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Posicionamento Ontoepistêmico e direcionamentos da pesquisa

CAPÍTULO 3 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.1 Posicionamento Ontoepistêmico e direcionamentos da pesquisa

Por considerar o processo investigativo como um engajamento das subjetividades e das experiências de vida dos agentes envolvidos, a pesquisa apresentada nesta tese se afasta de orientações positivistas e funcionalistas de explicação e interpretação da realidade social, pois se ampara em orientações mais crítico-reflexivas que compreendem a realidade como uma construção social, discursiva e dialógica. Assim, para desenvolver o estudo proposto, orientou-se epistemologicamente pela abordagem da ACD, da PDT e da SC.

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Corpus - conjunto de discursos utilizados na realização de uma análise textual, prática e discursiva (FAIRCLOUGH, 2001).

Apesar das dificuldades em termos ontológicos e epistemológicos que a busca de articulações entre campos teóricos diferentes tende a causar nas discussões científicas, esta tese empreende uma compilação teórica entre a PDT, a SC e a ACD, demonstrando as aproximações e complementaridades dessas abordagens e suas diferentes contribuições para o estudo do trabalho docente. Em face da complexidade do fenômeno em análise, foi necessário articular essas diferentes vertentes teórico-metodológicas para apreender as concepções discursivas, simbólicas, objetivas e subjetivas do trabalho de professores universitários do ensino superior público.

Ressalta-se que, quando o assunto é relações de trabalho, saúde e subjetividade, as abordagens da PDT, da ACD e da SC têm muito a contribuir, principalmente se pensadas sob um mesmo prisma de análise. Cada qual com suas especificidades tende a fornecer um conjunto de premissas, abrindo um leque de possibilidades de compreensão de um mesmo fenômeno social. O fato de a PDT orientar os estudos sobre as relações entre organização do trabalho e processos de subjetivação, permite um avanço no campo das pesquisas em Administração, desvencilhando de orientações funcionalistas. De mesmo modo, a SC, ao focar-se em uma abordagem sociológica e nos estudos acerca da subjetividade e das relações de poder entre os indivíduos e as organizações, apresenta distanciamentos do positivismo na ciência da gestão. A ACD, por direcionar-se aos elementos do discurso, também caminha na mesma perspectiva, fornecendo elementos mais críticos-reflexivos para a interpretação da realidade organizacional à luz dos discursos e ideologias nela produzidos. Por esse motivo, estas correntes orientaram, em termos teóricos e metodológicos, a pesquisa realizada nesta tese.

Para explicar mais claramente como cada uma dessas abordagens serviu de orientação para a compreensão do trabalho docente, é necessário trazer à tona

as aproximações teóricas e as complementaridades entre essas correntes e, posteriormente, demonstrar como cada uma contribuiu para este estudo.

3.1.1 Aproximações e complementaridades entre a PDT, a SC e a ACD

Há que se destacar que, apesar de a PDT, a SC e a ACD terem seus direcionamentos particulares, não se pode negar que elas convergem e se complementam em determinados aspectos, favorecendo articulações nas pesquisas em ciências sociais. A ACD promove interlocuções significativas com a SC e com a PDT, segundo os processos discursivos e intersubjetivos de construção da realidade, e as três correntes buscam estudar os fenômenos sociais à luz do contexto das relações do homem com a organização e com a sociedade. Isso porque se trata de vertentes focalizadas na prática, na observação, na compreensão das dimensões individuais e sócio-discursivas. Para demonstrar mais claramente essas premissas aqui defendidas, o Quadro 09, construído com base em orientações da literatura, esquematiza essas aproximações e complementaridades entre a PDT, a SC e a ACD, de forma simples e sistemática.

Aproximações e complementaridades

Aspectos PDT SC ACD

Ontologia Ontologia híbrida (Teoria da Ação e do Conflito) Ontologia híbrida (Teoria da Ação e do Conflito) Ontologia híbrida (Teoria da Ação e do Conflito)

Epistemologia Construção subjetiva, objetiva e intersubjetiva, atravessada por relações sociais e econômicas. Construção intersubjetiva e sociológica, atravessada por relações de poder, sociais e econômicas. Construção subjetiva e intersubjetiva, atravessada por relações de poder, discursivas e ideológicas. Orientações ontoepistêmicas Perspectiva crítica de análise psíquica da realidade social, fundamentada nas relações que se estabelecem entre o sujeito e a organização do trabalho. Perspectiva crítica de análise sociológica e psíquica da realidade social, fundamentada nas relações socioprofissionais. . Perspectiva crítica de interpretação da realidade social e discursiva com base

em uma análise minuciosa do contexto histórico- social e da produção de discursos. Origens e bases teóricas Psicanálise, Sociologia, Ergonomia, Psicossomática, Filosofia, Psicologia, e a Psicopatologia. Psicologia Social, Sociologia, Antropologia Social, Psicanálise, Psicossociologia e o Existencialismo. Linguística; Psicanálise e a Sociologia Marxista.

Foco analítico Na relação entre a organização do trabalho, a saúde do trabalhador e os processos de subjetivação, e nas experiências de prazer/sofrimento e loucura e normalidade.

Nas relações entre trabalho, subjetividade,

poder e relações socioprofissionais

entre indivíduos, grupos e sociedade.

Nas relações entre discurso, poder, prática social e ideologia, envolvendo os aspectos intersubjetivos e interdiscursivos. Direcionamento prático Intervenção social e estudo de campo com

ênfase na prática, na observação e na compreensão das dimensões individuais

e sociais.

Intervenção social com pessoas e grupos. Ênfase na prática, na observação, e nas dimensões individuais e sociais. Intervenção e mudança social, com

ênfase na prática discursiva e social, na observação, e nas

dimensões individuais e sociais. Quadro 9 Aproximações e complementaridades entre a PDT, a SC e a ACD

―Quadro 9, conclusão‖ Aproximações e complementaridades Aspectos PDT SC ACD Aspectos metodológicos Análise clínica do processo de subjetivação no trabalho, que consiste

em um espaço de escuta e de observação

da relação do sujeito com o seu trabalho e dos fenômenos em sua

singularidade.

Análise clínica e sociológica do trabalho. Espaço de

escuta dos fatores psíquicos e sociais que

compõem a singularidade do fenômeno e das relações socioprofissionais. Análise do Discurso nas dimensões textuais, discursivas e práticas, vislumbrando a compreensão da realidade social com

base no discurso coletivo e singular. Ênfase no campo da gestão Crítica ao paradigma funcionalista e apresentação de uma abordagem mais aberta. Articulações lógicas entre subjetividade e objetividade na constituição do psiquismo e discussão das consequências do trabalho sobre a saúde mental dos indivíduos.

Crítica ao paradigma funcionalista e apresentação de

possibilidades metodológicas para uma análise clínica das

ciências da gestão, de modo a contribuir com

o entendimento da constituição da subjetividade e das relações de poder. Crítica ao paradigma funcionalista e apresentação de uma análise em profundidade dos aspectos discursivos e intersubjetivos dos sujeitos, bem como

as dissonâncias semânticas entre a linguagem e a prática social. Contribuições práticas para a pesquisa em Administração Dá a condição de os sujeitos (trabalhadores) expressarem sua voz e

seus sentimentos em relação às contradições

do contexto de trabalho, avançando

nos estudos sobre a relação entre trabalho

prescrito e real e processos de subjetivação.

Dá a condição de os sujeitos (trabalhadores)

expressarem sua voz e seus sentimentos em relação às suas vivências, experiências, emoções, comportamentos, sentidos e história de vida e de trabalho, dando visibilidade às relações subjetivas e de poder. Dá a condição de os sujeitos (trabalhadores) expressarem sua voz

e a voz de outrem instituída nos discursos organizacionais, bem como permite a compreensão das ordens de discurso, das redes de prática e da concepção

ideológica e hegemônica que orienta uma dada

realidade organizacional.

Conforme visualizado, as vertentes teóricas da PDT, da SC e da ACD apresentam aspectos similares e complementares no que se refere às orientações

ontoepistêmicas, para o desenvolvimento de pesquisas em ciências sociais e no campo da gestão, principalmente nas discussões sobre as relações de trabalho. Cumpre aludir que a epistemologia predominante no campo da ciência da gestão remete a uma perspectiva funcionalista e gerencialista, que elimina, talvez, qualquer possibilidade de avanços das análises da subjetividade, do poder e do discurso, renegando quaisquer possibilidades de voz dos sujeitos imersos nas estruturadas sócio-organizacionais. Nesse ínterim, as vertentes da ACD, da PDT e da SC apresentam-se como perspectivas teóricas que ajudam a avançar essas concepções funcionais, pois focalizarem compreensões acerca do discurso, da subjetividade e das relações de poder. Ademais, destaca-se que a ciência da gestão, muitas vezes, tem ignorado a complexidade das relações para se fixar no distanciamento objetivo, perdendo o olhar mais aprofundado das relações sujeito/organização/sociedade (ROSSI et al., 2009). Com isso, as possibilidades de articulações mais aprofundadas entre tais vertentes tende a caminhar no sentido oposto e fornecer novas possibilidades interpretativas da realidade, e foi esse esforço que esta tese empreendeu ao buscar compreender o trabalho docente tendo como aporte epistemológico e teórico-metodológico essas três abordagens.

3.1.2 A PDT, A SC e a ACD na compreensão do trabalho docente

Em termos de orientação teórico-metodológica, tanto a ACD, quanto a SC e a PDT forneceram as bases para a pesquisa realizada. A ACD permitiu entender a ideologia que orienta os discursos dos professores universitários no campo do ensino superior público. Assim, buscou-se compreender as concepções discursivas, simbólicas e os interdiscursos, analisando-os dentro de uma ideologia hegemônica que foi sócio-historicamente construída na sociedade brasileira acerca do trabalho docente. Para isso, fez-se uma revisão textual ou

revisão bibliográfica, para levantar as intertextualidades e interdiscursividades sócio-históricas e as influências discursivas contemporâneas sobre esse modo de trabalho, com intuito de ajudar a compreender o discurso dos professores entrevistados em seus contextos de trabalho. Ademais, a concepção de discurso como uma prática social (FAIRCLOUGH, 2001) orientou a apreensão dos significados do trabalho docente para os professores pesquisados, juntamente com a noção de subjetivação da PDT e da SC.

Já a abordagem psicodinâmica norteou as dimensões de análise do prazer e do sofrimento no trabalho docente, haja vista que se trata de uma vertente que consiste em um espaço de escuta, em que o pesquisador se coloca à disposição para ouvir o trabalhador expor suas considerações acerca da organização do trabalho e seus sentimentos em relação a isso (DEJOURS, 1992). Ademais, a PDT também permitiu identificar as dissonâncias entre o trabalho prescrito e a realidade concreta de trabalho dos professores pesquisados e compreender os estágios de prazer/sofrimento, as estratégias de enfrentamento e o desenvolvimento de patologias resultantes dessa dinâmica. Infere-se que a identificação dessa dissonância facilitou a compreensão do trabalho desses professores por permitir conhecer o olhar dos mesmos sobre a forma de organização de seu trabalho e o que de fato eles realizam/desempenham no exercício de suas funções. Essa abordagem preza pela investigação de campo e busca viabilizar a compreensão contemporânea do trabalho e da subjetividade ao enfocar as formas de sofrimento, as patologias e as estratégias defensivas rumo ao prazer.

Assim como a PDT, a SC forneceu as orientações para uma investigação clínica como um espaço de escuta, dando visibilidade às relações de poder e aos processos subjetivos e intersubjetivos que formatam as relações socioprofissionais no campo do trabalho e alteram a dimensão de sentido e significado. Essa perspectiva norteou a construção e o resgate das trajetórias

socioprofissionais dos professores pesquisados, o que muito contribuiu para a apreensão dos significados, das concepções simbólico-discursivas e das experiências subjetivas no trabalho. Juntamente com a PDT e ACD, a SC permitiu avanços na interpretação do contexto contemporâneo de trabalho dos professores universitários. Em resumo, neste estudo, a PDT, a SC e a ACD deram voz aos professores, permitindo que eles expressassem: (a) suas trajetórias socioprofissionais e experiências subjetivas vivenciadas no campo do trabalho; (b) suas percepções acerca das rotinas e processos institucionais, prescritos e normativos do ofício docente; (c) seus sentimentos e concepções discursivas em relação às contradições do contexto de trabalho e as consequentes vivências de prazer e sofrimento; e (d) suas acepções sobre a propensão ao desenvolvimento de patologias resultantes do trabalho docente e confissões sobre as estratégias de enfrentamento. Por esse motivo, essas vertentes orientaram os interesses de pesquisa aqui descritos.

Cabe ressaltar que Dejours (2004a), ao propor a psicodinâmica, destaca que essa é uma concepção que parte de uma análise do coletivo de trabalho e não de casos isolados. Contudo, para cumprir com os objetivos desta tese, parte- se do individual para o coletivo, ou seja, parte-se das concepções subjetivas, intersubjetivas e singulares de cada professor acerca de seu trabalho e de suas experiências e vivências para compreender o trabalho docente em sua dimensão social e discursiva, como sugere a SC e a ACD. Destarte, sob a perspectiva da Sociologia Clínica, tais vivências, apesar de particulares, são fruto da construção de experiências coletivas, experimentadas nas práticas sociais. Em termos de concepção discursiva a ACD também defende que um discurso nunca é uno, haja vista que congrega uma infinidade de vozes de outrem.

Ressalta-se, ainda, que as orientações clínicas da PDT e da SC guiaram a realização do estudo, todavia não foram seguidos os critérios psicológicos de intervenção clínica para diagnósticos e tratamento de patologias, haja vista os

interesses desta pesquisa. Entretanto, esse fato não desmerece o estudo nem traz limitações significativas, pois como alega Dejours (1992), o objetivo deste tipo de investigação não é ―tratar‖ os trabalhadores, mas compreender e descrever as modalidades de ação da organização do trabalho e seus efeitos nocivos à sua saúde psíquica do trabalhador. Assim, o percurso metodológico foi estabelecido a partir das orientações da PDT, da SC e da ACD e na sequência, tem-se a caracterização do estudo, os sujeitos da pesquisa e a apresentação das categorias analíticas que direcionaram a prática investigativa.