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2.1 O trabalho – contexto sócio-histórico e desafios na contemporaneidade

2.1.4 Prazer e sofrimento no trabalho

Os estudos sobre prazer e sofrimento no trabalho tiveram sua gênese na década de 1970, impulsionados pelas correntes francesas da Psicopatologia e da Psicodinâmica do Trabalho. Grande parte das pesquisas sobre essa temática advém dos estudos de Dejours (1987, 1992, 1996, 1999, 2001, 2004a), com o enfoque na teoria psicanalítica freudiana, e no Brasil, dos trabalhos de Mendes (2007), Mendes, Costa e Barros (2003), Mendes e Linhares (1996), Mendes e Morrone (2010) e Mendes e Tamayo (2001).

A concepção psicanalítica do prazer-sofrimento se perfaz sobre os trabalhos de Freud (1974, 1976), conjecturando elementos psíquicos que conduzem às experiências de prazer e de sofrimento. Para Freud (1976), o prazer é o que move o sentido de realidade, pois o indivíduo, a todo tempo, intenciona fundamentalmente obter prazer. Entretanto, o sofrimento lhe é um aspecto inerente, pois tem sua gênese no interior de cada pessoa, essencialmente atrelado ao seu passado e à sua infância. Sob a lógica freudiana, a vida no trabalho consiste em uma busca incessante por prazer e uma rejeição e repulsa ao desprazer. Assim, o enfoque dessa discussão demonstra que as vivências de prazer e sofrimento estão relacionadas com as experiências positivas e negativas do homem com a organização do trabalho.

Cumpre aludir que o trabalho é por si uma atividade que evoca sentidos e significados, os quais se relacionam com as experiências de prazer-sofrimento inscritas no corpo e na mente do trabalhador, numa relação subjetiva e intersubjetiva. Sob a lente de Mendes e Tamayo (2001), a relação intersubjetiva

corresponde ao processo de socialização do trabalhador às regras, normas, valores, discursos e orientações específicas da organização.

Na perspectiva de Dejours (1987), as demonstrações de prazer e sofrimento no trabalho estão relacionadas com a forma com que cada indivíduo consciente ou inconscientemente percebe seu trabalho e reage a ele. Cada reação do indivíduo, em relação ao seu trabalho, dá-se de forma específica, tanto em situações de normalidade como em situações de dificuldade. Isso porque assume-se, aqui, que cada trabalhador carrega consigo sua história de vida pessoal, suas verdades, seus anseios, desejos e subjetividades. Essa interface entre o que o trabalhador carrega com o que lhe é acometido acerca de seu trabalho é que provoca tensões e conflitos diversos. De um lado está o trabalhador e seus anseios de prazer e de outro a organização e a sistematização do trabalho robotizado, determinado e prescrito. O conflito entre essas duas instâncias resulta em sentimentos de prazer e de sofrimento no exercício do trabalho.

Complementa Mendes (2007) que as vivências de prazer e sofrimento decorrem, sobretudo, de três dimensões que se interagem, atritam e coexistem no âmbito do trabalho, a saber: (i) a dimensão da subjetividade do trabalhador, envolvendo suas concepções discursivas e orientações particulares, sua vida, sua história e experiências e seus desejos e necessidades; (ii) a dimensão da organização do trabalho e seus rígidos padrões de eficiência, eficácia e produtividade; e (iii) a dimensão do coletivo de trabalho que integra a aceitação dos pares, as hierarquias, os valores e as sociabilidades. Portanto, o prazer- sofrimento é um construto dialético e sua interanimação dialógica pode resultar em valorização e em reconhecimento, que prescrevem e definem o prazer e em desgaste que delibera o sofrimento.

Nessa discussão, Dejours (1999) configura que o sofrimento provém de conflitos, angústias, experiências dolorosas, medos, inseguranças e contradições

advindas do confronto entre desejos e necessidades do trabalhador e as características de determinado contexto de produção. De modo que o sofrimento instala-se quando a realidade organizacional não oferece possibilidades de gratificação dos desejos do trabalhador (GARCIA, 2004; SANTOS; SIQUEIRA; MENDES, 2010b). Mais propriamente, quando o indivíduo se frustra com as atividades que desempenha e começa a vivenciar experiências negativas com o seu trabalho.

Nesse ínterim, o sofrimento é, pois, o que Dejours (2001) chama de ―espaço de luta‖ entre o bem-estar e a doença mental. É a manifestação da angústia e da depressão (DEJOURS, 1992), bem como de sentimentos de inabilidade, de incapacidade e de incompetência acerca de uma determinada tarefa ou função, juntamente com a falta de reconhecimento e valorização. É também o reflexo do excesso de burocratismo, de padronização e de exigências do trabalho.

Para Ferreira e Mendes (2003), o sofrimento predomina quando as condições externas se impõem às possibilidades de os sujeitos negociarem seus desejos e/ou quando se exaurem as tentativas individuais ou coletivas de reação às adversidades do trabalho. Assim, as perturbações e os conflitos psíquicos e psicossomáticos são desencadeados por situações permanentes de sofrimento. Situações nas quais as estratégias de enfrentamento rumo ao prazer fracassam, promovendo ainda mais descontentamentos e conduzindo a problemas mentais e psicoafetivos que, por sua vez, desencadeiam conflitos e situações desestabilizantes no trabalho. Conforme Santos, Siqueira e Mendes (2010a), o sofrimento pode atingir tal magnitude que o sujeito se torna propenso a desenvolver transtornos graves o suficiente para perder sua vontade de viver.

Ocorre que, quando o trabalhador não consegue satisfazer suas necessidades físicas e psíquicas, em função da organização do trabalho, ganha espaço o sofrimento e, consequentemente, ele se transforma em fator de

deterioração e de patologia (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 1994). Contudo, se o trabalhador consegue ressignificar o sofrimento e atingir o prazer, os sentimentos negativos vivenciados adquirem sentido, pois passam a representar condições necessárias para os sentimentos positivos. Conforme Dejours (2006) e Mendes et al. (2010), esse sofrimento que é passível de ressignificação é denominado de sofrimento criativo. Já o sofrimento que se instala e promove doenças é considerado patogênico.

É importante ressaltar que o sofrimento criativo está relacionado com a possibilidade de o indivíduo dar significado às tristezas, angústias e sofrimentos no trabalho. Esse processo ocorre por meio da inteligência prática que o trabalhador desenvolve nas incessantes tentativas de vencer o sofrimento (DEJOURS, 2004a). Entretanto, quando se esgotam os recursos defensivos, emerge o sofrimento patogênico, que promove a destruição do equilíbrio psíquico do sujeito, empurrando-o para uma lenta e brutal destruição orgânica. Por consequência, emergem doenças físicas e psíquicas de inúmeras naturezas.

Já as vivências de prazer no trabalho derivam da boa articulação entre organização do trabalho e desejos psicológicos do trabalhador. Por exemplo, o trabalho funciona como fonte de prazer e realização pessoal, quando o trabalhador, por meio de sua subjetividade, consegue ressignificar o sofrimento. Além do mais, as vivências de prazer, conforme argumenta Dejours (1992), são um dos caminhos para a saúde, haja vista que possibilitam ao indivíduo a criação da identidade pessoal e social.

Para Ferreira e Mendes (2003), o prazer pode resultar em uma experiência individual e/ou coletiva de trabalho, manifestada nas relações com as pessoas. Além disso, o prazer é, também, um indicativo de saúde, explícito por meio da gratificação, da realização, do reconhecimento, da liberdade e da valorização no trabalho. É, pois, um dos objetivos que se busca atingir ao trabalhar. E este prazer resulta de um trabalho livre, produtivo e gerador de

vantagens, valorização e reconhecimento. Dejours (2001) ainda enumera os sentimentos de autorrealização, status, identidade, emancipação, bem como aprendizado e experimentação, solidariedade e democracia.

Complementarmente Mendes e Linhares (1996) enumeram algumas características positivas do trabalho que estão relacionadas às vivências de prazer, a saber: (a) promove sensação de bem estar à mente a ao corpo; (b) favorece as relações entre as pessoas; (c) constitui-se em um dos indicadores de bem-estar sob a forma de uma avaliação consciente de que algo vai bem; (d) constitui-se em um de seus sentidos, por possibilitar o equilíbrio e a estruturação psíquica ao criar identidade e permitir a expressão da subjetividade construída com base no confronto entre o psíquico e o social. Assim, sob a dimensão do prazer, a atividade laboral confere sentido à vida.

Os estudos de Mendes e Tamayo (2001) indicam que o prazer é vivenciado quando o trabalhador sente que realiza uma tarefa relevante e significativa para a organização e para a sociedade e quando esse trabalho favorece a valorização e o reconhecimento pessoal e profissional. Há que se considerar que esse reconhecimento se dá em diferentes níveis, envolvendo reconhecimento da chefia, da equipe de trabalho, dos familiares e da sociedade como um todo. Assim, um trabalho provedor de prazer é também um trabalho reconhecido, valorizado, saudável e livre.

Infere-se que as vivências de prazer circunscrevem-se no corpo e na mente e manifestam sensações de bem estar, alegria e contentamento. Tais sentimentos são externalizados tanto no trabalho, quanto na vida social (CASTRO-SILVA, 2006). Entretanto, a construção do prazer no trabalho é considerada por Dejours (1992) como um processo árduo e difícil de ser atingido em sua plenitude, pois para ele o prazer está atrelado às estratégias de enfrentamento do sofrimento e busca pela manutenção da saúde e do bem estar. Todavia, conforme preconiza Castro-Silva (2006), a saúde no trabalho se

solidifica somente quando as vivências e experiências de prazer predominam e se sobrepõem às experiências e vivências de sofrimento, caso contrário instala- se o sofrimento patogênico.

Incontestável é o fato de que o trabalho confere prazer ao trabalhador, mas do mesmo modo pode resultar em sofrimento e incremento de patologias sociais (MENDES, 2007). De acordo com Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994), as vivências de prazer e de sofrimento vão depender do grau de liberdade que a organização do trabalho proporciona e das escolhas do indivíduo, de modo que ele possa utilizar seu potencial criativo, no sentido de descobrir a melhor maneira de realizar as atividades.

Assim, um trabalho intelectual pode emanar sofrimento, enquanto um trabalho braçal pode ser fonte de prazer, ou vice-versa. Concorda-se, inclusive, que o trabalho é uma prática dialética de experiências de prazer e de sofrimento concomitantemente. O fato é que há uma fronteira tênue entre o prazer e o sofrimento, e o que determina as vivências de um, de outro ou de ambos é a expressão de liberdade para realização das tarefas e a proximidade entre o trabalho prescrito e a realidade do trabalho exercido (DEJOURS, 1992; MENDES, 2007). De modo que quanto mais a organização do trabalho permite a flexibilidade, a liberdade e a negociação, mais vivências de prazer se assentam, e quanto menos negociável, flexível e livre, mais imperam experiências de sofrimento.

Para estudar essa relação (organização do trabalho versus prazer- sofrimento e trabalho e saúde), Dejours centra-se na Psicopatologia do trabalho, e a partir de 1980 desenvolve a Psicodinâmica. Essa vertente epistemológica é explicada com mais detalhes no tópico a seguir.

2.2 A Psicodinâmica do Trabalho (PDT) – compreendendo as interfaces