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Visualidade e experimentalismo – da Grécia Antiga ao Barroco

CAPÍTULO 1 – EXPERIMENTALISMO E VISUALIDADE

1.2 Visualidade e experimentalismo – da Grécia Antiga ao Barroco

É alentador lembrar que a poesia nasce na oralidade, natural, na fluidez do convívio. Nasce na tragédia grega (numa linha ocidental), por meio do canto. Poesia e música: um evento unívoco e coletivo (texto cantado com acompanhamento por instrumentos musicais em acontecimentos comunitários). Quando se pensa na poesia como elemento integrante de eventos artísticos, detecta-se, na indistinção de linguagens, o terreno aberto à investigação que, por sua vez, ainda conta com os exercícios na visualidade. Esses traços atravessam os séculos sendo relegados pela invenção de Gutenberg e, depois, pela divisão dos saberes, mas nunca, de fato, suprimidos.

Vastos são os exemplos de poesia figurativa na Grécia Antiga, na Idade Média e no Barroco, indicando sempre uma relação com o lúdico. Os concretistas tinham consciência do que propunham em termos de retomada estética (e não só de inovação). Não é sem motivos que Augusto de Campos retoma “O ovo”, de Símias de Rodes em “Ovo novelo”. (FIG. 1 e 2). Para Símias de Rodes, o poema deveria apresentar melodia perfeita, assim como é o formato do ovo4 e é isso, em linhas gerais, que Campos reconstrói em seu texto.

Ana Hatherly (1995) se surpreende ao descobrir a intensa afinidade técnica entre suas composições dos anos de 1960 e algumas criações medievais e barrocas. São poemas que já semiotizavam o branco do papel e que a levaram a uma pesquisa comprobatória da inerência do caráter lúdico-visual em poesia. Com a recuperação de textos até então fadados ao esquecimento nas antigas bibliotecas nacionais portuguesas, foi possível que a pesquisadora fizesse vislumbrar o espanto da novidade que eles trazem, comprovando o valor da consciência crítica no gesto criador. Labirintos, anagramas e textos já de natureza permutatória são alguns dos exemplos citados.

Uma das afirmações de Hatherly a respeito de suas descobertas se relaciona com o que já se afirmou anteriormente a respeito do contínuo no processo histórico.

O que eu verifiquei, portanto, foi a existência de um continuum que estabelecia uma ligação entre o antigo e o moderno, que não era confrontação mas antes uma espécie de reconhecimento, de identificação de laços de família. O continuum que eu descobri era o continuum do acto criador como processo, de que é preciso tomar-se consciência a fim de se jogar eficazmente (HATHERLY, 1995, p.12).

No anagrama Ao Glorioso Apostolo S. Pedro, de Alonso de Alcalá y Herrera, de 1654 (FIG. 3), publicado em Lisboa juntamente com outros textos do mesmo autor (e uma apresentação teórica do gênero), percebe-se a lógica da investigação das possibilidades combinatórias da língua, pois a segunda parte do texto, sendo anagrama do primeiro, apresenta o mesmo número de fonemas e o mesmo número de repetições para cada um deles.

A suposta planta de um monumento (não se sabe se foi construído) à rainha Maria Sofia Izabel (FIG. 4) também coloca em cena a visualidade e o lúdico, como se pode ver. Cada parte constituinte dessa estrutura arquitetural possui o indicativo de leitura simbólica, como, por exemplo, as variadas colunas que comporiam a construção, representando, cada uma delas, uma letra do nome da rainha.

Hatherly cita também alguns nomes importantes da poesia medieval figurativa: Alcuino, o espanhol Teodolfo, Publílio Optaciano Porfírio (séc. IV), o notável Rabano Mauro (beneditino germânico nascido nos finais do séc. VIII) que mais influenciou a poesia

figurativa medieval. Ricos são os exemplos colecionados pela pesquisadora a respeito, por exemplo, da poesia que explora conceitos e formas de labirinto, sobretudo durante o Barroco, em que o gosto do perder-se e se reencontrar aparece por meio de uma estrutura que dificulta o acesso ao entendimento imediato devido ao “cunho duma certa incompreensibilidade, atingida pela representação visual enigmática e pelo recurso a metáforas e a associações paradoxais” (1995, p. 42).

Nesse caso, a experiência da escrita é enfocada como representação, pois o poema-labirinto se encontra associado ao enigma linguístico e visual, “paradigma do labirinto do significado do mundo que, procura-se, tenha o maior número de leituras possível, fazendo apelos não só aos sentidos, mas também à inteligência” (HATHERLY, 1995, p. 45). Em meio à censura do período barroco, pode-se detectar, nos jogos propostos pelos poetas, a tentativa de subverter por meio da invenção.

Nessa concepção de mundo em que tudo se torna confuso pela profusão, o labirinto é o lugar de desafio à capacidade mental, analítica e lógica. A descoberta da verdade, numa época em que domina o absolutismo político no poder temporal e o dogma e o racionalismo no poder intemporal, tem de ser um percurso cheio de impasses, do qual só é possível sair-se vitorioso através de meditação sobre a

dificuldade e a misteriosidade da vida: é assim que a arte se alia à ciência” (HATHERLY, 1995, p. 60).

A prática do que se denomina Labirinto de Letras era um exercício recorrente na Idade Média. O escalonamento das letras indica a mesma ordem se se começar a leitura pelas letras do primeiro verso em qualquer lado do poema. No texto Entrai José Triunfante (FIG. 5), tem-se uma sugestão cinética do labirinto por meio do esquema espiral do texto observado quando se compara o movimento de desconstrução e reconstrução do verso do primeiro ao último segmento. Tal ideia de movimento é intensificada num outro poema construído em homenagem à rainha Maria Sophia Isabel (FIG. 6) “em que a leitura é feita da letra central, o

R negro de Regina, e deve correr em todos os sentidos numa metade e ao revés na outra, em espelho” (HATHERLY, 1995, p.54).

Quanto à questão da permutação, é surpreendente notar exemplos como o que também é feito em louvor à Maria Sophia Isabel (FIG. 7), cuja leitura deve partir do centro em diagonal para todos os lados, perfazendo um total de 14.996.480 combinações possíveis de leitura.

Interessante também é o panegírico em honra a Constantino Magno (FIG. 8), de Publílio Optaciano Porfírio (séc. IV). Trata-se de um carmina figurata – poema figurado que se baseia, em sua maior parte, na técnica dos versus intexti, versos entretecidos, ou mesmo versos embutidos num texto básico do qual se destaca em virtude de recursos gráficos e/ ou cromáticos. O texto entretecido é composto por vértices espelhados por meio de um cálculo milimétrico de espaçamento e conexão com o texto linear.

Não se pode deixar de citar o poema de Jerónimo Tavares Mascarenhas de Távora, português, do séc. XVIII, barroco tardio. Trata-se de um epitalâmio surpreendentemente bem arquitetado (FIG. 9), em que o nome dos noivos, Joana e Luis, formam um diagrama-base por meio do espaçamento das letras que os compõem e sua respectiva repetição. Entre as letras em maiúsculo, aparecem os versos de felicitações com explorações que mesclam, em redondilha maior, a composição em português e espanhol ao mesmo tempo. Há também a perspectiva de labirinto. É um dos mais surpreendentes de todos os poemas exemplificados até aqui em arrojo estético.

Em meio a essa ludicidade, não se pode esquecer de Gregório de Matos – primeiro poeta, de fato, brasileiro – e de seu poema encomiástico “Douto prudente nobre humano afável” (FIG. 10). A espacialização das sílabas que formam as palavras é feita de

leitura indica o aproveitamento de uma mesma sílaba ou letra para dois versos. O texto surpreende quando, em meio a esse jogo, se revela um soneto decassílabo.

Como é possível observar, há a intenção explícita, em todos os poemas citados, em jogar com a linguagem e experimentar no trabalho com o verbal. Comprova-se, sobretudo, que a tradição experimental e visual caminha paralelamente à tradição do verso.