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O processo de construção da Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Universidade Federal da Fronteira Sul: uma

No documento EDUCAÇÃO POPULAR, EQUIDADE E SAÚDE (páginas 69-72)

DESCOBERTAS E DESAFIOS DA DESCENTRALIZAÇÃO DE UM PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL

1. O processo de construção da Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Universidade Federal da Fronteira Sul: uma

viagem pelos caminhos da descentralização e interiorização da

formação em serviço

Pretendemos contar uma história. Buscar nas memórias e nos registros escritos as origens da Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) em parceria com o município de Marau-RS (RMS/ UFFS/Marau). Para contar essa história precisamos, inicialmente, recuperar a história de outra Residência Multiprofissional em Saúde: a Residência Integrada

em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (RIS/GHC), pois a RMS/UFFS/Marau é fruto do seu processo de descentralização.

Referência no atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) é formado pelos Hospitais: Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor e Fêmina, Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Moacyr Scliar, 12 Unidades de Saúde (US) do Serviço de Saúde Comunitária (SSC), três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um Consultório na Rua e Escola GHC. Os serviços da instituição são a possibilidade de acesso ao atendimento universal e gratuito para moradores de Porto Alegre-RS e do estado do RS — e, portanto, estão de portas abertas para que a população tenha o seu direito à saúde garantido. Vinculada ao Ministério da Saúde (MS), essa estrutura reconhecida nacionalmente forma a maior rede pública de hospitais do Sul do país, com atendimento 100% SUS (GHC, 2020).

O Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (SSC/ GHC), de Porto Alegre-RS constitui-se como referência da Atenção Primária em Saúde (APS)1 para a população da Zona Norte do município. Foi constituído no final da década de 1970, em pleno processo de mobilização popular em prol da democracia e dos direitos sociais. O movimento sanitário, integrado por intelectuais, sociedade civil e movimentos sociais, estava construindo as bases para o que seria o SUS, criado na década seguinte.

A primeira Unidade de Saúde do Serviço de Saúde Comunitária foi instalada junto ao Hospital Nossa Senhora da Conceição, com a finalidade de ser campo da Residência de Medicina Geral Comunitária, hoje denominada Medicina de Família e Comunidade. O fato de o serviço ter sido constituído nas vésperas da criação do SUS, muito antes da primeira proposta oficial de APS para o país e com a finalidade de ser um campo de ensino, conferiu características que o diferenciam das demais Unidades Básicas de Saúde com ou sem Estratégia de Saúde da Família do município (GHC, 2019).

A partir da inauguração da primeira Unidade de Saúde, outras onze foram estruturadas nos anos subsequentes. Todas elas inseridas nos territórios próximos ao Hospital Nossa Senhora da Conceição e fruto de intensa mobilização das comunidades destes territórios (GHC, 2019).

1 Partimos do entendimento de que no Brasil a APS está organizada com o nome de Atenção Básica (AB) e tendo a ESF como modelo; portanto, APS e AB serão usadas como sinônimos.

INTERAÇÃO ENSINO-SERVIÇO-COMUNIDADE NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL NO SUS EDUCAÇÃO POPULAR, EQUIDADE E SAÚDE

A Residência Integrada em Saúde (RIS) do GHC foi constituída em 2004, com o objetivo de especializar profissionais de diferentes áreas que se relacionam com a saúde, através da formação em serviço.

Contada essa primeira parte da história, seguimos dizendo que passados quase dez anos da criação da RIS/GHC e adquirida a maturidade e a experiência nessa modalidade de ensino, surgiu, em 2013, a proposta de descentralização da residência, indo ao encontro das políticas nacionais de desconcentração da formação e da fixação de profissionais fora dos grandes centros, expandindo para outros territórios do interior do estado a responsabilidade com a formação engajada com um modelo de saúde comprometido com os princípios do SUS. Tal movimento evidenciou a necessidade de inaugurar novos campos de formação em cenários do interior (FUNK, C. S. et al, 2014).

Em 2010 o Ministério da Saúde publicou a portaria nº 4.279, que instituiu as Redes de Atenção à Saúde. Após 20 anos de publicação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080), em 1990, essa portaria representou um marco importante no sentido da organização do sistema de saúde em rede, cujo objetivo era superar a fragmentação nos processos de cuidado em saúde.

No contexto das Redes de Atenção à Saúde (RAS), a APS é compreendida como o primeiro nível de atenção, enfatizando a função resolutiva dos cuidados primários sobre os problemas mais comuns de saúde — e a partir do qual se realiza e dever-se-ia coordenar o cuidado em todos os pontos de atenção (BRASIL, 2010). A APS caracteriza-se como o ponto da RAS privilegiado para coordenar o cuidado dispensado aos usuários. Ela é desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, próxima da vida das pessoas — e deve ser o contato preferencial dos usuários, a principal porta de entrada e centro de comunicação da RAS (BRASIL, 2017).

Sendo assim, naquele cenário, o fortalecimento das RAS perpassava a ampliação e qualificação da APS em todo território nacional, especialmente nos territórios mais longínquos e isolados. Entre as estratégias governamentais desenvolvidas para alcançar esse objetivo, a desconcentração e interiorização das RMS ganhou papel de destaque. Pretendia-se levar a formação em serviço para cenários do interior, buscando instituir processos de formação condizentes com a realidade desses locais e, ao mesmo tempo, fomentar a qualificação da rede de serviços de saúde desses locais por meio dos processos educativos impulsionados pelos programas de residência. Além disso, esperava-se que parte dos residentes viessem a permanecer

nos locais em que fizeram a sua formação, suprindo, assim, o importante déficit de profissionais qualificados para atuar no SUS, evidenciado em nosso país.

Foi nesse contexto que surgiu o processo de descentralização da RIS/ GHC. Inicialmente, ele foi atrelado à oferta pública, pela Escola GHC, do Curso de Especialização em Saúde da Família e Comunidade - Gestão, Atenção e Processos Educacionais, com o objetivo de subsidiar o desenvolvimento de funções de preceptoria, tutoria, supervisão e orientação da formação em serviço na APS. Para a escolha dos municípios que seriam campo da residência, foram observados critérios como: rede minimamente estruturada de APS; boa cobertura de Estratégia Saúde da Família (ESF) ou movimento de incremento da cobertura por parte da gestão municipal; infraestrutura adequada; rede de cuidados em nível secundário e terciário disponível na região; capacidade de preceptoria (profissionais com perfil para o ensino e com vínculo trabalhista local estável).

O município de Marau-RS foi selecionado por contar com uma rede de saúde organizada em doze equipes de ESF que oferecem 100% de cobertura para a população; por ser referência regional na área da saúde e, também, por apresentar profissionais em condição de exercer a preceptoria. Nesse processo, duas equipes de ESF acolheram residentes dos núcleos profissionais: enfermagem, farmácia e psicologia, vinculados à RIS/GHC. Tais serviços se constituíram como campo de formação em serviço. No decorrer de três anos, ingressaram três turmas de residência no município de Marau e a RIS/GHC tornou-se uma potente oferta de formação em serviço, com capacidade de impactar na qualidade do cuidado naquele município.

De acordo com a pactuação inicial firmada entre GHC e Secretaria Municipal de Saúde (SMS)-Marau/RS, no início do ano de 2015, avaliou-se que seria o momento de se estruturar um programa próprio de RMS, no sentido de sedimentar a proposta de descentralização do GHC e disseminar a capacidade pedagógica nos serviços de saúde envolvendo trabalhadores, gestores, formadores e o controle social. Nesta ação, vislumbrava-se a construção do SUS verdadeiramente como uma rede-escola, com toda a potência para intervir na produção do cuidado à saúde. A proposta, ainda, alinhava-se à política do Ministério da Saúde, que objetivava a qualificação e fixação de trabalhadores do SUS nos municípios do interior.

Buscou-se, então, a parceria da UFFS para a construção do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMS), tendo como área de concentração:

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Atenção Básica, e área temática: Atenção Básica/Saúde da Família e Comunidade/ Saúde Coletiva, pois a proposta pedagógica desta Universidade alinhava-se à proposta de desenvolvimento local e fortalecimento das relações ensino e serviço, por meio da oferta de formação de acordo com as necessidades da região, bem como sua proximidade geográfica de Marau.

Constituiu-se, assim, um grupo de trabalho, com a participação de representantes de todos os segmentos (residentes, preceptores e docentes) e instituições (SMS-Marau, GHC e UFFS) para a construção do projeto do PRMS. Nesse mesmo período, foi constituída a Comissão da Residência Multiprofissional (COREMU) - UFFS. Em seguida, o projeto foi submetido ao MEC e à Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais em Saúde (CNRMS). Após a aprovação do PRMS-UFFS/Marau, seguiram-se os trabalhos para estruturar as condições necessárias à execução do Programa, visando a qualidade da formação.

A partir de março de 2016, a SMS Marau recebeu nos dois campos de prática — ESF Santa Rita e ESF São José Operário — residentes das áreas da enfermagem, farmácia e psicologia vinculados à UFFS, dando continuidade à formação iniciada com a parceria do GHC que, por meio de seus apoiadores pedagógicos, ainda auxiliaram na condução do primeiro ano do programa.

Desde então, a construção do Projeto Político Pedagógico (PPP) vem sendo elaborada em conjunto, abrindo espaço para que os diferentes atores contribuam para qualificar as ações do PRMS. Destacam-se, nesse sentido, os momentos de assembleia das residentes, fórum de preceptores e tutores que são realizados mensalmente e culminam no colegiado onde todos participam e são tomadas as decisões de competência deste espaço. Da mesma forma, a COREMU constitui-se por representação das residentes, preceptoras, tutores(as), gestão municipal e estadual e controle social. Juntamente com a coordenação do programa, as decisões são tomadas buscando-se um consenso.

Os resultados deste trabalho encontram-se na consolidação do PRMS da UFFS que obteve reconhecimento do MEC e a aprovação para ampliação devido às condições apresentadas. Formaram-se, neste percurso de 7 anos, 25 residentes que, em sua maioria, encontram-se trabalhando no SUS e multiplicando as experiências que vivenciaram na realidade da saúde em Marau.

O processo de descentralização da Residência Multiprofissional de Saúde em Marau/RS é um exemplo da cooperação que se firmou entre o GHC, a

SMS-Marau/RS e a UFFS, provando que as parcerias entre instituições de saúde e educação podem dar certo quando são pautadas no diálogo, no respeito às diferenças e na busca de um mesmo objetivo.

Utilizaremos a metáfora da viagem para conduzir as reflexões acerca desse percurso vivido e para a problematização da formação em serviço a partir das bases da Educação Permanente (EP) e da Educação Popular em Saúde (EPS). Assim, como em toda viagem, carregamos nas bagagens os elementos essenciais que necessitamos para a travessia que será percorrida no caminho.

Nesta viagem pelos caminhos da descentralização e interiorização da formação multiprofissional em serviço, trazemos na bagagem os aprendizados, as experiências de formação do GHC, as ferramentas pedagógicas e as tecnologias leves ou relacionais — e os conhecimentos adquiridos ao longo da vida por cada protagonista engajado nessa travessia. Além disso, destaca-se o repertório de experiências de formação e trabalho em saúde no cotidiano do GHC com a integração do ensino-serviço-comunidade, na formação de profissionais de saúde no SUS.

Nos serviços de saúde, que se constituíram como campos de formação em saúde, cuidamos de pessoas, vimos sofrimento cotidiano de quem passa a vida dedicado ao cuidado dos outros e vivemos intensamente os processos de trabalho e de educação em saúde que são exigidos para produzir cuidado e fazer a gestão do cuidado em saúde.

Nos espaços educativos, experienciamos a alegria e os desafios que emergem dos processos de aprender e ensinar! A alegria com as descobertas, os ensinamentos, conhecimentos e saberes que só as pessoas podem sentir e ter consciência de que sabem.

Assim, vivenciamos intensamente os processos cotidianos que integram ensino-serviço-comunidade, com trabalhadores da saúde e professores da universidade, assumindo papéis de residentes, de preceptores, de docentes e tutores. Todos, no entanto, agregando as dimensões educativas e de cuidado em seus fazeres e saberes, com vínculo, compromisso e responsabilidade na formação de profissionais da saúde e atores sociais na construção do SUS, na democratização e defesa intransigente da vida! E de todas as formas de vida! Assim, nessa viagem encontramos pessoas comprometidas com o cuidado em saúde e com a defesa da vida e do SUS.

INTERAÇÃO ENSINO-SERVIÇO-COMUNIDADE NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL NO SUS EDUCAÇÃO POPULAR, EQUIDADE E SAÚDE

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