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Princípio da reciprocidade na concessão de direitos aos estrangeiros Na atribuição de direitos aos estrangeiros podem ser seguidos dois sistemas:

A. Sofia Pinto Oliveira

2. Princípio da reciprocidade na concessão de direitos aos estrangeiros Na atribuição de direitos aos estrangeiros podem ser seguidos dois sistemas:

− a equiparação, em que os nacionais e os estrangeiros ficam titulares dos mesmos direitos;

− a reciprocidade, em que o gozo de direitos pelos estrangeiros no Estado de acolhimento (Portugal), fica dependente de idêntico reconhecimento de direitos aos nacionais (portugueses) no Estado de que são originários os estrangeiros. No entanto, os princípios da equiparação de direitos e da reciprocidade não são incompatíveis entre si e podem ser utilizados em simultâneo, como o confirmam o artigo 15.º da Constituição Portuguesa (CRP) e o artigo 14.º do Código Civil português (CC).

O artigo 15.º, n.º 1, da CRP refere que «os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português» [princípio da equiparação], para logo de seguida exceptuar dessa equiparação os direitos que são reservados exclusivamente aos portugueses (n.º 2), mas admitindo que alguns deles possam ser atribuídos «aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa […] em condições de reciprocidade […]» (n.º 3), assim como pode ser atribuída capacidade eleitoral activa e passiva nas eleições autárquicas aos estrangeiros (n.º 4) e nas eleições para o Parlamento Europeu aos nacionais de Estados-membros da União Europeia (n.º 5) [princípio da reciprocidade].

Quanto ao CC, é estabelecido no artigo 14.º que:

«1 - Os estrangeiros são equiparados aos nacionais quanto ao gozo de direitos civis, salvo disposição legal em contrário» [princípio da equiparação].

2 - Não são, porém, reconhecidos aos estrangeiros os direitos que, sendo atribuídos pelo respectivo Estado aos seus nacionais, o não sejam aos portugueses em igualdade de circunstâncias» [princípio da reciprocidade].

Segundo Lima e Varela, os dois princípios, tal como constam do CC, funcionam de forma autónoma e, como tal, é permitida a atribuição de direitos aos estrangeiros que não sejam reconhecidos aos portugueses, desde que este não reconhecimento não revista um carácter discriminatório (Lima e Varela, 1987, p. 63). Deste modo, por exemplo, se um ordenamento jurídico estrangeiro não integrar um direito idêntico ao da ordem jurídica portuguesa, não existirá um impedimento à atribuição desse direito aos estrangeiros originários desse Estado.

Assim, se compararmos a CRP e o CC, verificamos que a norma do CC é muito mais aberta, dado que apenas impede a atribuição de direitos que sejam recusados aos portugueses, não condicionando o gozo de direitos pelos estrangeiros a uma prévia atribuição de idêntico direito aos portugueses.

Para além da CRP e do CC, o princípio da reciprocidade é utilizado em muitos outros domínios, como é o caso da cooperação judiciária internacional2, dos direitos de autor3, do acesso ao sistema nacional de saúde4 ou do direito eleitoral.

Partindo da análise da ordem jurídica portuguesa, verifica-se que o princípio da reciprocidade permitiu alguns avanços em termos da protecção e alargamento do estatuto jurídico dos estrangeiros, dado que possibilitou a titularidade e o exercício de direitos que estes, doutro modo, não teriam (como por exemplo, o direito de participação política nas eleições locais), pelo que, em certa medida, se pode aceitar que a reciprocidade seja considerada como um instrumento de progresso do direito.

No entanto, e vários autores chamam a atenção para esse facto, a reciprocidade pode também funcionar como uma forma de retrocesso, bastando que, para o efeito, assuma uma dimensão de retorsão, ou seja, de sanção, em que determinados estrangeiros não são titulares de direitos, porque o Estado de que são originários não confere (ou deixa de conferir) uma idêntica protecção aos nacionais do Estado de acolhimento (Lagarde, 1997, p. 189; Virally, 1967, pp. 20-21).

Para além disso, o princípio da reciprocidade não garante uma regulação normativa universal e objectiva, no sentido de poder ser aplicada a todos as pessoas de forma idêntica,

2 Cfr. Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto - artigo 4.º, n.º 1: «A cooperação internacional em matéria penal regulada no presente diploma releva do princípio da reciprocidade [...]».

3 Cfr. Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março) - artigo 64.º: «As obras de autores estrangeiros ou que tiverem como país de origem um país estrangeiro beneficiam da protecção conferida pela lei portuguesa, sob reserva de reciprocidade, salvo convenção internacional em contrário a que o Estado Português esteja vinculado».

4 Cfr. Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto) – Base XXV, n.º 2: «São igualmente beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade [...]».

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mas revela uma regulação subjectiva5, ou seja, que visa certos destinatários em concreto, resultado essa regulação de uma espécie de contratualização entre Estados (a nível bilateral ou multilateral).

O princípio da reciprocidade assenta em considerações políticas estritamente nacionais, relacionadas intimamente com a concepção política dominante do Estado-nação. Com efeito, a sua utilização é baseada na ideia da:

- defesa da soberania e da preservação da independência do Estado, pois ao conceder a um estrangeiro um determinado conjunto de direitos, o Estado estará a limitar a sua soberania, situação que só será aceitável se os respectivos nacionais beneficiarem igualmente do gozo desses direitos no outro Estado, o qual aceita assim, de igual modo, limitar a sua soberania6, pois, caso contrário, sem contrapartida, o primeiro Estado ficaria colocado numa situação de subordinação perante o segundo Estado (Lugato, 1993, p. 387);

- protecção dos nacionais residentes no estrangeiro, a qual é uma das funções externas fundamentais do Estado e está na base da celebração de vários tratados e convenções relativas à protecção diplomática e consular.

No entanto, em matéria de direitos humanos, o princípio da reciprocidade tem sido progressivamente afastado, reconhecendo-se que cada indivíduo é titular de um conjunto de direitos inerentes à sua pessoa, independentemente da nacionalidade, e que os poderá fazer valer mesmo contra o Estado de que é nacional. É esse o caso dos direitos reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem7, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis

5 Decaux fala em “subjectividade colectiva”, no sentido em que os indivíduos são considerados não em si mesmos, mas enquanto pertencentes a uma determinada colectividade de origem (Decaux, 1980, p. 130).

6 Para Decaux, o que está em causa não é propriamente a limitação da soberania, mas a limitação unilateral, a qual poderia colocar em causa um princípio fundamental da comunidade internacional - a igualdade soberana dos Estados, pelo que uma limitação da soberania só seria válida se fosse recíproca (Decaux, 1980, p. 17-18).

7 Adoptada pela Assembleia Geral da ONU, em 10 de Dezembro de 1948. No preâmbulo, é referido que os «Estados membros se comprometeram a promover […] o respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais», situação em que «uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância».

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e Políticos8 ou pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais9.

Alguns desses instrumentos jurídicos contêm expressamente normas que impedem ou limitam o recurso à reciprocidade, como é o caso da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados10, cujo artigo 7.º, n.º 2, prevê que «após um prazo de residência de três anos, todos os refugiados, nos territórios dos Estados Contratantes, beneficiarão da dispensa de reciprocidade legislativa»11. Ou da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados12, cujo artigo 60.º, n.º 5, impede os Estados de colocarem fim ou suspenderem a aplicação das «disposições relativas à protecção da pessoa humana contidas nos tratados de natureza humanitária», como reacção à violação das mesmas por outro Estado.

Por outro lado, a União Europeia, a qual assenta numa partilha e limitação das soberanias nacionais que poderá considerar-se em si mesma recíproca, tem recusado que a reciprocidade possa ser invocada pelos Estados-membros como um mecanismo para a aferição da sua vinculação ao direito europeu, nomeadamente no que respeita à liberdade de circulação de trabalhadores e à liberdade de estabelecimento13.

8 Adoptado pela Assembleia Geral da ONU, em 16 de Dezembro de 1966. O seu artigo 2.º, n.º 1, estabelece que «cada Estado Parte no presente Pacto compromete-se a respeitar e a garantir a todos os indivíduos que se encontrem nos seus territórios e estejam sujeitos à sua jurisdição, os direitos reconhecidos no presente Pacto». De acordo com o § 1 da Observação Geral n.º 15 do Comité dos Direitos do Homem, de 11 de Abril de 1986, sobre a situação dos estrangeiros em face do Pacto, os direitos enunciados no Pacto aplicam-se a todas as pessoas, independentemente de reciprocidade, qualquer que seja a nacionalidade daquelas ou mesmo que sejam apátridas.

9 Aprovada pelo Conselho da Europa, em Roma, em 4 de Novembro de 1950. O artigo 1.º estabelece que «as altas partes contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção». Como o artigo 33.º da Convenção permite que um Estado possa submeter a violação de uma das disposições da Convenção por um outro Estado à apreciação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Sudre defende que a existência deste mecanismo afasta a possibilidade de um Estado poder invocar a ausência de reciprocidade para evitar a aplicação das disposições da Convenção (Sudre, 1999, p. 58).

10 Adoptada pela Assembleia Geral da ONU, em 28 de Julho de 1951.

11 Disposição idêntica consta no artigo 7.º, n.º 2, da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, adoptada pela Assembleia Geral da ONU, em 28 de Setembro de 1954.

12 Adoptada pela Assembleia Geral da ONU, em 23 de Maio de 1969.

13 Cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal de Justiça, de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, n.º 26, Proc. 270/83, Colectânea da Jurisprudência do Tribunal, 1986-1, p. 307 («Além disso, os direitos que resultam do artigo 52.º do Tratado para os seus beneficiários são incondicionais e um Estado- membro não pode fazer depender o seu respeito do conteúdo de uma convenção celebrada com outro Estado-membro. Em especial, este artigo não permite sujeitar esses direitos a uma condição de reciprocidade com o fim de obter vantagens correspondentes em outros Estados-membros») e o Acórdão do Tribunal de Justiça, de 1 de Julho de 1993, Hubbard, Proc. 20/92, Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância, 1993-7, p. 3796 («O direito à igualdade de tratamento consagrado pelo direito comunitário não pode depender da existência de acordos internacionais celebrados pelos Estados-membros»).

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Este afastamento da utilização do princípio da reciprocidade para a definição dos direitos fundamentais das pessoas resulta, essencialmente, do seu carácter desajustado para garantir a protecção dos indivíduos. Assim, sublinha-se o facto do princípio da reciprocidade:

- assentar no relacionamento entre dois ou mais Estados, de que o indivíduo está ausente, não tendo uma real possibilidade de influir na concretização de uma protecção que sirva os seus interesses e não os da política externa do Estado de que é nacional;

- introduzir não só uma discriminação entre os nacionais e os estrangeiros, mas também entre os estrangeiros, com alguns deles a beneficiarem de mais direitos do que outros, resultando esse tratamento distinto não de uma qualquer situação pessoal específica que o possa justificar, mas, por exemplo, de um melhor relacionamento diplomático entre determinados Estados14;

- implicar que se um Estado alterar a sua legislação retirando aos estrangeiros determinados direitos, os Estados de que aqueles são nacionais deverão tomar o mesmo tipo de atitude;

- ter uma eficácia duvidosa em termos de protecção dos nacionais, dado ficar dependente da adopção de um determinado comportamento por outro Estado, que pode não ter interesse em fazê-lo15, pelo que o melhor meio de proteger os nacionais será sempre a tomada de iniciativas diplomáticas concretas nesse sentido;

- não ter em conta as especificidades dos vários ordenamentos jurídicos nacionais16; - ignorar a situação especial dos apátridas.

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