mesmo da multiplicidade dos personagens, que possuem identidade esfacelada, multifacetada em várias outras e disseminada pela obra – são as multi- identidades. Ana Lívia Purabelle é também uma parte de Eva, Ísis, Isolda. Assim também é com Earwiker, que aparece ora explícito, ora implícito em outros personagens.

Segundo Joseph Campbell e Henry Morton Robison, “é uma poderosa alegoria da queda e ressurreição da humanidade” (2001, p. 151), manchada de culpas. Em meio aos questionamentos do século XX, há a história metalinguística dos conflitos que geram mudanças em arte. Shen, filho de Ana Lívia com Earwiker, é apontado por Campbell e Robison como um visionário, um poeta, uma representação de Joyce com quem tem semelhanças em seus aspectos de artista incompreendido, em contraste com Shaun – poeta da moderação.

A montagem é um recurso importante na obra joyceana quando se percebe que o escritor fragmenta os vocábulos e cria palavras-montagem ao lhes adicionar partes de outras, inventando e/ou fundindo elementos de muitos idiomas. Instaura-se, assim, no seu texto, a pluridimensionalidade do signo junto com a ideia de texto ao infinito, cuja tradução pelos irmãos Campos teve que ser, de fato, um trabalho de transcriação, nos termos de Haroldo de Campos.

A queda (bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovar- rhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) de um ex venereável negaciante é recontada cedo na cama e logo na fama por todos os recantores da cristã idade. A grande queda do ovalto do muro acarretou em tão pouco lapso o pftjschute de Finnegan, outrora sólido ovarão, que a humptyhaltesta dele prumptamente manda uma testamunha para oeste à cata de suas tumptytumtunhas: e o retrospicopontopouso delas repausa em pés no parque onde oranjos mofam sobre o verde desde que o primoamor ao diablin levou lívia (CAMPOS, Augusto e Haroldo, 2001, p. 41).

A aproximação de Joyce com Mallarmé é inevitável. Segundo Augusto de Campos, “cada grande conceito do Un coup de dés encontra sua contraparte significativa em

Finnegans Wake” (2001, p. 166). O que Joyce não faz graficamente na escrita (como o fez Mallarmé), ele deixa subentendido na sintaxe e na semântica. “E, embora Mallarmé precisasse para tanto apenas 11 páginas, com poucas palavras e muito espaço em branco de permeio, e

Joyce de 628 páginas compactas, pode-se dizer que atingiram resultados semelhantes” (2001, p. 169).

Numa contiguidade com essas manifestações, Ezra Pound é importante por suas propostas estéticas tanto na realização de experimentações quanto na criação teórica, sobretudo quando se propõe criar uma poesia de síntese – como se pode ver em seu ABC da

literatura (1970).

Quanto às questões teóricas desenvolvidas por ele, destacam-se, dentre outros, os critérios para o estudo da poesia.

O MÉTODO adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da matéria e contínua COMPARAÇÃO de uma “lâmina” ou espécime com outra (POUND, 2001, p. 23).

Defensor do Imagismo,8 demonstra na prática a busca da palavra exata, do verso livre, da liberdade absoluta na escolha do tema, da apresentação de pormenores na poesia sem vaguidão desnecessária, e a produção de uma poesia objetiva, bem definida.

Ao conhecer as ideias de Ernest Fenollosa, mais precisamente seu ensaio The

Chinese Written Character as a Medium for Poetry (1994), o poeta passa a buscar na noção de montagem ideogramática chinesa recursos para seus textos (em The Cants, por exemplo),9 propondo uma poesia “carregada de significado em último grau”, como ele mesmo defendia: “poesia consiste em essências e medulas” (POUND, 2001, p. 23).

Assim como Mallarmé e Joyce, Pound rompe com a lógica ocidental discursiva, propondo uma narrativa que não possui um enredo propriamente dito em The Cants (como se vê nas epopeias convencionais). A história da humanidade é vista de vários ângulos e tempos históricos diferentes numa estrutura fragmentada, alógica, atemporal, descontínua.

Essa estrutura fragmentada é também, de alguma forma, buscada pelo Modernismo. Além disso, a retomada enfática do caráter lúdico na investigação com a linguagem poética (embora alguns estilos neguem o passado) e os investimentos em uma série de propostas novas marcam as diversas faces do movimento modernista. Mais que estudar os “estilos” exaustivamente, interessa aqui destacar alguns autores e seus trabalhos naquilo que apresentam de experimental e instigativo.

8 A palavra-chave do Imagismo é a fanopeia. O Imagismo (1912-1914) é um movimento poético inglês e norte- -americano liderado por Pound e que buscava a síntese da linguagem.

9 Há partes dos Cantos em que aparecem ideogramas como integrantes do texto convencional ocidental, ou parte em que se usa uma tipografia não muito convencional.

As tendências modernistas são de espírito ruptor visando acompanhar as inovações científico-tecnológicas da época. Fugir da mera repetição, na poesia, transformar aspectos morfossintáticos, suprimir a pontuação, implodir a estrutura, rompmento com o verso e com a rima para buscar os inúmeros aspectos que o lúdico da linguagem poderia oferecer são algumas das ações do poeta modernista. Continuando na perspectiva da semiotização da página já buscada por Mallarmé e seus antecessores, os signos verbais mesclam-se com signos gráficos e com a plasticidade das cores, buscando a consonância com a exploração da fotografia, do cinema e outros procedimentos que dialogam com outras artes.

Há casos em que a intenção era realmente desafiar o leitor. Como afirma Santaella, “de fato, os modernistas pretendiam estrategicamente retardar o reconhecimento e a leitura de suas imagens a fim de renovar a percepção, estender o prazer sensório e desafiar o intelecto do receptor” (2005a, p. 41).

O Cubismo Literário, por meio da fragmentação do texto e da palavra (jogando com a geometria), trabalha na quebra da aura da obra, buscando o texto dinâmico. O cubismo sintético foi de grande importância para as mudanças em arte (colagem), rompendo com esquemas ligados à cópia e fundindo procedimentos artísticos, como, por exemplo, letras introduzidas na tela (passadas em estêncil ou fragmentos de jornal). “Fragmentos de jornal, malos de cigarro, papéis de parede tirados da realidade e incorporados à superfície da tela são indicadores da substituição da representação da realidade por sua própria apresentação” (ARANTES, 2005, p. 34).

Do Futurismo de Filippo Tomaso Marinetti, destaca-se a vontade de querer sempre avançar, interagir com o que havia de novo nos meios técnicos e tecnológicos (a tipografia, a criação de cartazes, a telegrafia sem fio, as construções modernas). Há a busca por formas concisas, dinâmicas (FIG. 12.). Captar a atuação do movimento no instante mesmo em que esse acontece parece ser ponto fulcral.

O Futurismo adotou o verso livre; incentivou o uso das palavras em liberdade, ou seja, o uso do substantivo e verbos no infinito, e a eliminação dos adjetivos e advérbios; substituição dos sinais de pontuação pelos símbolos matemáticos, musicais e outros sistemas sígnicos que ajudam a abreviar; o uso predominante da onomatopeia, sons verbais que imitam ruídos da natureza; a imaginação sem fio, ou seja, o uso da sequência não linear de ideias; uso de recursos tipográficos como letras de tipos diferentes, de cores diferentes, de tamanhos diferentes, inclusão de desenhos, o que faz com que a página se assemelhe a um quadro (ANTONIO, 2005, p. 60).

A necessidade de novos pensamentos e novas estruturas é nítida desde o Manifesto Futurista como se pode observar abaixo.

No avião, sentado sobre o tanque de gasolina, com o ventre aquecido pela cabeça do aviador, eu senti a inanidade ridícula da velha sintaxe herdada de Homero. Necessidade furiosa de libertar as palavras, arrancando-as da prisão do período latino! Esse tem, como todo imbecil, uma cabeça previdente, um ventre, duas pernas e dois pés chatos, mas nunca terá duas asas. Apenas o necessário para andar, para correr um momento e parar arfando logo em seguida! (MARINETTI, 1980a, p. 81 –

citado por ANTONIO, 2008, p. 50).

O Surrealismo, de André Breton, também retoma a liberdade de expressão buscada pelo Futurismo, porém num outro enfoque. Abre-se espaço para a expressão do pensamento de modo espontâneo e irracional, sem controle moral ou estético – de certa forma, relativizando a ideia de loucura. As associações livres ganham espaço, pois era necessário que o homem se libertasse da razão, da crítica, da lógica. Como afirma Jorge Luis Antonio, “O automatismo psíquico surrealista, herdado do automatismo mecânico dadaísta, representa uma atitude de reação contra a vida moderna, a civilização tecnológica, o conhecimento científico, aliado à fuga da realidade, que não satisfaz (o período entre- guerras)” (ANTONIO, 2005, p. 65).

Era muito empregada a técnica “cadavre-exquis" ("cadáver delicado”) na escrita, a qual consistia na produção coletiva em que cada autor deveria escrever sua parte do texto sem ter acesso ao que tinha sido construído antes dele.

Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais confortável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir sobre a frase seguinte: ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra, admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supõe um mínimo de percepção. Isto não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. A verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição dos nós numa corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção, digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra “l”, por exemplo, sempre a letra “l”, restabeleça o arbitrário, impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir (BRETON, 1924).

O Dadaísmo, fundado por Hugo Ball e Emmy Hennings, se constitui como iconoclasta, tendo, assim, a desconstrução como cerne. Valoriza o mundo ilógico, como o próprio nome do movimento indica. A incorporação do acaso, do abstrato mesmo na poesia, os exercícios fonéticos (que se relacionam diretamente à poesia sonora de hoje) e a montagem são indícios da intenção de tratar a poesia como campo aberto de investigação. Karawane de Hugo Ball (FIG. 13.), e "Pour faire une poéme dadaïste" de Tristan Tzara (1920) e são bons exemplos desse movimento.

Pour faire un poème dadaïste (1920) Prenez un journal.

Prenez les ciseaux.

Choisissez dans le journal un article ayant la longeur que vous comptez donner à votre poème.

Découpez l'article.

Découpez ensuite avec soin chacun de mots qui forment cet article et mettez-les dans un sac.

Agitez doucement.

Sortez ensuite chaque coupure l'une après l'autre.

Copiez consciencieusement dans l'ordre où elles ont quitté le sac. Le poème vous ressemblera.

Et vous voilà un écrivain infiniment original et d'une sensibilité charmante, encore qu'incomprise du vulgaire. 10

Uma figura que inspira a falar desse movimento é Marcel Duchamp e suas propostas conceituais, seus ready-mades, por exemplo, e suas atitudes de contestação, como em L.H.O.O.Q (1919). Atravessando Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo, defendendo uma “antiarte” e questionando a unicidade dos objetos artísticos, foi precursor da Pop-Art, como será visto no próximo capítulo.

Mais que divergência, é possível perceber, entre os movimentos modernistas, semelhanças epistemológicas decisivas para as transformações operadas no fazer artístico da época e mesmo em experimentações subsequentes. Para entender um pouco mais sobre isso, destacam-se, desses movimentos, alguns escritores.

É o caso, por exemplo, de Apollinaire, com uma produção intensa tanto na poesia quanto na crítica. Estudado na perspectiva do Surrealismo ou do Cubismo literário, destaca-se sua busca pelo lúdico, por meio do figurativo ou do diagramático. Rompe com o verso e com a estrutura linear, buscando explorar questões relacionadas à tipografia e à pontuação, numa

tentativa sempre nítida de abrir o texto à recepção. O ritmo fica acelerado e há a intenção da simultaneidade causada pela composição por colagem. É o poder de concisão típico do modernista. Tais procedimentos podem ser observados no poema “La Cravate”. (FIG. 14)

Em Calligrammes, tipografia, figuralidade e sonoridade são recursos constantemente unidos. Apollinaire lê metaforicamente o termo “caligrama”, caligrafia, do