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Na segunda metade da década de 1930, com o advento da radiodifusão e o desenvolvimento do cinema, o Brasil começa a experimentar uma expansão da indústria cultural de

22 Ver subcapítulo 3.7 desta tese.

23Enquanto o multiculturalismo evidencia a coexistência de uma pluralidade de culturas, a transculturalidade enfatiza a

mistura de diversas culturas, a porosidade de suas fronteiras. Passa-se, assim do reconhecimento da diferença cultural

massa, aqui entendida como a veiculação de mensagens a partir de veículos comunicacionais capazes de atingir um conjunto heterogêneo de pessoas, de modo simultâneo e sem a possibilidade da mesma interação emissor-receptor que se dá na comunicação interpessoal. Silva e Abreu (2011) consideram a década de 30 extremamente importante para a política cultural brasileira e destacam, como marcos, a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Instituto Nacional do Livro, do Museu Nacional de Belas Artes e do Serviço Nacional de Teatro, além da implantação do Ministério da Educação e Saúde, sob o comando de Gustavo Capanema. Entretanto, o que se tem nesse período são ações fragmentadas e desarticuladas. Ortiz (1994a) observa que, nos anos 30, as produções culturais ainda atingiam número restrito de pessoas. É preciso considerar que, além de pioneiras, as iniciativas governamentais para se iniciar uma política cultural disputavam atenções e recursos de um ministério que já tinha por atribuições cuidar de outros dois setores fundamentais para o país: a educação e a saúde24.

Merece destaque a participação do escritor modernista Mário de Andrade na formação de uma política cultural brasileira. De 1935 a 1938, ele atuou no Departamento de Cultura da prefeitura de São Paulo, imprimindo novo ritmo às atividades culturais, tais como: concertos gratuitos no Teatro Municipal, criação de bibliotecas, concursos artísticos, incentivo a pesquisas etnográficas e folclóricas. A ênfase dada por Andrade à cultura popular e ao folclore, articulado ao novo, ou seja, às propostas de vanguarda daquela época - bem ao gosto do manifesto antropofágico que propunha o encontro entre moderno e primitivo -, foi crucial para acalorar as discussões sobre política cultural. O próprio Mário de Andrade escreveu o Decreto-Lei n. 25, de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, entendido como “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Percebe-se na postura de Andrade uma forte preocupação em valorizar a cultura nacional, postura que, ao ser enfatizada pelos governos seguintes, acaba por conferir às políticas culturais um sentido utilitarista de mecanismo de nacionalização.

Embora a Semana de Arte Moderna de 1922 tenha sido fruto da transculturalidade, visto que resultou da influência da ebulição das vanguardas estéticas da Europa com as quais os intelectuais brasileiros tomaram contato, seu legado foi justamente o da busca por uma identidade artística nacional e um rompimento com os antigos modelos importados que até então vigoravam no Brasil. Tal postura veio bem a calhar ao governo nacionalista de Vargas.

24 A área cultural – como ainda ocorre na estrutura organizacional de alguns estados e municípios brasileiros – vai a

reboque de outras pastas consideradas prioritárias aos governos. Em Santa Catarina, apesar dos apelos da classe artística e dos próprios gestores públicos de cultura pela criação de uma secretaria específica para a cultura, manteve-se no governo de Raimundo Colombo, a Secretaria de Estado de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer. Isso demonstra o quanto ainda se trata a cultura como área supérflua e não como prioridade.

Rubim (2008) aponta que, no Governo Vargas, pela primeira vez o estado nacional realiza um conjunto de intervenções na área da cultura25, mas ao mesmo tempo em que formula práticas, legislações e novas instituições também censura e oprime as manifestações culturais que representem algum tipo de discordância às ideias de Vargas. O Departamento de Informação e Propaganda (DIP), criado em 1939, é instrumento oficial de censura e cooptação do meio cultural. Apenas as manifestações favoráveis a Vargas são permitidas e aquelas que exaltam o nacionalismo e a ordem são incentivadas. É conhecida a utilização da Música Popular Brasileira, especialmente do samba, e do rádio como estratégias getulistas para disseminar o nacionalismo e a ideia de que o Estado Novo cuidava da nação com total zelo. O Carnaval de blocos vai dando lugar às escolas de samba com sambas-enredo que exaltam as realizações do governo e a natureza do país. Fica proibida, no samba, a apologia à malandragem e à vadiagem, ou seja, há uma interferência governamental nessa manifestação da cultura popular. No rádio, as emissoras estatais promoviam as ações governamentais e a vida dos artistas. Conforme Rodrigues (2007), é no Estado Novo que surge o chamado “samba da legitimidade”, para converter a figura do malandro em exemplar trabalhador de fábrica. Somente a partir da década de 50 é que a música volta a ser instrumento de contestação, por meio de marchinhas e sambas.

No campo literário, há que se enfatizar o regionalismo nos romances que destacam e valorizam a diversidade cultural brasileira, conforme a região retratada pelos autores. Em Santa Catarina, a Campanha de Nacionalização de Vargas também causou interferências diretas na cultura local. Impedidos de falar seu idioma de origem, de entoar canções da pátria distante e mesmo de ler obras estrangeiras, imigrantes europeus que viviam no Estado atravessaram um período de medo e de expressão vigiada.

De 1938 é o Decreto-Lei n. 526 que institui o Conselho Nacional de Cultura. Embora, como observam Silva e Abreu (2011, p. 26, grifo dos autores), o decreto incorpore certa visão da relação Estado/sociedade, tal organização se dá pela “cooptação das instituições representativas dos diversos setores – como os sindicatos, transformando-os em funcionários do regime, antes que o desenvolvimento econômico e social levasse as ‘massas’ – para utilizar a linguagem do decreto - a se organizarem”. Do conselho participavam “personagens ilustres” do cenário cultural de então, ou seja, a voz das elites. Não há, portanto, uma efetiva participação pública na constituição desses passos iniciais de política cultural no país, e é clara a preocupação “educativa” das medidas

25 Destacam-se, na gestão Vargas (Capanema), a criação de legislações para cinema, radiodifusão, artes, profissões

culturais e a constituição de organismos culturais, como a Superintendência de Educação Musical e Artística; Instituto Nacional de Cinema Educativo (1936); Serviço de Radiodifusão Educativa (1936); Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937); Serviço Nacional de Teatro (1937) e Instituto Nacional do Livro (1937).

tomadas. Na década de 1930, quase 60% da população brasileira era analfabeta26, daí a preponderância das ações voltadas à educação, assim como o sucesso posterior do rádio com fins educativos. As mensagens educativas, sob tal ponto de vista, não se restringem a orientações sobre saúde ou campanhas informativas em prol da escolarização, mas também se estendem à educação do gosto cultural das massas, estimuladas a aceitar um modelo cultural imposto de cima para baixo. Rubim (2008) enxerga no período de 1945 a 1964 um desenvolvimento da cultura brasileira em praticamente todas as suas áreas, mas sem qualquer correspondência com o que ocorre nas políticas culturais nacionais, ou seja, tal desenvolvimento brota de iniciativas de agentes culturais da sociedade civil. Para Silva e Abreu (2011), esse período caracteriza-se por intenso investimento privado na cultura, bem como poucas iniciativas do poder público e, da década de 50, destacam apenas a divisão do Ministério da Educação e Saúde, dando origem ao MEC (Ministério da Educação e Cultura). Após a Segunda Guerra Mundial, as relações entre Brasil e Estados Unidos tornam-se ainda mais próximas, seja por interesses comerciais, seja pela busca de fortalecimento do capitalismo na chamada Guerra Fria. Em 1947, o presidente americano Henry Truman veio ao Brasil. Os meios de comunicação de massa, a exemplo da revista Cruzeiro – como demonstra pesquisa da historiadora Lilian Marta Grisolio Mendes (2011) –, disseminam o modo de vida americano, exaltando o consumo de produtos industrializados. Ao mesmo tempo, o país se abre aos investimentos estrangeiros e à instalação de multinacionais como forma de buscar o desenvolvimento por meio da industrialização. Nesse cenário, atua o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão criado em 1955 e vinculado ao MEC, portanto de essência governista. Esse grupo, conforme Ortiz (1994a), concebe cultura como elemento de transformação socioeconômica, alinhado, portanto, aos ideais desenvolvimentistas do Governo Juscelino Kubitscheck. O período carrega, contudo, uma forte contradição: caracteriza-se pela internacionalização da economia brasileira, vivendo um período de americanização da cultura e, ao mesmo tempo, procura “fabricar” um ideário nacionalista para diagnosticar e agir sobre os problemas nacionais. (ORTIZ, 1994a). O ISEB reunia liberais, comunistas, socialdemocratas e católicos-progressistas a fim de formular uma ideologia Nacional-Desenvolvimentista.

Os diferentes posicionamentos ideológicos dos integrantes do ISEB geravam frequentes embates. Uma ala queria o instituto menos acadêmico e mais engajado na práxis política, enquanto outro grupo apostava no espírito científico que pudesse influenciar nas decisões governamentais. Essa crise cindiu o grupo em 1958. A partir de então, o instituto passou a se identificar mais com o pensamento marxista e a privilegiar o debate das reformas sociais e econômicas defendidas pelo

26De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2003), em 1920, 75% da população

brasileira era analfabeta; em 1940, 57,9%; e, em 1950, 53,16%. Disponível em: <http://seculoxx.ibge.gov.br/>. Acesso em: 3 abr. 2015.

governo Goulart e pelo movimento nacionalista (SOUZA, 2014). Não se pode conceber o ISEB como uma tentativa de participação de representantes da sociedade civil nas reflexões acerca de políticas públicas, já que tal participação restringia-se a um grupo de intelectuais e era um órgão governamental, portanto, esses intelectuais27 estavam a serviço do governo.

Três dias depois do Golpe de 1964, o ISEB foi extinto e se instaurou Inquérito Policial Militar para apurar suas atividades. A biblioteca, os arquivos e os móveis da sede do instituto foram destruídos por manifestantes e alguns de seus integrantes precisaram sair do país. Mesmo depois da extinção, a influência de alguns intelectuais do ISEB na esfera cultural foi profunda. Para Ortiz (1994a), no início dos anos 60, dois movimentos sociais realizavam na prática os ideais do instituto: o Movimento de Cultura Popular no Recife e o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, com destaque para as atuações de Paulo Freire e Carlos Estevam Martins.