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2 SISTEMATIZAÇÃO DE CONCEITOS E REVISÃO

2.2 A QUALIDADE VISUAL DA PAISAGEM

2.2.1 Preferência versus percepção da paisagem

2.2.1.1 Preferência como fenómeno interno ao observador

No que respeita ao estudo da preferência da paisagem, as interpretações apresentadas são fortemente influenciadas pelo trabalho de Ulrich (1983) no âmbito do qual se apresenta um ‘modelo de interpretação da resposta afectiva/emocional a um ambiente natural’ (t.a.), cuja representação gráfica se apresenta na Figura 9.

Figura 9 – Modelo de interpretação da resposta afectiva/emocional a um ambiente natural (Ulrich 1983).

O referido modelo descreve o quadro de referência através do qual decorre o fenómeno, a partir do qual se discutem as seguintes questões:

ƒ A preferência é influenciada pelo estado afectivo/emotivo inicial do observador;

ƒ Numa primeira fase a resposta resulta essencialmente da informação captada pelos sentidos, com preponderância para a informação visual, de acordo com a qual este atravessa uma fase

de reacção afectiva inicial, determinando uma reacção primária de apreciação positiva (o observador gosta do ambiente a que se encontra exposto) ou negativa (o observador não gosta do ambiente a que se encontra exposto);

ƒ Numa segunda fase a sua reacção afectiva inicial é modificada pela racionalização da experiência, na qual é determinante a cultura do observador. Atinge-se assim uma fase de reacção afectiva ‘pós-cognitiva’ (ou racional), a qual irá determinar o comportamento do observador (exploração, procura de refúgio, fuga, etc.).

Consequentemente, chama-se a atenção para as seguintes questões levantadas pelo referido trabalho:

No que respeita à percepção instantânea da paisagem, o sentido da visão assume um papel preponderante. O autor salienta que este não é o único sentido a receber estímulo e que a percepção da paisagem é multimodal (não se restringindo ao sentido da visão), mas que a virtual ausência de estudos científicos sobre a resposta afectiva (e estética) a estímulos olfactivos, auditivos ou de outro tipo impossibilita a sua consideração no âmbito do estudo desenvolvido. Vários estudos subsequentes suportam a teoria de Ulrich, apresentando-se em seguida uma síntese dos trabalhos considerados mais relevantes no esclarecimento das questões acima abordadas.

De acordo com Nørretranders (1999), se for feita a quantificação da informação que aflui a cada instante ao cérebro humano e se equiparar esse fluxo de informação à largura de banda utilizada por um computador para comunicar com o exterior, a qual estipulou ser de cerca de 12 Megabits por segundo (Mbits/s), verificar-se-á que cerca de 10 Mbits/s correspondem a informação visual, ao passo que o sentido do tacto envia cerca de um décimo deste valor (i.e., 1 Mbits/s), valor equivalente à soma dos estímulos enviados pelos restantes três sentidos (Figura 10). Igualmente interessante é o facto do mesmo autor prosseguir, salientando que do total desta informação, apenas 10-40 bits/s são objectivamente utilizados para formar o estado de consciência, ou seja, reforça-se a noção de que há uma distinção clara entre a existência de um estado pré-consciente (eminentemente sensorial, instantâneo e que utilizada muita informação visual) e um estado consciente (eminentemente racional, bastante mais lento, que utiliza muito menos

informação e em que a proporção de informação visual utilizada é drasticamente reduzida, de forma a incorporar maior proporção de outros tipos de informação sensorial (tacto, olfacto, audição e paladar).

Figura 10 – Representação da proporção relativa da informação sensorial que aflui instantaneamente ao cérebro humano e da fracção desta que é processada de forma consciente, de acordo com Nørretranders (1999). Fonte da imagem: Introworks (2010)

Sobre o efeito do ruído na paisagem, verifica-se que:

a) a combinação da informação visual da paisagem e do seu ‘perfil acústico emergente’16 aumenta a percepção e compreensão da natureza (Matsinos et al. 2008);

b) as apreciações sobre a qualidade estética da paisagem com recurso simultâneo a sons naturais e imagens são consistentes com as apreciações relativas apenas à paisagem visual (Carles, Barrio & de Lucio 1999);

c) apenas quando se comparam apreciações estéticas de paisagens utilizando binómios ‘imagem-som’ contendo sons naturais (por exemplo, com registo sonoro do canto de pássaros, ou das águas correntes de um riacho), em contraste com um segundo conjunto de binómios ‘imagem-som’ que utilizam as mesmas imagens e sons urbanos (por exemplo, com registo sonoro do tráfego aéreo, rodoviário, etc.) as apreciações do segundo conjunto de binómios são consistentemente penalizadas, sugerindo que o barulho das actividades humanas em espaço urbano interfere na qualidade

da experiência do visitante e até mesmo na percepção estética das paisagens (Mace, Bell & Loomis 1999).

No que se refere à interferência do sentido do olfacto na apreciação da qualidade estética das paisagens, a literatura é ainda mais escassa. No entanto, de acordo com Dann & Jacobsen (2003), o sentido geral da interpretação deste fenómeno é bastante semelhante ao anterior. Tomando como ponto de partida uma revisão à ‘literatura de viagem’ publicada em 65 obras (publicadas ao longo dos últimos três séculos), os autores sustentam que as descrições das ‘paisagens odoríferas’17 não urbanas tendem a ser descritas de forma mais favorável do que as ‘paisagens odoríferas’ urbanas, tomando essas descrições como indicativas (e correlacionadas com) da apreciação estética dos ambientes rural e urbano. Como corolário desta investigação, pensando nos potenciais benefícios repercutidos na indústria turística pela apreciação estética das paisagens, os autores afirmam:

“(...) if taking the city into the countryside is impractical or undesirable, then aromatically, at least, bringing the countryside into the city is an avenue worth pursuing.”

(Dann & Jacobsen 2003, p. 17) O modelo de percepção sugere também que na fase final (i.e., racional, ou pós-cognitiva) do processo de apreciação estética será mais difícil obter apreciações estéticas consensuais dado que estas serão sempre fortemente influenciadas pela experiência passada e cultura de cada observador. No entanto, ao nível da reacção afectiva inicial, a qual depende fortemente da componente visual da paisagem, a possibilidade de sucesso na obtenção de um padrão universal de resposta parece viável. Daí que, doravante, será apenas tratada a questão da qualidade visual das paisagens, a qual não corresponde à totalidade da experiência estética (multimodal) da paisagem, mas corresponde a uma parte significativa desta. Será apresentada no Capítulo 2.3 uma metodologia que pretende obter, de forma objectiva, repetível e espacialmente explícita, um padrão explicativo da variabilidade da apreciação da paisagem e dos factores que nela interferem.

17 ‘Smellscapes’, no idioma original.