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E foste um difícil começo Afasto o que não conheço

E quem vende outro sonho feliz de cidade Aprende, depressa, a chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso.

(Caetano Veloso)

Inicio aqui algumas outras considerações acerca do pensamento de Foucault (2014) que podem contribuir para abertura de caminhos para a pesquisa, utilizando um trecho da obra de Caetano Veloso e David Byrne, Sampa, lançada em 1978. Desta feita, esta referência se dá não apenas por ser este um cantor de grande visibilidade no cenário brasileiro no auge de seus 77 anos (07/08/1942), mas por ensejar como relatado na obra “Foucault, Um Diálogo” de Rosa Maria Bueno Fischer e Alfredo da Veiga-Neto (2004), a riqueza e versatilidade presentes nos estudos de Foucault que não permitem que este seja reduzido a slogans e frases classificatórias. Esse avesso, segundo Fischer (2004, p.11), justifica-se porque mesmo que retornemos a um determinado lugar, não seremos os mesmos de quando lá adentramos pela primeira vez, ou seja, o lugar já não é o mesmo. Dessa forma, acredita-se que uma nova entrevista concedida em um espaço midiático acerca de um tema já pautado e com questionamentos semelhantes não será igual àquela já dita outrora. É através da obra de Foucault, considerado indisciplinado para alguns, dada sua capacidade de desalinhar o pensamento já pré-concebido, que somos instigados a repensar as relações de poder. Conforme enfoca Fischer (2004, p.10):

Enquanto todo mundo pensava que mais saber diminuiria as relações de poder, que de certa maneira o saber nos libertaria do poder, ele (Foucault) iria mostrar que ambos são inseparáveis. Quanto mais saberes nós temos, mais nos potencializamos, mais nos empoderamos.

E é imbuído desse espírito ―indisciplinado‖ de Foucault que passo a apresentar alguns elementos teóricos que contribuirão para esse universo discursivo que permeia o também universo artístico de alguns idosos e sem os quais, dificilmente encontraremos respostas para os nossos questionamentos.

Para Foucault (2014, p.98), o discurso se expressa ―em unidades menores: o enunciado, que deve ser analisado em conjunto, produzido na dispersão de acontecimentos‖, sendo concebido, portanto, como unidade de análise. Ainda segundo ele,

(...)'discursos', (...) não são, como poderia se esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras. (...) analisando discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes das palavras e das coisas e separar um conjunto de regras próprias à prática discursiva. (....). Tarefa que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (de elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam (FOUCAULT, 2014, p. 64)

Para além da designação dos signos, o discurso é também a formação, a possibilidade e a configuração desses signos com relações de poder, hierarquias, exclusões, inclusões e obstruções. O discurso não está nem limitado às palavras, nem às coisas. O discurso não é uma unidade monolítica. (SIQUEIRA, 2016).

Sabe-se que os discursos são feitos de signos e que estes têm a sua devida importância não apenas como laços entre as palavras e as coisas; o discurso é bem ―mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. E é esse ―mais‖ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever‖ (FOUCAULT, 2014, p.56). O discurso não é, pois entendido como produto de uma retórica, não é produzido por alguém, mas deve ser compreendido a partir de sua mobilidade que o faz se ajustar a esse ou aquele grupo ou conteúdo, importando assim ―as condições de possibilidade.‖

Seguindo esse contexto, é também entendido como:

um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva‖; este conjunto é limitado a um certo número de enunciados, além de ser ―histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2014, p. 132-133).

Essa historicidade, alicerçada também ao viés institucional contribui para impulsionar ou reprimir determinados discursos. Daí, a depender da formação discursiva em que estejamos inseridos, faremos uso de enunciados específicos para aquele momento. Isso fica evidente, por exemplo, quando o local de fala é uma clínica de psicologia e os enunciados visam determinar os fatores que desencadeiam a síndrome do pânico de uma paciente. Todavia esse mesmo psicólogo passa a utilizar enunciados diferentes quando busca saber o processo evolutivo de aprendizagem de seu filho no ambiente escolar. Isso nos leva a pensar em uma outra concepção trazida por Foucault (2014, p. 133):

o discurso só faz sentido nas relações, em sua aplicabilidade prática, no funcionamento pleno dos enunciados o que posteriormente veio a definir prática discursiva como um ―conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.

Conforme ressaltam Sousa e Cutrim (2013, p.49), ―o sujeito do enunciado é historicamente determinado. Esse sujeito sofre mudanças de um enunciado a outro e a função enunciativa pode ser exercida por diferentes sujeitos‖, diferente de alguém que apenas reproduz um ato de fala. Daí que um único e mesmo indivíduo pode ocupar, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de distintos sujeitos – pai, médico, professor, político, consumidor, juiz etc. ―O sujeito é aqui visto, portanto, como uma categoria móvel, fluida‖.

Os enunciados, por sua vez, estão ancorados em alguma modalidade enunciativa ou algum meio que o qualifique. A depender das formulações, pode estar em um site destinado a jovens, numa revista médica, em um instrumento normativo, etc. Assim, ―não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo‖ (FOUCAULT, 2014, p. 114).‖ Não há, portanto, enunciado neutro, ele funciona e toma efeito numa prática discursiva que é prestigiada, em geral, pelo fato de produzir verdade. As práticas discursivas têm relação com outras práticas sociais, econômicas, culturais.‖ (ARAÚJO, 2007, p. 09)

Acerca do enunciado, Foucault acrescenta:

Mais que um elemento entre outros, mais que um recorte demarcável em um certo nível de análise, trata-se, antes, de uma função que se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de uma série de signos, se elas estão aí presente ou não.(FOUCAULT, 2014, p.105)

Dessa forma, entendendo que o enunciado não se define como um ato de fala, Foucault acrescenta:

O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ―fazem sentido‖ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita); é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que

apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.(FOUCAULT, 2014, p.105)

O enunciado é povoado por muitos outros enunciados que, mesmo divergentes, acabam se reconfigurando. Ele ―depende de uma materialidade, que é sempre de ordem institucional, no sentido de uma estrutura de poder‖ (MACHADO, 1981, p. 151-152). Não se pode, ainda segundo o autor, confundir enunciado com enunciação uma vez que o primeiro pressupõe possibilidade de repetibilidade, diferente da enunciação (uma frase, por exemplo) que não poderá ser repetida.

Diante dos conceitos ou informações trazidos por Foucault (2014) enquanto base arqueológica percebe-se que, no tocante à formação discursiva, esta não deve ser entendida a partir de um viés epistemológico e sim em termos de prática discursiva notadamente relacionada a um momento ou uma época específica. Tal prática discursiva se define como um ―conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa‖ (FOUCAULT, 2014, p.43). Esse arcabouço de informações servirá de base para que se compreendam melhor as noções de verdade, subjetividade e as relações de poder imbricadas na concepção de saber. Para tanto, Foucault (2002, p. 249) retrata, dentre outras coisas, como a constituição histórica influencia na construção dos saberes e como isso se evidencia nos discursos. Segundo ele ―a análise das formações discursivas, das positividades e do saber em suas relações com as figuras epistemológicas e as ciências, é o que chamamos, para distingui-la das outras formas possíveis de história das ciências, análise da épistémè‖ (Foucault, 2002, p.249)

A obra de Foucault (2014, p. 43) retrata, ainda, a concepção do que seja formação discursiva

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (…).

Nesse sentido, Marques (2012) ―considera que a noção de formação discursiva não tem relações estreitas com a ideologia, mas com os saberes e poderes, tendo como objetivo descrever os mecanismos de constituição das ciências do homem‖. Tais saberes e poderes apresentam uma relação estreita com o que venha a ser considerado verdade para um sujeito, apesar de Foucault não apresentar, ao longo de seus estudos, preocupação em definir o que

venha a ser verdade. Isso porque, para ele, necessário seria entender porque a verdade para uma pessoa ou grupo de pessoas é diferente daquilo que é considerado verdade para outro grupo, além de refletir acerca dos critérios para a adoção dos próprios regimes de verdade. Sobre os jogos de verdade, o autor destaca:

Jogos de verdade são o conjunto de regras de produção de verdade, o conjunto de procedimentos que conduzem a um determinado resultado, que pode ser considerado – em função de seus princípios e de suas regras de procedimento - como válido ou não. Quem fala a verdade são indivíduos livres, os quais entram em consenso e estão inseridos em uma determinada rede de práticas e de instituições coercitivas (Foucault, 1999, p. 112).

Dessa forma, não há que se falar em isenção de interesses ou de liberdade na escolha de seu regime de verdade. O discurso recebe interferências ou influências de diferentes fatores, dentre os quais, políticos e econômicos e, uma vez que estamos continuamente envoltos em diferentes cenários, sejam eles familiares, de relação de trabalho, afetivos fazemos uso de tais regimes de verdade. Daí o interesse de Foucault (1984) em enveredar ―numa história que não seria aquela do que poderia haver de verdadeiro nos conhecimentos,

[...] mas uma análise dos ―jogos de verdade‖ dos jogos entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando se olha como doente, quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser trabalhador, quando ele se julga e se pune enquanto criminoso? Através de que jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo? (FOUCAULT, 1984,p. 13)

O pensamento de Foucault (1984) acerca dos jogos de verdade nos permite depreender as diversas possibilidades de modos de subjetivação dos indivíduos uma vez que aqueles não se constituem em fonte de descoberta da verdade, mas do entendimento das regras que possam influenciar a posição de um sujeito em seu discurso acerca do que seja verdade sobre um determinado objeto. Daí a influência trazida pela igreja, pela ciência, universidades no sentido de nos ―orientar‖ acerca do que venha a ser verdade ou não, levando-nos a certas escolhas. É por esse motivo que Foucault (1984) não se refere a uma verdade, mas ―as verdades‖, pois a cada interesse defendido, utiliza-se um conceito ou justificativa para concebê-la como verdade, constituindo-se por vezes em espaços de lutas ideológicas. Isso fica mais forte quando é proferida no âmbito dos especialistas cujo discurso é capaz de construir verdades capazes de alterar o comportamento de uma população inteira, a exemplo do discurso médico- científico que determina como devem ser nossos hábitos alimentares, necessidades de vacinação, modelos de rejuvenescimento, dentre outros.

Essa linha de pensamento foucaultiano traz à tona, também, a importância com que este descreve a subjetividade referindo-se à ―maneira pelo qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo‖. (Foucault, 2004, p. 236). Todavia não se pode dissociar a análise relativa a tal conceito do viés arqueológico que perpassa os saberes do sujeito, o viés genealógico que retrata as estratégias de dominação que incidem sobre esse mesmo sujeito, além das técnicas que permitem com que esses sujeitos se transformem em diversos momentos da vida.

A partir dessas observações, percebe-se que a subjetividade não é algo estanque, imutável. Ela necessita de uma relação com as coisas, com o mundo e, por conseguinte, com o tempo. E isso se configura também na relação com o próprio corpo uma vez que recebemos influências constantes dos diferentes saberes e poderes que tentam interferir nos processos de subjetivação, mesmo sendo estes impessoais.

Conforme ainda relata Foucault (1984, p. 28), ―não existe constituição do sujeito moral sem modos de subjetivação‖, daí sua singularidade e impessoalidade mesmo diante de uma ação massiva. É importante que se destaque que as questões relativas aos modos de subjetivação têm seu cerne pautado no conceito de cuidado de si. Mais do que isso, Foucault (2004b, p. 13) indica que ―a incitação a ocupar-se consigo mesmo alcançou, durante o longo brilho do pensamento helenístico e romano, uma extensão tão grande que se tornou [...] um verdadeiro fenômeno cultural de conjunto‖. O cuidado de si não estava atrelado apenas a uma visão pessoal; ele pressupunha também uma atitude perante o outro, implicando em uma verdadeira prática social. Designa, portanto, ―um conjunto preciso de técnicas (tecnologias do eu) que se exerce sobre si mesmo com o fim último da transformação, da modificação, da transfiguração de si‖ (FISCHER; MARCELLO, 2014, p. 161). Essas tecnologias que aparecem sempre mescladas entre si e não de forma isolada, compõem a nossa subjetividade.

No tocante à importância ou atenção dada ao ―eu‖, esta importância apresentava diferentes conotações ao longo da história, principalmente quando nos referimos à filosofia antiga e ao cristianismo. Apesar de em ambos haver um interesse com as tecnologias do eu, o cuidar de si não necessariamente representava um fascínio consigo mesmo, mas na utilização de estratégias que exigem um saber prévio, um autoconhecimento. Para os greco-romanos, o cuidar de si implicava em uma perspectiva de governar os outros.

Conforme Menezes (2004, p.1413),

os gregos exerciam um trabalho sobre si (mestria de si) com a finalidade (teleologia) de poder governar os outros. Para tanto, recorriam às práticas de

moderação que tinham como alvo os atos ligados ao prazer e desejo (substância ética) e tal atitude de moderação se justificava como tentativa de dar à existência uma forma bela (modo de sujeição).

Para o cristianismo, o cuidar de si estava relacionado com as possibilidades de salvação determinando, para tanto, algumas estratégias que deveriam ser seguidas para alcance desses objetivos, perpassando, necessariamente por algumas renúncias. Essas características greco- romanas voltadas ao cuidado de si ficam mais evidentes a partir das colocações de Foucault (2004):

Nos gregos e romanos, pelo contrário, a partir do fato de que se cuida de si em sua própria vida e de que a reputação que se vai deixar é o único além com o qual é possível se preocupar, o cuidado de si poderá então estar inteiramente centrado em si mesmo, naquilo que se faz, no lugar que se ocupa entre os outros. (FOUCAULT, 2004, p.274).

Essa análise nos permite entender como determinadas verdades circulam na contemporaneidade influenciando algumas regras de conduta, formas de dominação e interferindo na nossa subjetividade, ou seja, a legitimidade dada a uma verdade socialmente aceita contribui para os modos de subjetivação existentes e aceitos em um espaço temporal. Daí podem emergir, portanto, os diferentes modos de subjetivação dos idosos, aqui detentores de suas próprias estratégias do cuidado de si.

Destarte lembrar que, ao analisar as discursividades das celebridades não se busca descortinar possíveis verdades obscuras, mas partir do princípio de que todos trazemos as nossas verdades e essas refletem momentos distintos e respondem a questões específicas de nossas vidas. Com os idosos, isso não é diferente.