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O panorama histórico das políticas públicas de cultura no Brasil, descrito até aqui, mostrou que durante o período militar houve tentativas de se sistematizar a área cultural, porém sem êxito, pois essas tentativas nada mais eram do que imposições governamentais, sem qualquer participação da sociedade civil na sua construção e acompanhadas da censura imposta às produções culturais da época. Nessas circunstâncias, o grau de institucionalização proposto apenas provocaria o engessamento da produção artística nacional. Atualmente, um Sistema Nacional de Cultura encontra-se em fase de implantação e propõe instâncias de discussão e decisão que se articulam por meio da formação de Conselhos Municipais de Políticas Culturais, no mínimo paritários, isto é, com 50% de sua composição formada por representantes da sociedade civil e 50% do poder público; órgão gestor municipal; conferências municipais e comissão intergestores.

Figura 1 - Elementos constitutivos do SNC

Fonte: Brasil, Ministério da Cultura (2012, p. 26).

O diagrama acima representa o modelo de gestão a ser adotado tanto na esfera federal quanto na estadual e municipal. Pressupõe que cada unidade da federação e cada município tenham um órgão gestor da cultura, um conselho composto por membros da sociedade civil e do governo, sistema próprio de incentivo à cultura, plano e conferência de cultura. As comissões intergestoras, os programas de formação, os sistemas setoriais e de informação devem ocorrer após a implementação dos anteriores.

O atual Sistema Nacional começou a ser gestado ainda na campanha para presidente do primeiro mandato de Lula (BRASIL, 2011, p. 15). Desde então, a cada ano, novos passos foram dados para implantação do SNC nas esferas federal, estadual e municipal. A promessa de facilitar a transferência de recursos financeiros somente aos municípios devidamente adaptados ao sistema contribuiu, em certa medida, para convencimento à adesão de governadores e prefeitos. A Emenda Constitucional 71, de 29 de novembro de 2012, acrescentou o artigo 216-A à Constituição Federal para permitir a instituição do Sistema Nacional de Cultura. São princípios do sistema: diversidade das expressões culturais; universalização do acesso aos bens e serviços culturais; fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; complementaridade nos papéis dos agentes culturais; transversalidade das políticas culturais; autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; transparência e compartilhamento das informações; democratização dos processos decisórios com participação e controle social; descentralização articulada e pactuada

da gestão, dos recursos e das ações; ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura (BRASIL, 2011, p. 41)

Além de criar estruturas alinhadas ao sistema, cada município que aceitou o pacto federativo precisa elaborar seu Plano Municipal de Cultura. O Plano Nacional foi aprovado por meio da Lei n. 12.343/2010 e, atualmente, encontra-se em fase de monitoramento das 53 metas estabelecidas para serem cumpridas até 2020. No endereço eletrônico <http://pnc.culturadigital.br/> é possível acompanhar o estágio de cumprimento de cada meta.

A meta número 1 do PNC prevê que, até 2020, o sistema de cultura esteja em funcionamento em todos os estados e em 3.339 cidades, 60% dos municípios brasileiros. De acordo com a pesquisa MUNIC 2012, realizada pelo IBGE junto às prefeituras dos 5.565 municípios, 96% dos municípios possuem alguma unidade ou setor voltado para a gestão da cultura, e 32% desses municípios possuem Conselho Municipal de Políticas Culturais ou equivalentes.

Quando se observa a adesão dos municípios por faixa de habitantes, nota-se maior lentidão em aderir ao SNC por parte dos municípios menores, até 20 mil habitantes, situação da maioria das cidades brasileiras. Tal resistência ou morosidade pode estar relacionada à falta de pessoal suficiente e até de estrutura nos departamentos de cultura para atender às exigências do SNC; dificuldade de mobilização de agentes culturais locais; ideia de que a cultura não é prioridade do município e, até mesmo, desconhecimento das políticas públicas de cultura. Há ainda que se considerar a troca de mandatários municipais e das equipes formadas por ocupantes de cargos comissionados, o que acarreta uma falta de continuidade nas ações culturais nas pequenas cidades. É de se cogitar se esse papel central das esferas governamentais (federal, estadual e municipal) na estruturação do SNC não contradiz a intenção de uma democracia a qual diz incentivar a participação da sociedade civil. Ocorre, entretanto, que o SNC defende sempre uma gestão compartilhada para as políticas públicas de cultura, ou seja, não exime o Estado de suas responsabilidades, mas inclui instâncias permanentes de participação da sociedade civil. A participação governamental na estruturação do SNC também está relacionada à forma atual de distribuição de recursos financeiros públicos, requerendo a criação de fundos específicos para cada área (cultura, educação, saúde, etc.). Agentes culturais mais otimistas acreditam que uma mudança na distribuição dos recursos públicos no país (com fatias maiores de retorno de impostos para os municípios) aliada a uma participação mais efetiva da sociedade civil pode, no futuro, estreitar essa gestão compartilhada, dado que a administração municipal está mais próxima do cidadão do que as instâncias federais ou estaduais.

Tabela 2 - Adesão dos municípios ao SNC por faixa populacional

Fonte: Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/snc/situacao-dos-estados-e-municipios>. Acesso em: 3 abr. 2014.

O Plano Nacional de Cultura é, pois, um mecanismo de articulação entre União, estados, municípios e sociedade civil, conforme estabelece o artigo 215 da Constituição de 1988.

Passados mais de 20 anos desde a promulgação da atual Constituição Brasileira, o país ainda se adapta para poder cumpri-la. No caso específico das políticas culturais, observa-se bem esse hiato que passa pelo rebaixamento do Minc ao status de secretaria, em 1991, no governo Collor, pela omissão estatal no período FHC, a retomada do debate público na gestão Lula e pela adoção dos marcos legais na gestão Dilma. Para Silva (2011), o Sistema Nacional de Cultura se desdobra na ideia de descentralização, territorialidade local (municípios e estados) e gestão setorial da cultura. O SNC ainda dialoga com ideias como a de equidade regional, a de que seu público-alvo (a população brasileira) teria características singulares e que abrangeria territórios que seriam aqueles já contemplados por outras políticas culturais; é estratégia caracterizada pela transversalidade (SILVA, 2011). É por isso que o SNC fornece condições para a permanência de programas como os Pontos de Cultura os quais mantêm diálogo mais próximo com os agentes culturais, aqueles sujeitos que efetivamente atuam em suas comunidades, sejam elas no interior da Amazônia, sejam em grandes cidades. Entretanto, embora o SNC garanta condições legais para que esse diálogo com a sociedade civil ocorra, é imprescindível que haja – por parte do Governo – uma predisposição de colocar em prática as decisões emanadas dessa participação popular. Do contrário, haverá apenas o uso dessas instâncias como modo de legitimar decisões dos governantes.

A percepção dos ponteiros acerca da democracia participativa aproxima-se da visão anarquista, na qual Martín-Barbero (2008, p. 44) identifica a cultura “como espaço não só de manipulação, mas também de conflito, e a possibilidade então de transformar em meios de liberação as diferentes expressões ou práticas culturais”.

A meta 23 do Plano Nacional de Cultura é ter 15 mil Pontos de Cultura em funcionamento, financiados com recursos do Governo Federal e das Unidades da Federação (UFs) e os municípios integrantes do Sistema Nacional de Cultura até 2020.

Conforme o monitoramento do PNC (http://pnc.culturadigital.br/), para ampliar o número de Pontos de Cultura, deve-se aumentar, também, a participação dos estados e das cidades em sua gestão e execução. Entre as medidas já tomadas pelo Minc para alcançar a meta estão: renovação de convênios do Programa Cultura Viva com os Estados e municípios e novos editais, incluindo premiação para reconhecimento/fomento a Pontos de Cultura, fortalecendo as políticas setoriais para segmentos historicamente excluídos, dentre outras ações. Outra ação importante foi a aprovação da Lei Cultura Viva, cujo carro-chefe são os Pontos de Cultura. Ainda assim, calcula-se que, no início de 2015, havia cerca de 3.500 PCs.

Mesmo antes da aprovação da Lei Cultura Viva, o Minc publicou, no último dia de 2013, a Portaria 118, ampliando a área de abrangência e incluindo os temas da diversidade cultural do Brasil no escopo das ações do programa. O nome do programa também foi alterado para Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural – Cultura Viva. Diversidade, nesse contexto, refere-se à multiplicidade de formas de criação, produção, difusão e de expressões culturais. Para os Pontos de Cultura, a principal mudança é a substituição do convênio, como mecanismo de repasse financeiro pelo TCC – Termo de Compromisso Cultural que visa a simplificar a relação de execução e prestação de contas.

Mas o que faz com que o atual Sistema Nacional de Cultura proposto seja diferente de tentativas anteriores de institucionalização de políticas de cultura para o país? A resposta está na participação efetiva da sociedade civil e na construção coletiva do plano. Se dos anos de 1930 à década de 60, apenas uma elite era chamada a construir a política pública, para o atual SNC ouviram-se vozes de Norte a Sul do país, num processo que, embora continue representativo, pois cada município ou setor cultural indica suas lideranças com direito a voto nas conferências – é mais democrático porque é fruto de várias etapas de discussão.

Obviamente, a mera legalização do Sistema Nacional, assim como a transformação do programa Cultura Viva em Lei não garantem, por si só, a manutenção dessas políticas. Há sempre o risco de que futuros gestores queiram anular todo esforço empreendido. Entretanto, se a lógica de empoderamento que embasa os Pontos de Cultura estiver correta, as chances de uma continuidade evolutiva se ampliam à medida que os mecanismos de regulação são construídos por uma coletividade capaz de mobilizar-se, caso o pacto federativo venha a ser desrespeitado no futuro. E tal capacidade de mobilização firma-se em outra estratégia também adotada pelos PCs: a formação de rede. Para Gilson Máximo, que representou os Pontos de Cultura de Santa Catarina nas reuniões

do redesenho do programa Cultura Viva junto ao Minc, a transformação do programa em lei é um avanço, mas precisa ser amparada pela eficiência de gestão do programa, aspecto bastante questionado. “Anualmente, a secretaria responsável pelo programa nem conseguiu gastar todo o recurso. A pactuação federativa é um processo que precisa ser aprofundado e, para que funcione, é necessário estruturar e qualificar as gestões estaduais e municipais” (Informação verbal)46. Outro

desafio urgente, na opinião de Máximo, é a desburocratização. “O início dos trabalhos dos PCs foi bem conflituoso, foi preciso que os gestores dos PCs se qualificassem, mas hoje não somos nós e sim o Estado que precisa se qualificar para isso, pois não consegue suprir a demanda burocrática que ele próprio gera” (MÁXIMO, 2014). No caso catarinense, Máximo se refere às sucessivas trocas de coordenação do programa Pontos de Cultura na Secretaria de Estado da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer e também às mudanças frequentes do próprio gestor maior da pasta, além dos atrasos nas análises de prestações de contas e de pagamento dos repasses.

Apesar das dificuldades, Máximo destaca que o nível de articulação conquistado entre os Pontos de Cultura por meio do efeito rede é uma garantia ainda maior da existência de regulamentações para que iniciativas como os Pontos de Cultura e o SNC tenham prosseguimento, independente de quem venha a governar o país. “Hoje temos contato com agentes culturais de todo o país. No fórum de validação do Plano Estadual de Cultura, o grupo mais aguerrido nas discussões e com estratégia bem formada de defesa de suas posições foi o dos representantes dos Pontos de Cultura. Participamos de todos os eixos temáticos e colocamos em discussão na plenária todas as nossas propostas. Isso é participar efetivamente da construção da política estadual de cultura e isso só foi possível porque agora nós [Pontos de Cultura] nos conhecemos e nos articulamos. Não estamos mais isolados” (MÁXIMO, 2014).

O depoimento de Máximo coincide com o de vários outros ponteiros entrevistados para esta pesquisa quando dizem que, maior que o ganho financeiro com o edital de Pontos de Cultura, foi o ganho em articulação, o empoderamento por meio da rede. Para a ponteira Daiane Frigo, do

PC Tom sobre Tom: Música, Expressão e Arte, de Formosa do Sul, município com apenas 2.600

habitantes, localizado no Oeste catarinense, a articulação em rede é duplamente benéfica, pois aproxima de outros grupos que executam ações culturais e também permite uma aproximação das instâncias governamentais. “Sozinha, aqui no interior de Santa Catarina, eu dificilmente conseguiria reivindicar qualquer coisa ao governo, mas, em conjunto, as chances de ser ouvida são maiores” (Informação verbal)47.

46 Gilson Máximo, entrevista concedida à pesquisadora em 25 de março de 2014. Nas demais ocorrências se utilizará

(MÁXIMO, 2014).

47 Daiane Frigo, entrevista concedida à pesquisadora em 15 de março de 2014. Nas demais ocorrências se utilizará

É nesta interconexão de interesses comuns que os ponteiros apostam para assegurar a continuidade de suas atividades e do programa Pontos de Cultura.

O estudo do percurso histórico das políticas públicas de cultura no Brasil demonstra os diferentes e divergentes rumos que estas podem tomar conforme a junção de uma série de fatores: vontade política dos gestores governamentais; ideologia; cenário político-econômico e o modo como se concebe o conceito de cultura. Pouco adiantaria o cenário democrático se não houvesse recursos financeiros para investimento. Do mesmo modo, só a institucionalização e regulamentação de um Plano Nacional de Cultura, sem a participação efetiva da sociedade civil, não refletiria os verdadeiros anseios sociais, e uma concepção elitista de cultura jamais daria conta da diversidade cultural brasileira.