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Teoria da Argumentação na Língua (ANL): primeira e segunda fases

Antes de chegar ao estado atual da TBS, a ANL passou por duas fases: a forma standard e a forma da polifonia e dos topos. Apesar das constantes reformulações, ao passar de uma fase a outra, Anscombre e Ducrot, e mais recentemente Carel, sempre mantiveram a preocupação de atestar que a argumentação está inscrita na língua e não na sua exterioridade, direcionando seus conceitos e princípios teóricos à comprovação dessa tese.

Ao dedicar seus estudos ao caráter semântico da linguagem, buscando descrever o funcionamento do enunciado, Anscombre e Ducrot (1983) opuseram-se à concepção tradicional de sentido, procurando encontrar argumentos que pudessem sustentar sua posição de que a argumentação está marcada na estrutura interna da língua, atestando que esta exerce papel fundamental na produção do ato argumentativo, ao nos comunicarmos. Na perspectiva teórica desses autores, a maneira como a linguagem descreve a realidade consiste em fazer dela um debate entre indivíduos (DUCROT, 1988). Tal descrição se dá através da expressão de uma atitude e também de um chamado que o locutor faz a seu interlocutor.

Sob um ponto de vista diferente da versão tradicional de argumentação, Ducrot (1988, p. 53) defendia que o discurso compõe-se de dois segmentos: S1, o argumento, e S2, a conclusão, sendo que o sentido do primeiro é orientado pela direção apontada pela conclusão, comprovando que as duas seqüências constroem o sentido do enunciado. No exemplo: “Faz calor, vamos à praia!”, o primeiro segmento funciona como argumento ao segundo. Só sabemos a que tipo de calor o locutor se refere quando tomamos conhecimento da conclusão (S2), em que há o convite para ir à praia. Assim, o calor a que o locutor se refere é o calor para ir à praia, informação que só se completa com o segundo segmento: a direção semântica apontada pela conclusão.

No que tange à primeira fase da teoria, desenvolvida no início da década de 80, Anscombre e Ducrot (1983) procuravam demonstrar sua tese refutando o ponto de vista retórico de que o movimento argumentativo está fora da língua. Nesse momento, os autores foram de encontro a tal concepção porque os lógicos tradicionais defendiam que o movimento argumentativo remete à realidade que nos cerca, aos fatos do mundo, tendo a condição de verdade como elemento norteador, o que enfraquece o papel da língua no ato argumentativo.

A ANL contestou essa concepção de sentido por ela considerar que, para conter uma argumentação, o discurso precisa satisfazer três condições: 1 deve conter dois segmentos – um argumento (A) e uma conclusão (C); 2 o argumento deve indicar um fato e pode, portanto, ser considerado verdadeiro ou falso, pois possui valor de verdade. Nesse caso, o argumento é visto isoladamente, como tendo sentido próprio, já que não temos conhecimento da conclusão imaginada pelo locutor; e, por fim, 3 a conclusão pode ser influenciada pelo fato, uma vez que há implicação entre o fato e a conclusão. Anscombre e Ducrot (1983), e também Carel (1997), contestam o ponto de vista da retórica por entender que, sob tal abordagem, em que os fatos

são prioritários e autônomos na descrição da linguagem, a língua exerce papel secundário na argumentação, sendo exatamente o oposto da tese que defendem: de que a argumentação está inscrita na própria língua, em sua estrutura interna. Para os seguidores da ANL/TBS, não são os fatos propriamente ditos, isolados, que orientam o sentido produzido pelo enunciado, mas sim o caráter argumentativo imanente à língua.

Defendendo esse ponto de vista, Carel (1997, 2000) esclarece que uma abordagem que se baseia apenas em fatos não pode ser confiável pois, se consideramos somente os fatos, não podemos dar conta do uso da oposição argumentativa de pouco (peu) e um pouco (un peu), questões já levantadas por Anscombre e Ducrot. No caso do princípio argumentativo de que “bom apetite é sinal de saúde”, uma mãe, cujo filho está doente, é questionada sobre o estado do pequeno e responde:

1 “Ele comeu pouco: não está melhorando (estou preocupada)” ou ainda 2 “Ele comeu um pouco: deve estar melhor (estou contente)”

Sob essa perspectiva, seria impossível dizer “Ele comeu pouco: deve estar melhorando” ou “Ele comeu um pouco: não apresenta melhoras” pois, em termos factuais, os argumentos “comeu pouco” e “comeu um pouco” designam o mesmo fato, isto é, determinada quantidade de comida. Mas, então, como sustentar que os enunciados 1 e 2 mostram raciocínios fundados em fatos descritos por seus argumentos, se um mesmo fato, sustentado por um mesmo princípio argumentativo, orienta a conclusões opostas?

Para a autora (1997), se há raciocínio (movimento argumentativo), ele não se fundamenta no conjunto de fatos descritos nos enunciados 1 e 2, todavia, no valor argumentativo que a própria língua traz imanente em sua estrutura interna (lingüística). Carel (idem) sustenta sua tese na hipótese de que a potencialidade argumentativa da língua pode associar comer pouco e comer um pouco a duas questões:

a) comeu uma certa quantidade de alimento; e b) a quantidade de alimento ingerida foi pouca.

Esse enfoque atribui à língua mais condições de apresentar os fatos de diferentes maneiras: o conteúdo de um enunciado pode ser posto, correspondendo ao dito, ou

pressuposto, correspondendo ao implícito. Assim, em “O menino comeu pouco”, -a- (quantidade de alimento) é o pressuposto e -b- (pouca quantidade) o posto. Já em “O menino comeu um pouco”, -b- é o pressuposto e -a- o posto. O caráter argumentativo da distinção está na questão de que são os fatos postos, aqueles apresentados como o objeto do dizer (do discurso), que tendem a orientar o raciocínio. Sendo assim, se de um ponto de vista informativo os argumentos dos enunciados 1 e 2 (seus primeiros segmentos) apresentam o mesmo acontecimento (fato), na perspectiva argumentativa, eles não descrevem o mesmo fato, podendo, em vista disso, levar a conclusões contrárias.

No entender de Carel (1997), a pressuposição é indispensável à argumentação, mas sua participação fica em um nível secundário, configurando o quadro no qual o posto é afirmado. Sob tal ótica, os dois segmentos que constituem o enunciado atribuem sentido à argumentação quando analisados conjuntamente, interligados por um conector. Então, “a argumentação não se fundamenta em nenhuma descrição preliminar, ela está inscrita no próprio léxico e independe de qualquer outra função da língua”15 (CAREL, 1997, p. 28).

Antes de Carel, a questão do funcionamento dos operadores argumentativos pouco (peu) e um pouco (en peu) já tinha sido analisada por Anscombre e Ducrot. Ao estudá-los, os dois autores buscavam explicar por que diferentes expressões argumentativas podem manifestar as mesmas conclusões. Ou ainda como as mesmas expressões podem orientar a conclusões diversas. Procurando esclarecer tais indagações e não encontrando respostas plausíveis ao considerar o enunciado a partir de seu conjunto de conclusões possíveis, Ducrot (1997, 1998) e Anscombre (1998) perceberam que o valor argumentativo depende de um princípio argumentativo (lugar comum argumentativo) que sustenta a relação entre o argumento e a conclusão, surgindo assim a noção de topos16. O problema, explicita Ducrot (1989,p. 21), “é que as possibilidades de argumentação não dependem somente dos

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“l’argumentation ne se fondant sur aucune description préliminaire, elle est enracinée dans le lexique même et indépendante de toute autre fonction de la langue” (tradução nossa).

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Ducrot (1988, 1989) resgatou o termo topos dos estudos de Aristóteles, adaptando-o a seus interesses lingüístico-discursivos, transformando-o de argumento usado na defesa de uma tese a um princípio argumentativo. Para Ducrot, topos (cujo plural é topoï) é um princípio argumentativo, um terceiro elemento que sustenta a passagem de um argumento a uma conclusão. Esse princípio argumentativo é comum, geral e gradual. É comum porque é aceito (compartilhado) pela comunidade em que está inserida a pessoa que é o Locutor; é geral porque representa vários casos e não um uso exclusivo (serve também para descrever soluções análogas); é gradual porque apresenta duas escalas, P e Q, propriedades postas em relação pelo topos na passagem do argumento à conclusão. Ducrot (1988) defende que a gradualidade do topos reside no fato que tanto seu elemento antecedente quanto conseqüente são graduais, assim como também é gradual a relação entre os dois, sendo que a cada grau do antecedente corresponde um grau do conseqüente.

enunciados tomados por argumentos e conclusões, mas também dos princípios dos quais se servem para colocá-los em relação”. Essa noção, juntamente com a de Polifonia17 que, ao contestar a idéia de unicidade do sujeito falante, defende a existência de diferentes vozes em um mesmo enunciado (representadas pelo Sujeito Empírico, Locutor e Enunciador), revolucionaram a forma Standard, dando origem à segunda fase da ANL.

Nessa perspectiva, a noção de topos implica que o enunciado remete a determinada imagem do contexto em que é produzido, é efeito dos valores sociais, argumentativos, vigentes em dada comunidade, num determinado período, enfim, consiste em um princípio argumentativo. Para Ducrot (1997, 1999, p. 5), o topos designa “o princípio geral que garante ou justifica a passagem do argumento à conclusão do argumento”. Esse novo modo de descrever a linguagem funda-se em uma proposta em defesa de que o argumento justifica a conclusão de um enunciado, e também de que a passagem do argumento para a conclusão se dá por meio de um topos (um terceiro elemento), ou seja, via um princípio argumentativo (um lugar comum) que garante o sentido construído por essa relação.

Ao dizer que o Enunciador é argumentador, Ducrot (1988, p. 99) admitia que “o enunciado contém um ato de argumentação”. O autor entendia que, para interpretar um enunciado argumentativo, era preciso imaginar (conhecer) o topos utilizado pelo locutor. Em outras palavras, a frase empregada pelo argumentador guarda em sua significação uma instrução, solicitando que o intérprete busque (descubra) o topos (o princípio argumentativo) no qual a argumentação se fundamenta. Nesse momento da teoria, a preocupação não estava em definir o ato de argumentação realizado pelo locutor, mas em determinar o caráter argumentativo dos diferentes pontos de vista apresentados no enunciado. Nessa ótica, explicava Ducrot (1999, p. 5), uma frase pode ser descrita como um feixe de topoi que representa seu potencial argumentativo.

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Tomando a expressão polifonia emprestada de Bakhtin, Ducrot (1988) a remeteu ao discurso, descrevendo o sentido como sendo as diferentes vozes que nele se manifestam. Com sua proposta, Ducrot mostrou que o autor de um enunciado se expressa por meio de personagens que ele põe em cena em seu dizer. Reconhecer que há um coro de vozes no enunciado levou Ducrot a questionar a unicidade do sujeito falante, criando a Teoria da Polifonia da Enunciação, segundo a qual podem existir sujeitos com diferentes status em um único enunciado. O sujeito pode desempenhar diferentes funções tais como Sujeito Empírico (SE), Locutor (L) e Enunciador (E). O primeiro é o autor efetivo (ser do mundo), o próprio produtor do enunciado; o segundo é o responsável pelo enunciado (por aquilo que é dito), está presente e deixa marcas lingüísticas da primeira pessoa (é o ser do discurso); e o terceiro representa os diferentes pontos de vista apresentados na enunciação.

Mesmo antes de ter criado a noção de topos, Ducrot (1995) já defendia que certos fatos da língua comprovam a existência de uma gradação intrínseca aos predicados, evidenciando que o topos pode ser aplicado com maior ou menor força, possibilitando, portanto, uma situação de gradualidade. Essa potencialidade mostra que além de possuir uma semântica própria, a palavra também apresenta uma gradação argumentativa inerente. O autor verificou a questão estudando o comportamento de determinados modificadores (adjetivos e advérbios) que se apresentam junto aos predicados da língua (nomes e verbos). Conforme observação, os modificadores podem ora aumentar, ora diminuir a força argumentativa dos predicados. Tal força liga-se ao Topos que constitui a significação do predicado, podendo funcionar como modificador realizante (quando aumenta sua força argumentativa) ou desrealizante (quando a diminui).

No que se refere ao enfoque da polifonia, também desenvolvido no segundo momento da teoria, o sentido nasce do confronto entre diferentes vozes que se manifestam no enunciado, portanto, devemos descrever a argumentação com base nos diversos personagens (enunciadores) que o locutor põe em cena. Além do sujeito empírico (produtor efetivo do enunciado), há o locutor (o ser discursivo responsável pela produção do enunciado) e o enunciador (o responsável pelo ponto de vista que o locutor manifesta no discurso, ao se fazer enunciar). O locutor manifesta sua atitude empregando o enunciador como intermediário que expressa diferentes pontos de vista.

O locutor pode estabelecer diversos tipos de relações (atitudes) com o enunciador: de identificação, de aprovação, de oposição, dependendo do modo como se enuncia. Citando alguns exemplos dessa relação, podemos dizer que quando o locutor identifica-se com um dos enunciadores, impondo o seu ponto de vista, temos a asserção; na situação em que ele se mostra estar de acordo com o enunciador, aprovando seu posicionamento, mesmo que não tenha a intenção de admitir esse ponto de vista como sendo seu, temos a pressuposição; e quando o locutor opõe-se ao enunciador, refutando seu ponto de vista, temos a negação. Nesse último caso, se o locutor apresenta um ponto de vista que ele mesmo refuta, sem, no entanto, apresentar outro posicionamento que conserte o primeiro, temos o humor (incluindo a ironia) (DUCROT, 1988).

Aprofundando seus estudos sobre a argumentação, mas sempre sustentando que ela está no caráter interno da língua, Ducrot (1997), juntamente com Carel (1995, 2000), fizeram

uma releitura do uso do topos e, por considerá-lo exterior à língua (um terceiro elemento que assegura a passagem do argumento à conclusão), optaram por excluí-lo e redimensionaram o funcionamento desse princípio argumentativo, dando origem à TBS, momento atual da ANL.