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A FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES E O USO DE TECNOLOGIAS

2.3. Professor reflexivo

O norte-americano Donald Schön, principal formulador do conceito de profissional reflexivo, expõe sua idéia como alternativa ao modelo de formação de profissionais nos moldes de um currículo que pretende dar conta de todos os problemas a serem enfrentados, que primeiro apresenta a teoria, mostra como deve se dar a aplicação dela e, complementando, os formandos devem passar por um estágio no qual supostamente aplicam os conhecimentos técnico-profissionais apreendidos. Formulou esta idéia uma vez que constatou a inaptidão dos profissionais formados pelo modelo tradicional para os problemas que devem enfrentar no dia-a-dia de suas tarefas profissionais, já que tais situações exigem conhecimentos para tomada de decisões que ultrapassam aqueles que a ciência pretende oferecer. Schön mostra assim um modelo de formação profissional baseado num estudo crítico das tarefas que lhe são concernentes, a fim de determinar a lógica sob as quais se baseiam, seu valor e seu alcance, ou seja, numa epistemologia da prática. Fundamentado nisto está a prática profissional como um momento que deve ser valorizado para construção de conhecimento, por meio “da reflexão, análise e problematização desta, e o reconhecimento do conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais encontram em ato” (Pimenta, 2002. p. 19). A prática, assim concebida, carece de um fundamento anterior sobre si mesma e sobre suas dimensões de alcance.

A epistemologia da prática fundamenta, então, o conhecimento na ação, “tácito, implícito, interiorizado, que está na ação e que, portanto, não a precede. É mobilizado pelos profissionais em seu dia-a-dia, configurando um hábito” (Ibid. p. 19-20). É aquele que o professor põe em prática no enfrentamento direto das situações, corriqueiras ou não, que exigem uma tomada de decisão imediata. Quando as situações são diferentes das já enfrentadas, logo, exigem uma nova formulação, novo entendimento sobre estratégias para tratamento e novos conhecimentos sobre o fato em questão, os profissionais acabam por delinear novos encaminhamentos antes não previstos. Este é o estágio da reflexão na ação. “Este movimento, dinâmico em si, requer determinados procedimentos, regras e estratégias, além de um sistema lingüístico que possa interpretá-lo” (Campos e Pessoa, 1998. p. 197). Desta maneira, a reflexão na ação constitui-se em possibilidade de geração de mudanças e de aumento do repertório de técnicas para o enfrentamento de situações similares, o que passa a fazer parte do conhecimento na ação.

Como não podemos conceber como discreto e finito o conjunto dos problemas que um professor pode enfrentar ao longo de sua carreira, como se ele (ou um conjunto de professores) ao longo de uma larga experiência pudesse já ter enfrentado todos os possíveis elementos desse conjunto, segue que o conhecimento na ação nunca dará conta de todas as matizes e problemáticas a que o professor está sujeito.

Schön explica, então, ser necessário o momento de reflexão sobre a reflexão na ação, uma vez que somente a reflexão na ação não consegue resolver problemas que vão além do repertório já criado e do entendimento fundamental do profissional; problemas que “exigem uma busca, uma análise, uma contextualização, possíveis explicações, uma compreensão de suas origens, uma problematização, um diálogo com outras perspectivas, uma apropriação de teorias sobre o problema, uma investigação, enfim!” (Pimenta, 2002. p. 20). Este estágio abre perspectivas para a valorização da pesquisa na ação dos profissionais.

Contudo, voltando um pouco à gênese do termo, Pimenta (2002) aponta duas possibilidades: reflexão enquanto adjetivo ou como um conceito. Enquanto conceito leva a um entendimento da prática profissional que vai do conhecimento na ação à reflexão sobre a reflexão na ação (conforme exposto acima). Como atributo dos seres humanos, adjetivo, faz parte das características inatas do ser humano, e, acrescentando a compreensão de Ghedin (2002), “todo ser humano, pelo caráter geral de sua cultura e por ser portador da cultura humana e da cultura de uma determinada sociedade, é um sujeito reflexivo” (p. 130), embora, explica, existam diferentes graus ou níveis de reflexão. Diz ele que “toda reflexão está sempre

historicamente situada diante de circunstâncias concretas que estão ligadas ao contexto social, político, econômico e histórico” (Ibid., p. 130).

O professor, enquanto ser humano, é reflexivo, uns em maior outros em menor grau, mas todos reflexivos. Também é um ser político, toma decisões e faz escolhas. Quanto mais conscientes disto, no sentido de ter clareza, conhecimento de si e das condições em que está situado e do papel a desempenhar, maior pode ser o grau de criticidade, de reflexão e de critérios para suas escolhas. Não deve o professor sempre compreender o processo para aceitar a implantação de quaisquer alterações em sua atividade ou mesmo para fundamentar a sua recusa? O termo compreensão está sendo aqui empregado no sentido de tomar ou fazer parte, aceitar para si. Outra pergunta, agora responsabilizando também o professor por sua formação: não deve o professor refletir sobre o que faz e, sobretudo, sobre o que falam e fazem de sua atividade, para que venha à tona, que perceba as nuanças, a compreensão de sua ação e para tornar-se consciente desta ação que é política? Pois, percebendo ou não, está agindo de acordo com essas singularidades, essa complexidade; assim, quanto mais consciência tiver dessas variáveis, mais poderá ter um controle ou ao menos compreensão do que faz:

Cada ação que eu pratique traz resultados que preciso levar em conta. Talvez o essencial, na ética para o nosso tempo, seja isto: já não respondemos apenas por nossa intenção, pelo que nos parece ser a causa interior de agirmos de tal ou qual modo. Respondemos por bem mais: pelos resultados previsíveis de nossa ação. Uma obrigação de lucidez, hoje, na ação ética. (Ghedin, 2003. p. 308)

De sorte que professor reflexivo será aqui tomado como o profissional que está além do simples ato de pensar próprio do ser humano, mas que pretende uma atitude, também ética perante sua atividade na Educação.

John Dewey, conforme Geraldi, Messias e Guerra (1998), procurou distinguir os atos humanos decorrentes da reflexão daqueles que são guiados apenas por impulso, autoridade ou tradição, ou seja, atos rotineiros. Os professores que se contentam com a forma como a sua atividade ocorre cotidianamente, sem procurar alternativas ou modos diferentes de compreensão dessa realidade, ou seja, não procuram fazer uma análise reflexiva do que lhes ocorre no sentido de buscar uma orientação para o que ocorre ou para mudanças, estão no nível do ato humano enquanto rotina. Por outro lado, uma atitude reflexiva implica na consideração ponderada do que se pretende fazer a partir do que se tem, na busca por aquilo em que se acredita, mas orientada por motivos que justifiquem essa busca sem perder de vista as suas conseqüências (Geraldi, Messias e Guerra, 1998). Segundo essas autoras,

e racionais para os problemas; envolve intuição, emoção; não é um conjunto de

técnicas que possa ser empacotado e ensinado aos professores. A busca do professor reflexivo é a busca do equilíbrio entre a reflexão e a rotina, entre o ato e o pensamento. (p. 248) (O grifo é nosso)

Essas autoras apresentam a seguinte proposta de formação de professores, com eixo na reflexão sobre a própria prática:

a constituição de uma nova prática vai sempre exigir uma reflexão sobre a experiência de vida escolar do professor, sobre suas crenças, posições, valores, imagens e juízos pessoais;

a formação docente é um processo que se dá durante toda a carreira docente e se inicia muito antes da chamada formação inicial, através da experiência de vida; cada professor é responsável pelo seu próprio desenvolvimento;

é importante que o processo de reflexão ocorra em grupo, para que se estabeleça a relação dialógica;

a reflexão parte da e é alimentada pela contextualização sociopolítica e cultural. (Geraldi, Messias e Guerra, 1998. p. 248-249)

Tendo como fundamento seus objetivos de levar ao conhecimento dos professores brasileiros as idéias de Kenneth M. Zeichner, as autoras assinalam que ele (Zeichner) faz quatro críticas a falsos conceitos de professor reflexivo ou de prática reflexiva:

1. Uma prática reflexiva não é determinada por um acadêmico na universidade que ajuda o professor da escola básica a refletir sobre o que faz, pois, neste caso, o professor universitário é quem estaria refletindo pelo professor a quem caberia a execução de suas reflexões.

2. A reflexão que se pretende na formação e na prática dos professores não pode se dar apenas sobre questões técnicas do ensino, “excluindo da competência dos professores e das professoras os processos de definição dos fins da Educação, significando, portanto, a exclusão do âmbito ético e moral do ensino” (Geraldi, Messias e Guerra, 1998. p. 250).

3. A reflexão, tal qual proposta e em que se acredita como possibilidade de minimização dos problemas enfrentados por todos para uma melhoria da qualidade da Educação, não ocorre individualmente.

4. Os resultados advindos das práticas pedagógicas na escola não são de exclusiva responsabilidade do professor (ou apenas de um professor). Como extensão do mau entendimento da proposta de professor reflexivo enquanto prática individualizada, isto significa que o professor ao assumir uma postura reflexiva não pode estar individualizando responsabilidades (nem mesmo os ganhos), o que contribuiria para aumentar o peso de suas tarefas na escola.

Motivado por essas considerações iniciais sobre falsos entendimentos do conceito de professor reflexivo (ou mesmo de sua apropriação indébita), seguem algumas ponderações sobre a forma como ele pode ser tomado, de tal maneira que leva à reprodução de práticas docentes e de formação de professores com fortes indícios da racionalidade técnica.

Em se compreendendo professor reflexivo do ponto de vista de uma busca pela melhoria da qualidade do ensino e da formação de professores, o ensino não pode ser tomado como ponto de partida e de chegada (Pimenta, 2002; Contreras, 2002), pois isto poderia se constituir em um limitador no que diz respeito à produção de elementos teóricos significativos para a própria reflexão sobre a reflexão na ação, que é um dos estágios na proposta de Schön. Se assim ocorrer, os professores se encontrarão em uma singularidade em que nada alcançariam além do que já possuem, em termos de formação, de desenvolvimento profissional.

Também, em se enfatizando a dimensão reflexiva do professor, porém em termos individuais, a incorporação de ações com uma visão limitada desse conceito pode gerar uma supervalorização do professor enquanto indivíduo (Pimenta, 2002; Contreras, 2002). Sobre isto, Pimenta diz haver muitos teóricos que apresentam preocupações, pois pode gerar algumas idéias infundadas, como o praticismo: somente com a prática pode-se chegar à construção do saber docente; individualismo: uma reflexão que gira em torno de si mesma; hegemonia autoritária: somente refletindo sobre a prática pode-se resolver os problemas dela; modismo: apropriação indiscriminada e acrítica, desconsiderando-se as origens e o contexto em que o conceito foi gerado.

Ainda em relação ao aspecto da individualidade dos professores, o conceito tem um alcance muito limitado, pois se refere a uma prática individual. As idéias de Schön são aplicadas para mudanças imediatamente referidas à prática individual do professor em sua sala de aula – isto pode não levar a alterações além deste âmbito. Pimenta diz que esses autores acreditam que Schön tinha consciência dessa limitação. Para eles, Schön não qualifica a linguagem, os sistemas de valores, os processos de compreensão e a forma como os professores definem o conhecimento em seu conceito de professor reflexivo. Sem estes elementos, a atuação dos professores na direção de uma mudança segundo ideais de igualdade e justiça fica prejudicada. Assim, o conceito perde muita credibilidade uma vez que desconsidera a dimensão institucional como local privilegiado, como propiciadora e sistematizadora da prática reflexiva do coletivo que a compõe.

suas quatro-paredes também porque quando faz escolhas, quando decide, relativiza as escolhas de acordo com a instituição onde trabalha, aquela que ele representa e a constitui, o que implica em relações também com outros indivíduos (colegas professores, corpo técnico e da gestão, além dos alunos e de toda a comunidade escolar). Se não houver uma compreensão disto, por parte do indivíduo e do coletivo onde atua, essa reflexibilidade pode ser ineficaz, o que faz com que não vá além daquilo que Schön intitulou reflexão na ação, limitando suas ações a atividades rotineiras.

Segundo Pimenta (2002), Habermas compreende que a reflexão não é um processo psicológico individual, uma vez que o indivíduo depende de sua existência, da sociedade, sua cultura, e todas as implicações daí decorrentes. Para esta autora, “a mera reflexão sobre o trabalho docente de sala de aula é insuficiente para uma compreensão teórica dos elementos que condicionam a prática profissional” (p. 25). Diz ainda que é normal haver uma identificação do lugar onde o professor atua, mas de maneira nenhuma se deve reduzir o problema a esse lugar.

A partir da proposta de Schön, pessoas não comprometidas eticamente com a causa da Educação podem promover o mercado do conceito, uma massificação do termo (Pimenta, 2002; Libâneo, 2000). A proposta de Schön, a partir de Dewey, pretende que o professor se torne um profissional reflexivo por algumas “técnicas”, por “treinamentos” em “capacitações”. O que ocorreu a partir daí foi uma apropriação no mínimo irresponsável do termo, culminando no que pode ser chamado de “mercado do conceito”. Pimenta diz que essa apropriação mercadológica do termo acaba por dificultar o engajamento do professor em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer técnico. E os professores podem ingenuamente se entusiasmar e cair nas armadilhas desse “mercado”. Além das comprometidas condições de trabalho há também uma grande lacuna nas condições de formação dos professores in loco, no contexto da escola. É claro que, por causa dessa conjuntura, fica muito mais fácil para os professores buscarem algumas “reflexões já prontas” nesse mercado. Ghedin (2003) lembra também a responsabilidade do professor sobre essa sua rendição quando diz que “nem todos estão prontos para o conhecimento, não que ele não seja para todos, pois ele o é, mas que nem todos estão dispostos nesta busca de conhecer” (p. 122); porém, é necessário aditar que, em boa parte dos casos, falta não somente a disposição, mas também as condições ou uma maior compreensão do significado disto em sua tarefa diária que inclui principalmente a formação de sujeitos que devem se preparar para esta busca. Claro é, entretanto, que os professores na escola não precisam ser tão ingênuos e não o são, logo não estão ao arbítrio da vontade

daqueles que propõem sua formação como mercadoria; isto pode gerar insatisfação com relação às propostas de formação assim encadeadas, como também pode servir ao desserviço de apropriar os professores de um discurso muito bem elaborado com pressupostos de orientação reflexiva embora a prática permaneça a mesma.

Uma outra interpretação para esta crítica, complementando-a, seria a utilização desse conceito como pretexto para a implementação de “pacotes” preparados pela universidade (Zeichner, 2003), como explicado no seguinte excerto:

Um dos empregos mais comuns do conceito de reflexão implica ajudar os professores a refletirem sua atividade com a meta principal de melhor reproduzirem, na prática, aquilo que a pesquisa universitária alega considerar eficaz e que, em alguns países, como os Estados Unidos, geralmente é ‘embalado’ e vendido a escolas e instituições de Educação de professores na forma de programas altamente estruturados. (p. 43)

Essa situação se agrava mais ainda quando se trata de “pacotes” encomendados pelos gestores centrais da Educação, a fim de determinar “cientificamente” (pois por meio da universidade) a sua manifesta política do fazer conforme se anuncia sem uma verdadeira prática democrática. E “estes, a quem cabe a decisão [os políticos], orientam-se mais pelos critérios do desenvolvimento econômico e pelo contexto sociocultural do que por preocupações de natureza pedagógica” (Rodrigues e Esteves, 1993. p. 40).

Também pode ocorrer uma legitimação de velhas práticas pedagógicas com o pretexto de serem produtos da reflexão dos professores, ou seja, uma apropriação generalizada do termo (Contreras, 2002). Até mesmo a formação de professores baseada na preparação instrumental e técnica muitas vezes é conduzida e corroborada pela linguagem da reflexão, ou seja, pela apropriação indevida do que propôs Schön.

Nos limites dessa pesquisa, Sacristán (2002) propõe um questionamento chave sobre o alcance da proposta de professor reflexivo, qual seja: Que condições têm os professores para refletir? Em que condições encontram-se os professores para serem considerados de fato profissionais reflexivos? O debate que se propõe é até que ponto os professores são simples executores das decisões tomadas pelos gestores da Educação, embasados ou não numa teoria que as justifiquem? Se forem (meros executores), não ultrapassam os limites da adjetivação do conceito aqui analisado; contudo, não é isto que se pretende, uma vez que se busca uma prática de reflexão na escola, uma vez que “o horizonte da reflexão no ensino é a potencialidade ou deve ser potencializador do questionamento radical de si mesmo e da

Educação como possibilidade de rompimento da exploração, reproduzido ideologicamente por

deve passar por alguns pontos fundamentais, como participação dos professores nas decisões tomadas pelos gestores da Educação, em todas as esferas de decisão, formação contínua dos professores e condições de exercício da docência – dito de outra maneira, permeia o desenvolvimento profissional do professor.

De acordo com Pimenta (2002), isto envolve discussões sobre: questões organizacionais; envolvimento de todos na elaboração do Projeto Político-Pedagógico; importância do trabalho coletivo; autonomia (dos professores e das escolas); condições de trabalho, de carreira, de salário, de profissionalização dos professores; identidade epistemológica dos professores (saberes que lhes são próprios); processo de formação dessa identidade (vida, história, trajetórias pessoal e profissional...); novas necessidades colocadas às escolas pela sociedade das novas tecnologias de informação e do conhecimento, de problemas relativos ao desgaste das relações sociais e afetivas, à indisciplina, ao desinteresse pelo conhecimento e até gerado pelo reconhecimento de formas de enriquecimento ilícitas; “novas configurações do trabalho e do desemprego” (p. 21).