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3 TEORIAS DA TRAJETÓRIA DO CRIME

3.1 Prognosticadores da trajetória do crime: Edwin Sutherland e o casal Glueck

Na tentativa de não perder a riqueza das concepções dos clássicos americanos aqui em exame, Sutherland e os Gluecks, procuraremos apresentar a seguir algumas das aproximações, dos distanciamentos e dos rumos que as mesmas impingiram ao campo da criminologia. Não restam dúvidas, por exemplo, acerca das valiosas contribuições de Edwin Sutherland à área, em especial no que diz respeito ao crime profissional e do colarinho branco e à sistematização da teoria

da associação diferencial. Somos tributários de uma teoria que buscou explicar a questão tanto a nível individual como em um nível macro, numa postura distinta de alguns de seus contemporâneos, como Clifford Shaw, Henry McKay e Thorsten Sellin (Laub e Sampson, 1991).

À medida que o trabalho de Sutherland crescia em reconhecimento no âmbito sociológico, também se ampliavam suas críticas ao trabalho contemporâneo dos Gluecks, o que acabou por fazer com que a substanciosa contribuição do casal fosse relegada ao passado e tivesse desconsiderado seu valor para a pesquisa criminológica na América, apesar de apresentar mais de 1.000 referências e 550 páginas.

Mas os Gluecks, devido ao seu interesse em utilizar técnicas de predição para fins pragmáticos e à sua crença na importância das pesquisas que desenvolviam, não só rebateram as críticas de Sutherland como se defenderam de seus outros oponentes. No entanto, ainda assim suas posições ficaram relegadas ao segundo plano, devido também às características antissociais e à postura antiteórica que apresentavam, aspectos que se somavam ao fato de os mesmos não terem constituído uma disciplina aliada a um grupo de seguidores de seus princípios. Todos esses fatores possivelmente contribuíram para que sua valiosa contribuição se perdesse no tempo, ficando sujeita ao esquecimento, de modo que Sutherland tornou-se o criminologista mais influente do século XX, e assim estabeleceu o paradigma dominante na sociologia.

Foi entre os anos de 1925 e 1945 que Sutherland desenvolveu a teoria da associação diferencial, mesmo período em que os Gluecks lançaram sua pesquisa sobre as carreiras criminosas, instaurando a polêmica entre os autores que culminou pela relevância do primeiro e o apagamento dos segundos, como indicamos há pouco.

Mas no começo deste período o diálogo entre eles foi bem mais producente e amistoso. Por volta dos anos 1940, os achados de Sheldon e Eleanor Glueck tiveram singular influência na pesquisa do campo da criminologia, devido principalmente a um novo modo de abordar a questão e à sua metodologia de pesquisa, aspectos que se aproximavam bastante da perspectiva de Sutherland nesse momento. Entretanto, por volta de 1937, essa afinidade inicial foi substituída por uma acalorada discussão que se estendeu por cerca de 15 anos, nos quais ocorreram sucessivos ataques entre eles.

Enquanto os Gluecks advogavam uma teoria de múltiplos fatores, constituída pelos estudos do desenvolvimento das carreiras criminais e da eficácia do tratamento correcional em reduzir o comportamento criminoso, Sutherland desenvolveu a teoria da associação diferencial, que exigia a destruição das perspectivas sobre o crime em nível individual, considerado como não sociológico.

Apesar dessas divergências, alguns pontos em comum se destacavam: tanto Sutherland quanto os Gluecks, por exemplo, acreditavam que a família era uma variável crucial para o entendimento da delinquência. Para eles, casas em que se verificavam disciplinas muito rígidas, negligentes ou inconscientes possivelmente levariam ao desenvolvimento de crianças com personalidades socialmente indesejáveis e susceptíveis tanto a comportamentos desviantes quanto ao vínculo com a delinquência.

Todo esse quadro nos leva a concluir, juntamente com Laub e Sampson, que as posições de Sutherland e do casal Glueck têm que ser entendidas levando- se em consideração a complexidade que as define, no contexto mais amplo do debate travado entre eles. É notável, por exemplo, que ainda que Sutherland tenha feito afirmações que demonstravam que prezava fortemente o trabalho dos Gluecks,

12 tenha ao mesmo tempo atacado fortemente a conclusão dos mesmos de que “a

redução da delinquência fosse devida à idade ou à maturidade” (Sutherland, 1937b apud Laub e Sampson, 1991, p. 1413). Ambiguamente, em relação a essa questão Sutherland afirmou que “não há justificativa para esta conclusão, seja na estatística seja na lógica. A idade, como um mero passar de tempo, não tem significado como uma causa” (Sutherland, 1937b apud Laub e Sampson, 1991, p. 1413). 13 Em sua

longa resenha da obra do casal, Sutherland refere-se à “teoria do comportamento criminoso dos Gluecks e [diz] que eles falharam em provar suas hipóteses” (Sutherland, 1937c apud Laub e Sampson, 1991, p. 1414).

12 Por exemplo, em resposta à publicação em andamento de 500 Criminal Careers, Sutherland escreveu, em 27 de setembro de 1929, que o livro era “uma grande contribuição à literatura e aos métodos da criminologia” (Sutherland, 1929 apud Laub e Sampson, 1991, p. 1412). O contraposto também ocorria: os Gluecks, em 500 Criminal Careers, também elogiaram o trabalho de Sutherland, e o discutiram em importantes livros acadêmicos do campo, no que diz respeito à avaliação de taxas de reincidência (Laub e Sampson, 1991).

13 Sutherland estava mais perturbado pela conclusão baseada na psicologia dos Gluecks do que pelas dificuldades mentais e/ou emocionais que impediam o processo de reforma entre os ex- prisioneiros (1937b, p. 186). Apesar de seu tom negativo, “a resenha de Sutherland, na Harvard Law Review, foi selecionada de um manuscrito maior, não publicado, intitulado The Gluecks' Later

Criminal Careers: An Appraisal by Edwin H. Sutherland” (1937c, apud Laub e Sampson, 1991, p. 1415).

Nesse contexto, tanto a metodologia dos Gluecks quanto seus interesses substanciais nos fatores múltiplos que levariam ao crime foram rejeitados pela nova perspectiva da indução analítica de Sutherland. Seu ataque mais severo aos Gluecks dizia respeito aos métodos dos mesmos para coleta de dados e análise. Sheldon e Eleanor Glueck, no entanto, nunca postularam um modelo biológico determinista: o que lhes interessava era identificar como os fatores sociais serviam como mediadores das diferenças inegáveis entre os indivíduos e das características relevantes do crime.

De acordo com Laub e Sampson, parece ser possível afirmar que Sutherland acreditava que a perspectiva sociológica – apoiada na indução analítica e retratada na ideia da associação diferencial – estava correta, o que o levou a qualificar os dados dos Gluecks como errados. Contudo, após um exaustivo exame dessas produções, Laub e Sampson atribuíram o ataque de Sutherland ao programa de pesquisa interdisciplinar da abordagem de fatores múltiplos dos Gluecks ao fato de este estar guiado por uma visão do positivismo sociológico, que estabeleceu a criminologia como um terreno próprio da sociologia. Tal posição foi ressaltada por seu compromisso com o método da indução analítica e, finalmente, por sua posição como criminologista dominante no século XX.

Entretanto, ao reexaminar os trabalhos e discussões de Sutherland e dos Gluecks, Laub e Sampson concluíram que suas posições foram profundamente afetadas por preconceitos metodológicos, disciplinares e até mesmo institucionais. Diante desse quadro, os autores defenderam a necessidade de se entender os processos pelos quais esse conhecimento foi socialmente construído, com o propósito de fornecer novos insights ao contexto histórico e intelectual do pensamento criminológico.