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Se os estudos acerca da comunicação popular, meios alternativos e comunicação comunitária avançaram no Brasil e na América Latina, muito se deve a Luiz Beltrão, um dos pioneiros pesquisadores científicos em comunicação do país, primeiro doutor em Comunicação a ser diplomado por uma universidade brasileira, em 1967. Ao voltar sua atenção para os meios de informação das classes trabalhadoras das cidades e do campo, Beltrão (2001) destaca a importância do “líder de opinião” para que a influência dos meios de comunicação sobre o público realmente ocorra. Utilizando uma pesquisa realizada pela Universidade de Colúmbia, Beltrão (2001) explica que a influência de outras pessoas em decisões específicas tende a ser mais frequente e efetiva que a

dos meios de comunicação coletiva, e que influenciadores e influenciados mantêm relações estreitas, tendendo a compartilhar de uma mesma situação social. A pesquisa aponta ainda que indivíduos intimamente relacionados se aproximam a opiniões e atitudes comuns, relutando em abandonar o consenso do grupo. Os líderes de opinião, sob tal perspectiva, costumam viajar, contatar outras pessoas e realidades, estão sempre bem informados e trazem novidades a seus liderados. Os ponteiros podem ser considerados líderes de opinião, pois atuam como uma espécie de interlocutores entre governo, PCs de outras regiões e seus liderados, transformando mensagens complexas, como questões de legislação cultural, por exemplo, em conteúdos facilmente assimiláveis pelos liderados.

Castells (2013, p. 17) também chama a atenção para a importância dos líderes na prática dos movimentos sociais. “Temos de entender a motivação de cada indivíduo: como esses indivíduos constituem uma rede conectando-se mentalmente com outros indivíduos e porque são capazes de fazê-lo, num processo de comunicação que, em última instância, leva à ação coletiva”.

Para Beltrão (2001, p. 70), “os grandes meios convencionais de comunicação coletiva não funcionam para a obtenção de efeitos positivos para as pretensões das elites culturais e políticas – as metas desenvolvimentistas – porque as suas mensagens não são assimiladas, por interação social” em alguns grupos. Por isso, governos e elites também precisam se valer de líderes de opinião quando necessitam que sua mensagem seja compreendida. Seriam os Pontos de Cultura uma estratégia governamental para utilizar os ponteiros – líderes de opinião – como forma de estreitar a relação com determinados grupos, nem sempre atingidos pelas mensagens veiculadas pela mídia de massa? De fato, o próprio idealizador do programa, Célio Turino, deixa claro, em seu livro, que uma das intenções dos pontos era mesmo atingir recantos onde até então ações do Ministério da Cultura não conseguiam chegar. Os ponteiros atuam como “interlocutores” das políticas públicas de cultura para muitos grupos que antes eram excluídos de ações culturais promovidas pelo governo. Embora o acesso desses indivíduos ao governo ainda seja intermediado pelos ponteiros, portanto não se dá de modo direto, há uma sensível diminuição de distância, visto que os integrantes dos PCs convivem diariamente com os ponteiros e a estes relatam suas sugestões, reclamações, opiniões acerca do fazer cultural. Por outro lado, os ponteiros expõem aos integrantes do grupo as questões relativas às políticas públicas de cultura e seu funcionamento.

Se os PCs se constituem em estratégia de aproximação do governo com esses grupos, esta foi acertada para os interesses do Estado. O diálogo entre o Minc e esses líderes de opinião passou a ocorrer e, por meio dos ponteiros, atingiu também grupos maiores, comunidades até então postas à margem das discussões acerca da importância da cultura e de se estabelecer políticas públicas para a área. Os ponteiros integram esse grupo de líderes de opinião em suas comunidades.

As pessoas que estão à frente das entidades que abrigam Pontos de Cultura já exerciam algum tipo de liderança comunitária e voluntária, seja na área assistencial, educacional, religiosa, ambiental ou cultural. Todos estão ligados ao terceiro setor100, ou seja, são membros da sociedade civil organizada, distinta, portanto, da esfera pública e do mercado. Isso, contudo não significa que não haja conexões entre os três setores.

Voltando à questão comunicacional, é possível observar que o líder de opinião também atua em outras questões dentro de sua comunidade. Em geral, é alguém que assume a responsabilidade de catalisar redes de solidariedade entre os indivíduos de uma comunidade. Não é tarefa fácil encontrar uma definição de comunidade que não suscite lacunas e discussões, sobretudo em tempos de relacionamentos virtuais tão facilitados pelas novas tecnologias. O entendimento de Peruzzo (2006, p. 14) sobre o conceito aproxima-se da realidade em que os ponteiros estão inseridos:

As comunidades continuam a se caracterizar pela existência de um modo de relacionamento baseado na coesão, convergência de objetivos e de visão de mundo, interação, sentimento de pertença, participação ativa, compartilhamento de identidades culturais, co- responsabilidade e caráter cooperativo. As próprias comunidades virtuais que surgem com o advento das novas tecnologias da comunicação, no final do século XX, demonstram a necessidade de atualização dos conceitos originais e, ao mesmo tempo, reforçam a necessidade da presença de laços de comunhão.

Num país como o Brasil, em que os principais meios de comunicação de massa tradicionais (rádio e TV) estão concentrados nas mãos de oligopólios homogeneizantes, não é de se estranhar – conforme constataram as discussões de todas as Conferências Nacionais de Cultura – a dificuldade encontrada para garantir espaço à diversidade da cultura popular. As manifestações de cultura popular são aqui entendidas como aquelas em que o povo produz e participa de forma ativa, surgidas das tradições e costumes e transmitidas de geração para geração, principalmente de forma oral. Essas manifestações enfrentam uma desigual disputa de poder no âmbito de sua divulgação em relação aos produtos que seguem padrão mais homogêneo e, por isso, são absorvidos como produtos da indústria cultural de massa. Do mesmo modo, as manifestações culturais de cidades

100 Soares e Ferraz (2006) afirmam que o voluntariado brasileiro existe desde 1543, com a criação da primeira Santa Casa

de Misericórdia, em Santos. É o primeiro exemplo de trabalho voluntário de que se tem notícia na história e a primeira organização não governamental do país. Juridicamente, o terceiro setor apresenta-se sob duas formas de instituições, as Fundações e as Associações. Ao longo do tempo e conforme a abrangência de atuação, os grupos vão obtendo títulos, como o de Utilidade Pública (municipal, estadual, federal), e o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social. Esses títulos funcionam como atestados de bons serviços prestados e são exigidos, em muitos casos, para a obtenção de recursos públicos. Ainda existem as designações de OSCIPs (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e OS (Organização Social). Organizações do Terceiro Setor (OTS) não visam ao lucro e nem podem distribuí- lo entre seus diretores e integrantes. Isso não significa que não possam lançar mão de estratégias, como venda de produtos e serviços, para obter receita. Mas no balanço financeiro da organização é preciso lançar o destino dos recursos que entraram para que, ao final do exercício, não ocorra lucro. Também são consideradas do terceiro Setor as cooperativas e instituições voltadas para a economia solidária. Nesse caso, os participantes beneficiam-se, financeiramente, do trabalho ou da venda da cooperativa.

mais distantes de grandes centros também encontram mais obstáculos para ter algum espaço na mídia convencional. É nesse contexto que se podem utilizar mecanismos de Folkcomunicação. Beltrão (2001, p. 73) define Folkcomunicação como “o processo de intercâmbio de informações através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore e, entre as suas manifestações, algumas possuem caráter e conteúdo jornalístico, constituindo-se em veículos adequados à promoção da mudança social”. Quando formulou sua tese, em 1967, Beltrão enxergava como manifestações e veículos de folkcomunicação informacional no Brasil os cantadores e repentistas, o caixeiro-viajante, motorista de caminhão, o cordel, os almanaques, calendários e livros de sorte. Mas ao pesquisador também interessou observar os meios de expressão opinativos da Folkcomunicação. Para Beltrão (2001, p. 221), os entretenimentos, folguedos, autos populares, peças artesanais e de artes plásticas também são utilizadas para expressar as reivindicações populares e até “a oposição ao pensar e sentir das elites”. A tradicional Queima de Judas, que costuma ocorrer na Semana Santa, é um dos exemplos desses veículos de expressão. O boneco Judas representa sempre alguém a quem se quer criticar.

Outro meio de expressão de Folkcomunicação opinativa, citado por Beltrão (2001), e que continua bem presente em Santa Catarina e em outros estados brasileiros ainda hoje, é o Bumba-meu-boi. O auto popular mais difundido no Brasil, mesmo com suas variantes, é uma crítica social à exploração do trabalho, um retrato da luta de classes. Entre os Pontos de Cultura de Santa Catarina, vários se dedicam a preservar o Boi de Mamão, como é o caso do Engenho da Terra,

Baiacu de Alguém, Oca, Baleeira e Arreda Boi.

A partir da tese de Beltrão (2001), os estudos sobre Folkcomunicação foram se ampliando. Entre os principais pesquisadores de Folkcomunicação está José Marques de Mello (2005) que cita, como exemplos mais atuais, a tatuagem, o funk e o rap. Ele também chama a atenção para a abertura de possibilidades folkcomunicacionais permitida pela Internet. A rede mundial de computadores permite, por exemplo, ampliar o alcance dos relatos das atividades desenvolvidas pelos agentes folkcomunicacionais.

Além de garantir a sobrevivência de vários gêneros ou formatos de expressão popular, a web permite multiplicar os seus interlocutores, bem como ensejar o intercâmbio entre grupos e pessoas que possuem identidades comuns, mesmo distanciados pela geografia (MELLO, 2005, p. 9).

Os Pontos de Cultura oferecem muitos exemplos desta constatação de Mello. A rede de “recomendadores de almas”, que se formou a partir do trabalho de valorização dessa manifestação da cultura popular, em Lages, propagou-se por meio da veiculação de vídeos na internet e culminou na realização de um Encontro Brasileiro de Recomendadores, realizado em Campo Belo do Sul, em

2012. A rede de Engenhos de Farinha da grande Florianópolis, conectada a outras redes como o Slow Food e a Ecovida, é outro exemplo. Para a ponteira do Engenhos de Farinha, Gabriella Pieroni (2014, p. 19), “a cultura digital pode ser considerada uma aliada da difusão da diversidade cultural, operando nas fronteiras entre as culturas e promovendo saudáveis diálogos, mesmo que conflituosos”.

A lição deixada por Beltrão e sua Folkcomunicação influencia a comunicação popular e comunitária e está presente na forma como os Pontos de Cultura se comunicam entre si, com seu público, com a própria mídia. Mesmo sem contar com assessoria profissional, na maioria dos casos, os PCs utilizam uma estratégia comunicacional, que mistura:

a) a conquista de espaço em veículos de comunicação de massa de alcance local/regional;

b) parceria com veículos de comunicação comunitária; c) produção de conteúdo para mídia comunitária; d) comunicação interna (entre os PCs) via rede; e) formas de expressão próprias da folkcomunicação.

Na comunicação em rede, além do blog Pontos Catarina, é preciso considerar toda uma gama de contatos entre os integrantes dos PCs, feitos por meio de redes sociais, sobretudo Facebook e Twitter, e-mails, fóruns de discussão, etc. Cada ação de um Ponto de Cultura pode ser pensada de modo a atingir: 1º) o público-alvo direto; 2º) a comunidade onde o PC está inserido; 3º) outros PCs; 4º) mídia comunitária e local; 5º) veículos de comunicação de massa; 6º) outros públicos (pela internet), não necessariamente nessa ordem. Há, portanto, ainda que de modo não planejado, um conjunto de circuitos comunicacionais colocados em prática pelos PCs, a partir da constatação de que o desenvolvimento das ações culturais está diretamente ligado à difusão da informação. As entrevistas com os ponteiros e o monitoramento das ações dos PCs catarinenses demonstram, entretanto, que nem todos conseguem utilizar todas as estratégias de comunicação descritas acima com a mesma desenvoltura. Os PCs Capoeira Quilombola (Florianópolis) e Nossa Senhora do

Rosário Catumbi (Araquari), por exemplo, nunca fizeram qualquer postagem no blog Pontos

Catarina. “A rede de comunicação pra mim não funcionou tanto, faltou mais comunicação. Talvez,

de repente, eu é que não participei da rede, mas é que a capoeira já tem uma rede de integração muito ampla”, justificou Mestre Pinóquio, do PC Capoeira Quilombola (PEREIRA FILHO,

2015). Os integrantes do PC Cultura e Cidadania nas Áreas da Reforma Agrária, mantido pelo Clube de Mães Maria Rosa, em Água Doce, precisam percorrer 30 km de estrada de chão para chegar ao centro da cidade e acessar a internet e isso dificulta sua utilização. Clarice Zucco,

ponteira do Danças e Contradanças, de Coronel Freitas, destacou a falta de afinidade das pessoas idosas, principal público-alvo do PC, com as novas tecnologias.

Se, como afirma Milton Santos (2000, p. 38), um dos fatores constitutivos do caráter perverso da globalização é a forma como a informação é oferecida à humanidade e “a emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida econômica e social”, então as estratégias de comunicação adotadas pelos PCs conseguem subverter essa lógica. Os PCs atingem seu público- alvo – geralmente formado pelas minorias – porque adotam meios de expressão próprios da Folkcomunicação e da comunicação popular; chamam a atenção da mídia de massa convencional (ao menos em nível local/regional) pela qualidade das ações culturais que produzem; são protagonistas quando produzem conteúdo para outras mídias; e utilizam as novas tecnologias para estabelecer uma rede de comunicação com outros PCs. Tudo isso, sem dispender altos investimentos em publicidade, marketing ou serviços de assessoria de imprensa. Além disso, os líderes de opinião (ponteiros) representam para esses grupos um canal importante de comunicação com representantes do governo estadual e federal. Ainda que essa aproximação integre também uma estratégia governamental, como alertava Beltrão (2001), não deixa de ser uma via de mão dupla, desde que os governantes estejam abertos a esse diálogo.