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Em nossa pesquisa, o estudo da língua em uso consiste na análise do material lingüístico (como entidade abstrata, no nível da língua) posto em ação, quer dizer, em suas ocorrências (como entidade concreta, no nível da fala). Assim, enquanto a frase e o texto correspondem ao nível abstrato da linguagem, o enunciado e o discurso dizem respeito a suas ocorrências, às interpretações que fazemos do emprego dessas estruturas, dos sentidos por elas veiculados. Para Ducrot (1984, p. 374),

as instruções que constituem a significação total de uma frase podem ser calculadas por meio de regras combinatórias aplicas às significações dos seus constituintes. Dentro dessa hipótese, o sentido do enunciado obter-se-ia, tendo em conta a situação de enunciação, a partir da significação da frase, sendo esta estabelecida, independentemente da situação, em função da significação dos seus elementos.

É a significação da frase, composta pela relação estabelecida entre seus constituintes, que indica como encontrar, a partir da situação de enunciação, o referente semântico- discursivo dos termos que a constituem. Para tirar, então, partido dessa possibilidade, é preciso conhecer, desde o início, uma descrição semântica da totalidade da frase, o que a teoria denomina significação. Como já vimos nas seções anteriores, a significação da frase fornece indicações que possibilitam descobrir, numa situação de enunciação particular, aquilo a que se referem seus enunciados mas, com raras exceções, ela sozinha pode exercer a função referencial (não sob forma de descrição objetiva da linguagem, porém, por meio de sua interpretação, pelo discurso).

Nessas condições, a partir da análise da significação da frase onde a oração relativa se encontra teremos acesso ao enunciado em que esse fenômeno lingüístico opera, ou melhor, poderemos interpretar o sentido produzido, identificando o papel que essa oração exerce na situação enunciativa em que atua. Definimos então a oração relativa como uma unidade semântica que interligada discursivamente a outros enunciados constitui uma situação enunciativa, dentro de um movimento argumentativo maior que é o sentido da crônica como um todo (o discurso). Em síntese, iniciamos observando a representação lingüística (material, gramatical) da relativa e chegamos à sua atuação argumentativa no enunciado: o papel discursivo que exerce no sentido construído.

Entender a língua em uso implica, nesses termos, conhecer o funcionamento da gramática dessa língua, o que, para Ducrot (1987, p. 167), consiste no ato de “especificar e caracterizar as frases subjacentes aos enunciados realizados através desta língua”. Para compreender a gramática, ou melhor, o funcionamento semântico-argumentativo da língua, é preciso analisar o enunciado (entidade empírica, concreta), instância em que se constitui o sentido, e também ao qual subjaz a frase (entidade abstrata), que é constituidora da forma, elemento lingüístico que viabiliza o acesso ao sentido. Em resumo, para compreender o papel argumentativo exercido pela oração relativa, enquanto entidade lingüística, precisamos investigar a relação de interdependência semântica que ela, a partir de sua significação, estabelece com os demais termos que aí atuam, na medida em que constroem o sentido do

enunciado, como situação enunciativa, situando-a no movimento argumentativo produzido pela crônica analisada, enquanto discurso.

Para Ducrot (1984, p. 379), “parece difícil atribuir ao texto um valor semântico, seja ele concebido como a soma de suas frases ou como seu encadeamento”, pois a significação diz respeito apenas à frase, enquanto o sentido é reservado tanto ao enunciado, quanto ao discurso, no nível complexo. O autor sugere que comecemos a análise semântico- argumentativa interpretando o sentido do primeiro enunciado do discurso selecionado e então passemos a investigar seu sentido como um elemento da situação para interpretar o sentido do segundo enunciado, e assim sucessivamente, até obtermos o sentido global, no seu conjunto. Realizando uma leitura desse processo, Ducrot (1984, p. 377) explicita que,

para encontrar o sentido da ocorrência de F2, é preciso conhecer já o sentido da ocorrência de F1, e esta, por sua vez, só pode ser estabelecida pelo confronto da significação da frase com a situação de enunciação. O ponto essencial nesta argumentação é que a situação não intervém directamente para interpretar o enunciado de F2: ela intervém apenas através do sentido que conferiu ao primeiro enunciado. Este facto parece-nos confirmar a idea de que seria pelo menos muito pouco cômodo, atribuir uma significação à sucessão das frases no texto, significação que seria, em seguida, metamorfoseada em sentido a partir da situação. O procedimento mais simples parece ser, pelo contrário, o que consiste em começar por interpretar o primeiro enunciado do discurso, e depois considerar o seu sentido como um elemento da situação para a interpretação do segundo enunciado, e assim por diante.

Nesse contexto, ao descrever o papel semântico-argumentativo da oração relativa na constituição do sentido do enunciado em que atua, partimos da frase (enquanto instruções) para então chegarmos ao enunciado selecionado nos discursos que serão analisados, enquanto enunciação, pois só assim entenderemos o sentido produzido e o modo como ele é construído. Considerando que efetuaremos uma abordagem semântica, sob a perspectiva da TBS, e essa é uma teoria que se preocupa com a descrição lexical da linguagem, através de encadeamentos argumentativos, tanto normativos quanto transgressivos, orientamos nossa análise por meio da argumentação interna que emana das palavras plenas e dos encadeamentos semânticos que elas criam entre si e com as demais palavras instrumentais existentes no discurso em estudo. Seguindo os passos da teoria adotada, inicialmente, identificamos a argumentação interna que emana das palavras plenas, verificando as combinações e associações estabelecidas para então chegarmos ao encadeamento argumentativo próprio de cada enunciado, culminando no sentido por ele produzido, no nível do discurso.

O sentido do enunciado comporta uma qualificação (tematização) de sua enunciação, quer dizer, ao falar, falamos de nossa própria fala, implicando que “aquilo que se diz tem como elemento constituinte uma certa qualificação do dizer” (DUCROT, 1984, p. 379). Nessa abordagem, a enunciação consiste em uma realização lingüística efetuada por um locutor, dirigindo-se a um interlocutor (podendo ser ele próprio) em dado tempo e espaço, o que constitui um acontecimento particular, único, irrepetível e irrecuperável. É bom lembrar que o foco (da teoria e também de nossa análise) não está em quem fala e a quem se dirige, mas naquilo que disse, no modo como efetuou esse dizer e o efeito discursivo que provoca ao ser interpretado por seu interlocutor.

No caso do discurso, esclarece Anscombre (1995) e Ducrot (1984, 1997), a interdependência semântica entre seus enunciados nem sempre diz respeito à informação que eles veiculam, mas ao fato de a veicularem. Isso ocorre quando o sentido do segundo enunciado não diz respeito ao sentido do primeiro, mas à sua enunciação. Para compreender então a coerência interna ao discurso, enfatiza Ducrot (1984, p. 381), “é preciso ver que ele (o discurso) é, em certos pontos bem precisos, um discurso voltado sobre si próprio, que tira as conclusões da sua própria existência”. Nesse sentido, o autor defende que é característica imanente da linguagem o fato de um segmento de discurso poder comentar sua própria enunciação.

Como já vimos neste capítulo, a ANL busca, desde sua origem, comprovar a tese de que a argumentação está marcada na própria estrutura da língua. Iniciou então a descrição da linguagem indo de encontro à concepção tradicional de argumentação e, na proporção em que foi avançando e aperfeiçoando seu estudo argumentativo do discurso, a teoria passou por duas diferentes etapas, até chegar à terceira fase, que é a atual.