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4 JUVENTUDE E VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

4.3 Quem são as vítimas? Quem são os homicidas?

Diversos estudos constatam uma mudança do perfil etário das vítimas e agressores, normalmente constituído de jovens do sexo masculino, entre 15 a 24 anos, vinculado ao fenômeno da criminalidade violenta (Sapori, 2007).

Pochmann (2002) e Adorno (2002) chamam a atenção para o fato de o país registrar indicadores de homicídios superiores aos internacionais, neste segmento populacional. Vê-se claramente que a quantidade de homicídios ocorridos no Brasil, “na faixa de 15 a 24 anos por ano é superior aos dos países em conflito aberto como Croácia, Eslovênia, Irlanda do Norte, Israel” (Pochmann, 2002, p. 39).

Estudiosos têm apontado que, especificamente, favelas e outras aglomerações irregulares apresentam taxas de crimes violentos, particularmente homicídios, superiores às demais áreas urbanizadas (Maricato, 1998; Beato e Reis, 2000). Sabemos, entretanto, que nem todos os jovens de comunidades pobres entram para a carreira do crime (Adorno, 2002; Zaluar, 2007). Isso sugere que há que se explorar, conhecer e analisar mais detalhadamente dados provenientes da história de vida, de suas regras e valores, de seu território, de sua vizinhança, buscando levantar possíveis causas que os levam a se vincularem com o tráfico, mesmo ao preço de perderem precocemente a própria vida (Zaluar, 2002, 2007).

No Brasil, algumas comunicações sobre o comportamento jovem, a partir de seu vínculo com a criminalidade violenta, se voltam para explicações do

imediatismo do jovem e do risco. Nesse corredor, os crimes se multiplicam, bem como sua experiência do saber se virar, tirar proveito e de transitar pelos vieses da marginalidade. Enquanto isso se polariza mundialmente o fomento de práticas subterrâneas e violentas de resolução de conflitos, cujas modalidades variam de país para país e nos moldes de cada cultura (Zaluar, 2007).

Também em nível de territorialidade da droga, tem se instalado comandos que não só negociam com uma polícia fraudulenta, como mantêm refém toda a comunidade, subordinada a códigos e proibições explícitas, exposta a violências desmedidas, à perda da liberdade e da livre expressão. Nesse espaço, o Estado não intervém e, quando o faz, a guerra se trava de ambos os lados. Esses são os acontecimentos que presenciamos na imprensa e na mídia eletrônica, de capitais como Rio de Janeiro e São Paulo (Zaluar, 2007).

Como bem destaca Soares (2008), os que mais matam e morrem por violência são os mais pobres e os menos educados. Sua pesquisa evidenciou, ainda, que é nas áreas mais pobres da periferia urbana das grandes metrópoles estudadas (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte) que o crime de homicídio ganha destaque, o que também foi corroborado nos achados de Cano e Santos (2001).

Nesse ponto, torna-se importante fazer uma diferenciação entre o mundo do tráfico e o do juvenescimento da vítima e do autor dos homicídios. O tráfico já existia nas favelas na década de 1970, mas sua ascensão se dá com a comercialização, nos anos 1980, da cocaína, e nos anos 1990, do crack. Mas o juvenescimento dos atores é uma característica dos anos 1990, carecendo de investigações, pesquisas sobre a trajetória deste crime e do criminoso para que possamos compreender melhor esse fenômeno, e traçar políticas de prevenção (Sapori, 2007). É preciso considerar que no Brasil

(...) os dois fenômenos caminharam juntos uma vez que a favela nos grandes centros urbanos tornou-se nesses 20 anos o lócus privilegiado da venda das drogas ilícitas no varejo, mobilizando contingentes expressivos de jovens que se aglutinaram em grupos e gangues rivais, caracterizando um mercado ilícito dotado de um varejo bastante fragmentado, pulverizado e, portanto, foco de conflitos de toda ordem entre pessoas (Sapori, 2007, p. 100).

O acesso ao mundo do tráfico tem garantido ganhos secundários ao jovem pobre, negro e pardo da periferia, como: participação e identificação com o grupo de tráfico; gangues, galeras, grupos de criminosos que caracterizam uma dada facção e podem ser caracterizados como grupos primários que compartilham interesses, valores, crenças e regras; sentimento de solidariedade e de lealdade traduzem laços estabelecidos entre comparsas (Peralva, 2000; Zaluar, 2007).

É típico desses jovens mostrarem-se frios e destemidos, acima do bem e do mal, ao mesmo tempo em que, contracenando com a ordem estabelecida e quase ausente de seus domínios, constituem denúncia viva do Estado enfraquecido. Nesse entremeio, crescem e naturalizam as “práticas de violência policial contra os pobres em geral e as práticas sociais de violência dos jovens pobres entre si, numa sociedade fragilmente governada pela lei” (Zaluar, 2007, p. 32). Logo, ingressar num grupo de tráfico pode significar realizar sonhos de consumo, obter respeito, proteção, estima e visibilidade perante os outros.

Quanto à posse da arma de fogo, pode ressignificar poder frente aos outros, força, masculinidade, virilidade, status, uma vez que é dotada por uma cadeia de signos, com amplo significado simbólico (Peralva, 2000; Zaluar, 2007; Sapori, 2007). O apoderar-se da arma permite ao jovem potencializar-se de significados que lhe permitem apagar, tomar distância subjetivamente do preconceito e da desigualdade social e do tecido esgarçado de sua própria história (Peralva, 2002).

A outra face da moeda é a extrema fragilidade do sistema de justiça criminal na sociedade brasileira. Se, por um lado, “produzimos mais indivíduos motivados para o crime, por outro lado, as oportunidades para a efetivação dessas motivações ainda são muitas ou estão até aumentando” (Sapori, 2007, p. 102-103). Por outro prisma, se as oportunidades para o crime aumentaram devido ao fácil aceso às armas de fogo, o monopólio da violência por parte do Estado também não foi exitoso.

Com base em pesquisas sobre a capacidade de incriminação da Justiça Brasileira, Misse (2007) aponta para a sua baixa capacidade de incriminação. Dentre os oito estados pesquisados, apresentaremos aleatoriamente Riffiotis et al. (2007), que utilizando dados reconstituídos ao longo da pesquisa e abordagem longitudinal parcial, instaurada entre 2000 e 2003 na região metropolitana de Florianópolis, identificaram com base em 183 processos de homicídios que, até 2006, apenas 20%

desses processos haviam sido julgados, e estimaram que 8% das ocorrências de homicídios neste período haviam sido julgadas até o ano de 2006; e pesquisa realizada por Ratton et al. (2007), utilizando estatísticas oficiais e abordagem longitudinal parcial, em que identificaram, com base em 2.114 ocorrências de homicídio registradas em Recife em 2003 e 2004, que 8% chegam a julgamento, ou um ano após o cometimento do crime (apud Misse, 2007, p. 10).

Guardadas as devidas proporções, esses dados não se restringem ao nosso país. A baixa proporção de casos que terminam em condenação e a grande filtragem dos casos na fase policial foram também encontradas nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Canadá (Vargas, 2004; Adorno, 2002; Sampson, 1986). Resta- nos o reconhecimento do quanto se desconhece sobre “a dimensão efetiva dessa impunidade” (Misse, 2007, p. 10). Os homicídios têm atingido pessoas com primeiro grau completo ou quase, superando o grau de escolaridade da população como um todo (Zaluar, 2007). Talvez a presença de adolescentes de classes média e alta da sociedade no mundo do crime tenha concorrido com essa estatística expressiva (Adorno, 2002; Zaluar, 2007). Para Silveira (2007, p. 59), “as motivações mais comuns para os crimes foram as dívidas decorrentes da aquisição de drogas, vinganças, conflitos de natureza subjetiva e desentendimentos por brigas anteriores. Em 56,7% das vezes os autores são desconhecidos”.

Para Peralva (2000), a maioria desses crimes ocorre normalmente em espaços públicos e à vista de muitas pessoas, as quais são regidas pela descrença nas ações do sistema judiciário em punir os culpados e/ou de garantir proteção às testemunhas, e recolhem-se à lei do silêncio, o que normalmente dificulta as investigações. O estado civil também conta muito. Ser solteiro aumenta o risco de vitimização, bem como a inserção em atividades, quando as têm, de baixa qualificação profissional, como ajudante de pedreiro, carregador de caminhões, etc.

Em pesquisa realizada em Belo Horizonte, na Pedreira Prado Lopes, Ziller (2004) relata numa passagem que os corpos ficam jogados na rua, sendo mais tarde recolhidos pela própria população ou deixados em terrenos baldios. A comunidade demonstra consensos diferenciados quando o assassinato atinge um trabalhador, o que provoca desconforto, revolta, ao contrário de quando ocorre entre bandidos, ou de pessoas de má índole, ligadas ao mal, quando há um consenso coletivo de que é assim mesmo. A pessoa que prejudica aos outros, acaba assim. Normalmente esses crimes não são investigados. O descrédito da lei e a desconfiança face à

desproteção da população mantêm esta acuada e no silêncio, o que impede ou dificulta a investigação.

Beato (2001) aponta ser a arma de fogo a mais usada nesse tipo de crime, que ocorre principalmente à noite e em finais de semana. Se faz seguir da arma branca e, secundariamente, de estrangulamento, violência corporal, ingestão de química, mutilações, etc. Estes resultados são confirmados em outras pesquisas e outros Estados, como Pernambuco (Khan e Zanetic, 2009), Bahia (Nóbrega, 2009), São Paulo (Adorno, 2002) e Rio de Janeiro (Mello Jorge, 2002), dentre outros.

Souza (2003, p. 16) defende que a questão atual não é mais a legitimação do poder do Estado, mas “a constituição de uma cultura democrática, de uma cultura plural e cosmopolita, que nunca está dada de antemão, mas sempre requer amplos e meticulosos processos de construção”. Urge, portanto, a instauração de um espaço de participação civil, espaço este que para Paoli

(...) se situa a meio caminho do domínio compreendido pela noção de cidadania no sentido estrito – a igualdade jurídica de cada indivíduo perante a lei na defesa de seus direitos e no cumprimento de suas obrigações – e a ação política propriamente dita (Paoli, 1982, p. 55).

Conclui-se, assim, que o ensejo dessas ações decorre possivelmente da parceria da participação coletiva da sociedade, alicerçada ao fortalecimento das instituições democráticas e ao controle externo das atividades das instituições da justiça, culminando na legitimação dos direitos humanos, no reconhecimento de sua indivisibilidade, universalidade e interdependência e de sua aplicação, indistintamente, a toda a sociedade.