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A pré-leitura com pré-leitores: literacias plurais e emergentes

Capítulo IV Um olhar longitudinal sobre a implementação/utilização das TIC em Educação

CRIE PTE

5.3 A pré-leitura com pré-leitores: literacias plurais e emergentes

Chegados a este ponto acrescentamos um terceiro conceito, mais abrangente, o de literacias e que pretende aprofundar algumas ramificações como a literacia emergente, a transliteracia ou ainda a literacia digital.

A palavra literacia abrange as competências de cálculo, leitura e de escrita. Focamo-nos nas duas últimas competências que se verificam não apenas durante o percurso pelo sistema educativo mas a sua utilização prática para além desse sistema. Ou seja, não existe uma correspondência linear entre o nível de escolarização e as competências em literacia dos sujeitos (Benavente, 1996).

As preocupações com as capacidades que os indivíduos possuem, mesmo após o término do seu percurso académico, ao ler um texto, compreender, interpretar e agir de

acordo com essa mesma interpretação no quotidiano, têm originado diversas orientações e estudos promovidos por organizações internacionais como a UNESCO, a OCDE e a União Europeia. Um dos estudos por que alguns países aguardam com ansiedade e que caracteriza os níveis de literacia desses países é o PISA, que origina diversas estratégias de ação para melhorar o nível de literacia das populações estudadas.

No que diz respeito ao conceito de literacia emergente e, cirurgicamente referindo-nos ao segundo termo do presente conceito, emergente, William Teale e Elizabeth Sulzby referem-se ao mesmo com a seguinte significação:“ (…) we use

emergent to suggest that development is taking place, that there is something new

emerging in the child that had not ‘been’ there before” (1987, p. XX). É um processo dinâmico de desenvolvimento dos sujeitos, segundo o qual cada um desenvolve estratégias, aplica mudanças e aprende a definir objetivos (Viana, 2002) através das interações que realiza no seu quotidiano com os textos, com os pares e com os objetos.

Aprender a ler e a escrever numa sociedade de informação, como a que nos inserimos, pode ser considerado um “processo natural” (Viana,2002, p.69) que tem início nas mais tenras idades e não apenas quando a criança ingressa no ensino formal.

Foram diversos os estudos desenvolvidos ao longo de décadas que encaminharam diferentes autores para o termo, literacia emergente. Debrucemo-nos sobre alguns que consideramos pertinente para desenvolver o nosso quadro conceptual. O ano de 1908 terá sido o início da formulação de questões sobre a importância da leitura e da escrita. Naquela época, existiam dois níveis de trabalho muito importantes para as questões da literacia, um nacional, mais precisamente com a Associação de Escolas Móveis pelo Método de João de Deus em que a preparação para a aprendizagem da leitura com crianças pequenas – dos três aos sete anos – era o objetivo principal e em que se aplicava a Cartilha Maternal; o outro internacional, com Huey (Viana, 2002, p.66) que defende a naturalidade como o ponto de partida para que as crianças se tornem leitoras.

Anteriormente à designação de literacia emergente, os autores Mason e Sinha referiam-se a esta questão como a “disposição para a leitura” (Spodek, 2002, p. 304) que teve vários seguidores, entre eles Arnold Gesell nos anos 20 ao associar a disposição para a leitura com a maturação neurológica (Viana, 2002, p. 67) que, por sua vez, facilitaria à criança a aprendizagem da leitura. Surge uma mudança no início dos

anos 60 com o ensino pré-escolar a desenvolver currículos que integram atividades que promovem competências literárias em literacia e linguísticas. À criança passa a ser reconhecida a capacidade de ler antes de ler, ou seja, de ler os contextos, os materiais impressos que a rodeiam, tendo influências e interferências do quotidiano.

A psicologia da linguagem contribui com as suas investigações para que a criança seja “(…) encarada agora como construtora de linguagem e de conhecimento, como geradora de hipóteses, empenhada na resolução de problemas, em vez de recetora passiva de informação (…)” (Viana, 2002, p.68), conceptualizando-se, deste modo, a definição de literacia emergente. A partir da década de 80, em Portugal, surgem vários artigos científicos (Martins, 1989, 1991, 2000; Martins & Mendes, 1986, 1987; Mata, 1991) que têm como objeto principal a leitura e a escrita em crianças pequenas, ou seja, antes do ensino formal. A um nível internacional, Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985, 1999) contribuem, em grande parte, para a mudança e conceção de literacia emergente.

Este conceito é essencial para definir o nosso campo de ação, a educação pré- escolar e o nosso público-alvo, as crianças que ainda não adquiriram a convencionalidade no que diz respeito à leitura e escrita, formais, mas que nelas emergem essas competências que as ajudarão no seu percurso por todo o processo de construção de conhecimentos nas competências linguísticas e literárias em literacia.

Mais recentemente, surge o conceito de transliteracia que se define como “the ability to read, write and interact across a range of platforms, tools and media from signing and orality through handwriting, print, tv, radio and film, to digital social networks” (Thomas et al., 2007), ou seja a habilidade para interagir nos múltiplos canais de comunicação de que dispomos, nos diversos contextos e situações utilizando as competências da leitura e da escrita. Este será um conceito que não queremos dissociar do conceito de literacia emergente.

O conceito de transliteracia surge pela primeira vez em 2005 com Alan Liu do Departamento de Inglês da Universidade de Califórnia em Santa Barbara. O projeto de investigação “Transcriptions Research Project”40 desenvolvido por este docente

universitário sobre práticas tecnológicas, sociais e culturais da leitura online lança para a discussão académica o termo transliteracia. Este termo pressupõe um “cross-over”

(Adams, Gibson & Arisona, 2008) sobre todos os conceitos já debatidos das diferentes literacias, sobre o que é ser literato no século XXI. É um conceito em evolução e debruça-se sobre a análise da relação entre os indivíduos e a tecnologia no geral, entrecruzando todas as literacias, já sobejamente discutidas individualmente, e foca-se essencialmente no uso social das literacias e da tecnologia. Com as novas possibilidades comunicativas e interativas disponibilizadas pelas redes sociais, surgem novas relações sociais, novos intervenientes e suportes. Torna-se por isso pertinente debruçar os olhos académicos e investigativos para as possibilidades levantadas por este recente conceito, transliteracia, que ecológica e globalmente estuda todas as literacias relevantes para os processos de leitura e escrita, de interações e culturais que alteram e transformam a nossa sociedade.

O conceito de literacia abrange ainda a digitalidade, que se tem tornado um objetivo essencial e transversal nas diferentes medidas desenvolvidas quer a nível europeu quer ao nível governamental. Inseridos numa sociedade de informação e conhecimento, são vários os projetos e programas que, desde a década de 80, pretendem colocar os países da União Europeia entre os mais digitalizados e com mais utilizadores capazes de agir na era digital. Encontramos planos tecnológicos que visam colocar o sistema educativo a funcionar numa sociedade informatizada, como por exemplo o

Informatique pour Tous em França ou o Plano Tecnológico de Educação que se

subdivide em projetos direcionados para os diferentes níveis de ensino incitando a escola, os docentes, os alunos e as famílias a integrarem no seu dia-a-dia as novas tecnologias de informação e comunicação.

Deparamo-nos com uma mudança no conceito de literacia que passa agora a abarcar a era digital como o afirma Guy Merchant (2009). Com a globalização e a introdução massiva das novas tecnologias de informação e comunicação na sociedade civil presenciamos in loco uma mudança do conceito de literacia para literacia digital e são vários os autores que refletem sobre este conceito.

Guy Merchant (2009, p.39) define-a do seguinte modo: “(…) digital literacy is reading and writing with new technologies”. Esta definição circunscreve-se à leitura e à escrita salientando a mudança do suporte, que tem agora características digitais. Novas formas de texto implicam novas formas de literacia. Ou seja, uma vez que uma fonte digital pode gerar várias formas de informação, como seja o áudio, vídeo, imagens, etc., não poderemos continuar a falar de literacia do modo tradicional, mas de uma literacia

digital que possui como campo de trabalho o texto multimédia com as suas múltiplas características (Bawden, 2005).

Paul Glister é um dos autores de referência que em 1997 edita o livro Digital

Literacy e cuja definição acrescenta uma componente compreensiva e utilitária do uso

das TIC. Senão vejamos: “(…) digital literacy is the ability to understand and use information in multiple formats from a wide variety of sources when it is presented via computers” (Bawden, 2005, p. 19).

Em ambas as definições, o elemento constante é a utilização das TIC mas as

nuances variam entre a leitura e a escrita e a habilidade para compreender e utilizar a

informação que é possível recolher através da utilização dos ditos suportes digitais. Em pleno século XXI, a literacia digital torna-se numa competência essencial para os cidadãos. Ser um cidadão pró-ativo, opinativo, autónomo exige uma proficiência na utilização das novas tecnologias. A necessidade de alargar os limites da literacia é premente e deverá abranger os conhecimentos e competências tecnológicas que se tornam num pré-requisito para uma participação ativa numa sociedade democrática e competitiva. A info-exclusão e a iliteracia são obstáculos a combater e por isso é necessário começar nas idades mais novas e desde o início do percurso no sistema educativo. A educação pré-escolar, apesar de não ser obrigatória, abrange já um número considerável de crianças em todo o país, verificando-se mesmo um aumento de crianças que frequentam este nível de educação (Conselho Nacional de Educação, 2012, 2013), como tal parece-nos importante estudar este nível de ensino e as possibilidades de literacia digital que se podem promover numa sala de atividades. As crianças mantêm contacto com diferentes suportes tecnológicos desde muito cedo inclusive no seio familiar. Os telemóveis, as consolas, os jogos interativos na televisão e os computadores são utilizados pelas crianças como um meio de se divertirem, socializarem e de aprenderem.

Os estudos que combinem a educação pré-escolar e a implementação/utilização das TIC são muito escassos no que diz respeito ao panorama nacional e encontram-se alguns ao nível internacional. A pertinência de investigar as influências que a literacia digital, ou mesmo a transliteracia poderá estar a ter no desenvolvimento das competências literárias em literacia, escrita e leitura em crianças dos 3 aos 6 anos torna- se cada vez mais necessária numa sociedade tecnológica e globalizada. As investigações

neste sentido poderão desenhar as estratégias que os governos, as comunidades e os docentes estão a desenvolver e aplicar para desafiar e apoiar as crianças nas suas incursões digitais, ajudando a definir uma imagem real do que se concretiza, do que se pensa alterar e dos efeitos e consequências que podem estar a ter no dia a dia dos jardins de infância portugueses.

5.4 Predictibilidade: um contributo para uma pré-textualidade aplicada a