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Trabalho, História e Significado – entre o castigo e o privilégio

2.1 O trabalho – contexto sócio-histórico e desafios na contemporaneidade

2.1.1 Trabalho, História e Significado – entre o castigo e o privilégio

Não é a primeira vez que o exercício de ―voltar ao passado‖ ajudará a iluminar caminhos e clarear perspectivas (DEL PRIORE, 2006). Portanto, volta- se ao passado, para compreender o significado histórico e discursivo do trabalho humano e suas raízes e legados sociais, haja vista que a reconstrução da perspectiva histórica permite identificar os contextos específicos das diferentes visões e construções discursivas acerca desse fenômeno e seu papel na sociedade, bem como ajuda a reconstruir a concepção de trabalho deste estudo. Como argumenta Foucault (2007), não se pode fechar os olhos para as raízes históricas, mas mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas.

Etimológica e historicamente, o conceito de trabalho esteve associado à expressão romana ―tripaliun‖, que representava um instrumento de tortura formado por três estacas pontiagudas, remetendo à ideia de castigo, conceito herdado do Império Romano que designava condenação. Posteriormente, veio à tona o conceito de labor, oriundo do latim, que designava dor, sofrimento, labuta e trabalho árduo (GODELIER, 1986). Atrelado ao conceito de labor estava o conceito de laboren, trazendo uma nova conceituação para o trabalho, mais pautado na ideia de cultivo, crescimento, transformação (CARTA..., 1979).

Na antiguidade o labor esteve associado à necessidade, à subsistência e à manutenção da vida, conforme indica Arendt (2004) e, por esse motivo, é que também passou a ser sinônimo de trabalho. Entretanto, a autora evidencia que a distinção entre labor e trabalho é necessária, visto que o trabalho pode ser tanto a atividade como o resultado do trabalhar, e labor, como substantivo, nunca pode ser o produto final do laborar, pois implica uma parte do processo. Concorda-se com ela, inclusive, porque essa distinção fenomenológica também

é comum no dialeto grego (erga e ponos), no latim (opus e labor), no alemão (arbeit e werk) e mais comumente no inglês (labor e work). Trata-se de uma distinção necessária à compreensão do trabalho no contexto sócio-histórico e nos dias atuais.

As sociedades antigas consideravam o trabalho-labor (focado na subsistência) indigno aos homens livres, sendo, então, uma atividade voltada para os escravos. Na perspectiva teológica, o trabalho foi visto como ―castigo de Deus‖, uma vez que, após o pecado, a humanidade foi punida tendo que extrair seu sustento por meio do seu suor, atribuindo ao trabalho um sentido obrigatório, árduo, penoso, fatigante, como relata o livro de Gênesis, da Bíblia Sagrada:

(E a Adão disse): Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás (GÊNESIS, 3:17-19).

Percebe-se que o pensamento cristão, em seu longo percurso, reafirmou o trabalho como martírio, condição necessária para a salvação nos planos celestiais. Nas escrituras bíblicas é registrado em Tessalonicenses, capítulo três e versículo dezoito que: ―Nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia para não sermos pesados a nenhum de vós. Mas se alguém não quiser trabalhar, não coma também‖ (TESSALONICENSES, 3:18).

Analogamente está implícita a concepção discursiva de trabalho como elemento punitivo e condição básica de sobrevivência e, só no final da Idade Média, que São Tomaz de Aquino concebe o trabalho como um ato moral, digno de honra e de respeito (ANTUNES, 2004). Mas foi somente a partir do século

XVI, pelo renascimento e protestantismo, que o trabalho tornou-se símbolo de dignidade humana e, posteriormente, no século XVIII, com a industrialização, passou-se a considerá-lo algo além de mera sobrevivência, mas também fonte de realização (CARMO, 1992) – o que Arendt (2004) denominou de trabalho-opus.

Ressalta-se que, especialmente a Revolução Industrial, acompanhada da revolução política americana e da revolução política francesa, introduziu novas concepções discursivas sobre o trabalho e seu significado na sociedade. Ou seja, o trabalho que, na sociedade medieval nem era cogitado, pois um nobre não devia trabalhar, de repente passa a ser valorizado, porque se transformou num símbolo de liberdade do homem para transformar as coisas e a sociedade (ENRIQUEZ, 2000). Aliás, foi o pensador inglês John Locke, quem disse que a liberdade fundamental do homem é a liberdade de empreender. De modo que o sujeito que não empreende, não tenta transformar as coisas e não expressa a sua liberdade. Baseado nesse ―rótulo discursivo‖ de liberdade, o trabalho assume significados valorativos.

Desde então, pensamentos filosóficos e sociológicos vêm cunhando concepções mais positivas para o trabalho. Destacadamente têm-se as contribuições de Karl Marx, com sua obra ―O Capital‖, que apresenta reflexões sobre os modos de produção do trabalho capitalista, atrelando a prática do trabalho ao processo de acumulação de riquezas; Max Weber com a obra ―A Ética Protestante e o Espírito Capitalista‖, que instiga o debate sobre o trabalho, o homem e a natureza; e Friedrich Hegel com a obra ―Filosofia do Direito‖, que ao estudar a sociedade civil e o Estado, atribui ao conceito de trabalho um sentido espiritual, econômico e filosófico, determinando-o como um elemento formador da consciência que permite o espírito conhecer a si mesmo.

Na compreensão de Marx (2004), o trabalho se assenta como elemento integrador da vida social pela centralidade que as atividades laborais ocupam na vida das pessoas, representando a própria autoconstrução do ser humano. Nessa

dimensão, o trabalho ganha uma nova conotação, como algo importante que, além de permitir sobrevivência, dignifica e humaniza as pessoas (CARTA..., 1979). Portanto, na concepção marxista, o trabalho formata a própria condição humana, por seu caráter criador de todos os valores (ARENDT, 2004). E representa, ao mesmo tempo, necessidade eterna para manter o metabolismo social entre humanidade e natureza (MARX, 2004).

Conforme Arendt (2004), essa orientação de Marx sobre o trabalho radicalizou as proposições de Adam Smith, para quem o trabalho era criador de toda a riqueza, e de John Locke, para quem o trabalho era a fonte do direito de propriedade. A autora denuncia que não foi o trabalho servil que se apresentou como central na vida social, mas o trabalho produtivo, e essa denotação é clara nas obras de Marx, Hegel e Locke que, unanimemente, não hesitaram em menosprezar as tarefas servis do trabalho não especializado, subserviente apenas ao consumo.

Ressalta-se que Hannah Arendt buscou a compreensão marxista do trabalho para, assim, estabelecer suas prerrogativas essenciais acerca da positividade e da negatividade do trabalho e reafirmar sua centralidade na vida humana. Nas palavras da autora,

A ―bênção ou a alegria‖ do trabalho é o modo humano de experimentar a pura satisfação de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas vivas; e inclusive o único modo pelo qual também os homens podem permanecer e voltear com contento no círculo prescrito pela natureza, labutando e descansando, trabalhando e consumindo, com a mesma regularidade feliz e sem propósito com a qual o dia e a noite, a vida e a morte sucedem um ao outro (ARENDT, 2004, p. 194).

Teoricamente, Arendt (2004) contribui para a compreensão do trabalho à medida que problematiza suas dualidades e reforça que ele designa tanto o trabalho-opus do artesão e do artista que gera uma obra duradoura (privilégio),

como o trabalho-labor voltado para a subsistência, labuta e fadiga (castigo). Complementa Antunes (2004) que, desde o mundo antigo, o trabalho tem sido compreendido por meio de dualidades como expressão de vida e degradação, criação e infelicidade, felicidade social e servidão, atividade vital e escravidão e, ainda, promove concomitantemente sentimentos de prazer e de sofrimento (MORIN; TONELLI; PLIOPAS, 2007).

Ocorre que, com o passar dos anos, a concepção simbólico-discursiva do trabalho alterou-se conforme as mudanças do contexto social. Assim, por um verdadeiro contorcionismo teórico, o trabalho deixa de ser considerado meramente um castigo ou punição e passa a ser percebido como esforço físico ou intelectual, direcionado para a realização de objetivos (ALBORNOZ, 1994).

Na sociedade moderna e contemporânea, o trabalho demonstra a capacidade de ―vencer na vida‖ (CARMO, 1992), ou a capacidade de ―ser livre para vender a sua força de trabalho‖ (ENRIQUEZ, 2000). Conforme Albornoz (1994, p. 59), ―as razões para trabalhar estão no próprio trabalho e não fora dele ou em qualquer de suas consequências‖. De modo que o trabalho representa mais do que uma ocupação ou um ato de servir, como também oportuniza o desenvolvimento e o preenchimento da vida do homem. Reforça Viegas (1989) que ele concebe a possibilidade de o homem crescer e realizar-se pessoalmente, ou seja, construir-se como ser, como indivíduo. Nesse ínterim, a dimensão do trabalho ganha novos contornos discursivos de positividade, mas não abandona o legado de negatividade, que foi historicamente e socialmente construído.

Na tentativa de ilustrar as concepções discursivas dualísticas construídas ao longo da história em tono do conceito de trabalho humano e os diversos significados a ele atribuídos, foi desenvolvido o Quadro 4, que sintetiza esquematicamente os elementos positivos e negativos do trabalho.

Elementos do trabalho

Configurações Negativas Configurações

Positivas Significado Trabalho-labor, tripalium, tortura, condenação, castigo. Trabalho-opus, centralidade, realização, reconhecimento. Finalidade Sobrevivência, subsistência. Desenvolvimento humano, realização profissional, emancipação. Natureza Trabalho árduo, penoso,

fatigante, estressante.

Trabalho decente, ético, digno de honra e

respeito. Relação dialógica Dominação,

subserviência, exploração.

Liberdade, crescimento, transformação. Dimensão social Desintegração, exclusão

social, opressão. Integração social, socialização. Dimensão individual Despersonalização Identificação, Sentimentos envolvidos

Sofrimento, dor, fadiga, estresse, cansaço, infelicidade. Prazer, alegria, contentamento, motivação. Efeitos da centralidade Autodestruição Autoconstrução Estratégia de enfrentamento

Patologia – doença física e mental

Saúde psíquica e equilíbrio.

Quadro 4 Elementos positivos e negativos do trabalho

Em síntese, o trabalho representa o elemento central da vida social, que além de organizar o convívio em sociedade, caracteriza e descaracteriza os indivíduos, conduzindo-os ao prazer e ao sofrimento, ou à realização e à anulação. Ademais, sob a lente de Seligmann-Silva (1990), o trabalho representa fonte de construção, satisfação, realização, riqueza, serviços úteis à sociedade humana, mas, ao mesmo tempo, pode significar sofrimento, escravidão, exploração, doença e até morte. De modo que, ao se enfocar o trabalho humano, não se pode deixar de abordar questões ambivalentes tais como autonomia e dominação, liberdade e controle, satisfação e insatisfação, prazer e sofrimento (BIDET, 2001), principalmente, no contexto contemporâneo do trabalho.