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Programação da Rádio Favela

1. Pressupostos teóricos

3.3 Programação da Rádio Favela

Além da atividade constante dos ouvintes na produção de conteúdo, a programação da emissora tem a possibilidade de qualquer membro da comunidade ou entidade propor um programa que pode ser cedido sem nenhum custo. O projeto é analisado pelo conselho formado pelos diretores e por representantes de associações. Segundo o diretor Nerimar Vanderlei Teixeira, a decisão é tomada tendo em vista como o programa pode beneficiar os ouvintes. Assim surgiram os programas “A Voz da Classe Operária”, “Renovando a Esperança” e “Em Sintonia com a Educação”.

O primeiro, produzido pelos sindicatos dos Trabalhadores da Construção Civil e dos Policiais Rodoviários Federais, vai ao ar todos Sábados das 8 às 10 da manhã. “A Voz da Classe Operária” apresenta a mobilização das organizações trabalhistas para a conquista de direitos; traz dicas para os trabalhadores e faz uma análise da conjuntura local e nacional.

Já o “Em Sintonia com a Educação”, um espaço da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi apresentado, nos anos 2000 a 2002, de 15 às 17 horas todas as quartas-feiras. A iniciativa se destinava a crianças, na primeira parte, com músicas infantis e contos de estórias, e a adultos, na segunda parte, com um quadro sobre a história de Belo Horizonte e entrevistas sobre temas como situação da mulher, educação de jovens e adultos e a relação do trabalhador com a educação. Segundo o professor Wemersom Amorim, produtor do “Em Sintonia com a Educação”, quando ganhou a concessão de emissora educativa, a Favela Fm readequou sua programação e, ironicamente, o único programa específico sobre educação ficou num horário inviável para seus produtores, deixando de ser transmitido.

13 horas de segunda a sábado. Este traz blocos com músicas, leitura de notícias, comentário crítico sobre as mesmas e participação do ouvinte pelo telefone. As notícias, geralmente, são extraídas dos jornais impressos e da Internet, porém há também a participação de repórteres que falam de diferentes locais da cidade e, principalmente, do Aglomerado da Serra. “É um diferencial porque enquanto a maioria das rádios só tem repórteres ao lado das autoridades como Prefeitura, Câmara, Assembléia e Governo do Estado, nós estamos presentes no meio do povo” (Nerimar Teixeira, 2007). A participação do ouvinte por telefone não se resume a pedidos musicais. Os receptores fazem comentários críticos, respondem a enquetes e prestam utilidade pública, como aviso de crianças, animais e documentos achados.

Os intervalos da emissora trazem propagandas comerciais e campanhas educativas feitas pelos próprios produtores da Favela Fm, pelos governos estadual, municipal e federal. O executivo do Estado (chefiado, desde 2003, por Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB) se destaca nas inserções e informes publicitárias na programação, todavia a Prefeitura, administrada por José Pimentel (desde 2001) de um partido opositor ao governo do Estado (Partido dos Trabalhadores – PT) também mantém contrato publicitário e boas relações com a Rádio Favela. Apesar de ser a terceira maior audiência da zona metropolitana da capital mineira, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião, Pesquisa e Estatística (Ibope), as propagandas são principalmente de agências de empréstimos, festas da região e da Companhia de Águas e Esgoto do Estado, sem a participação de grandes anunciantes. “Não temos um departamento comercial que vai atrás de grandes empresas. Nossos locutores se mantêm com pequenos anúncios” (Nerimar Teixeira, 2007).

“Uai Rap Soul” é outro programa que promove um diálogo “conscientizador” com os ouvintes. Através sua música, leva uma mensagem subversiva e educativa. Os rappers criticam, no programa, principalmente as injustiças sociais e o preconceito. Bandas excluídas da programação das emissoras comerciais, como os Racionais Mc, são a principal atração do horário. Todavia, a produção tem o cuidado de selecionar apenas raps que se contrapõem às drogas e a violência.

Os programas musicais ocupam espaços privilegiados na grade da Favela Fm. A “Arapuca Caipira” é um exemplo de sucesso que traz a música de raiz mineira das 5 às 8 da manhã. As músicas antigas são o destaque o “Bolero do Lero Lero”. Todavia, os sucessos do play list (lista das músicas executadas) internacional das grandes gravadoras também possuem seu horário no programa “Só Lixo”, no sábado, das 15 às 18 horas, uma maneira irônica de

reproduzir e, ao mesmo tempo, criticar as produções das industrias culturais, trazendo a idéia de consumo oblíquo (CANCLINI, 2006). A criançada participa da produção do “Fala Meninada”, escolhendo as músicas, fazendo entrevistas, dando sua opinião e apresentando.

A Rádio Favela transmite diariamente das 5 da manhã a 1 da madrugada. O empenho de uma equipe de 14 membros possibilita essa produção. Longe do estilo estanque da maior parte das emissoras comerciais, a Favela Fm flexibiliza horários, intervalos e blocos. A regra é não ter regra que não possa ser quebrada. O único horário rigorosamente respeitado é o Horário de Reflexão, às 18 horas, quando a Ave Maria é tocada na voz de Steve Wonder, seguida de uma leitura bíblica e a gravação da bênção de um padre.

A programação da emissora possui o improviso e a diversidade como características que a aproximam das invenções do popular, conforme defende Certeau (1994).

O estilo improvisado da Favela Fm é talvez o melhor retrato da vida no morro. Transforma a emissão numa fonte de renovadas surpresas, ao contrário das rádios comerciais com sua programação estanque e padronizada (MESQUITA; CALIARI, 2001).

Os redesenhos da plástica radiofônica são comuns em seus programas. Nem sempre há vinhetas de passagem, Entrada e Saída de Bloco definidas e diferenciadas. Apenas alguns programas, como o “Uai Rap Soul” possuem uma plástica estruturada. Os horários para iniciar os programas e os intervalos não são totalmente fixos como, geralmente, buscam as emissoras comerciais.

A rádio apresenta um estilo bastante informal e improvisado. Os programas nem sempre começam no horário estabelecido e, se um locutor falta, é substituído por outro, nem que seja só para colocar as músicas. Também pode ser percebida uma falta de profissionalismo dos locutores. Não há locutor padrão, com locução clara, como ocorre nas rádios convencionais, o que muitas vezes dificulta o entendimento das mensagens (SIMÕES; VERA, 2001, p. 2).

Nestas características, identificam-se as táticas que Certeau (1994) refere aos que ocupam o território do outro. O rádio, uma tecnologia, controlada principalmente por grupos políticos ou empresariais hegemônicos, é reapropriado por um movimento de jovens da periferia de uma metrópole brasileira. Nas táticas de apoderamento, alguns traços tradicionais dessa mídia são mantidos, outros modificados ou ainda completamente alterados numa verdadeira bricolagem.

A linguagem predominante da Favela Fm é coloquial e informal, poucas vezes seguindo roteiros previamente produzidos. “Essa linguagem é chamada pelos integrantes da rádio de ‘favelês’, isto é, a fala particular da periferia, com suas gírias, expressões e símbolos

próprios” (SIMÕES; FRANÇA, 2001, p. 6). O reforço ao lugar de fala dos excluídos fortalece as características de oralidade do rádio (SILVA, 1999), imagem acústica (ORTRAWIANO, 1985; McLEISH, 1996) e o diálogo mental (PRADO, 1989) entre apresentadores e ouvintes.

Os locutores buscam estabelecer uma relação afetiva e elogiosa com o público. Eles agradecem o carinho e a audiência do público que “é dez”, “é o nosso especial”, “é demais muito, muito demais” (...) Os locutores brincam com os ouvintes, criam apelidos para eles e conversam sobre os mais variados assuntos como se fossem amigos íntimos. (...) A todo o momento, os locutores convidam os “escutantes” a participarem dos programas, agradecendo a “toda rapaziada bacana e bonita”. (SIMÕES; FRANÇA, 2001, p. 7).

A programação também é marcada pela diversidade de estilos. Há do jornalismo ao humor, da música dançante internacional ao brega romântico, diferenciando-se bastante da tendência de segmentação de algumas rádios. Os horários e as seqüências não amenizam essas diferenças. Os contrastes são gritantes. É comum escutar o rock internacional seguido pela música sertaneja. As notícias intercalam propagandas, participação de ouvintes ou músicas. Não existem modelos estanques para organizar os programas. Essa hibridação ou “apapagaiado” musical demonstra como as culturas populares podem conviver com os diferentes (CERTEAU, 1994). Misael Filho, da turma do rap, explica isso: “não curtimos brega, mas não temos nada contra com quem curte” (MORAIS, 2007).

Já o conteúdo crítico da Favela Fm demonstra a característica subversiva das culturas populares (HALL, 2003; DOWNING, 2002; PERUZZO, 2004). Mesmo sem formação universitária ou militância partidária de esquerda, os locutores questionam a situação de pobreza dos moradores, as contradições entre o discurso e a prática política e até mesmo a acomodação dos cidadãos no exercício de seus direitos e de sua co-responsabilidade social.

A Rádio Favela é apresentada como “a voz do morro”, “a voz da comunidade”, “a rádio do povo, que fala para o povo”. (...) Associado a essa conscientização, está o fato de a rádio ser também um espaço para discussões e críticas políticas, econômicas e sociais. Afinal, “essa rádio não toca música não, toca idéia (...) a gente aqui gosta de balançar o beiço e isso incomoda”. Os locutores (...) criticam o presidente Fernando Henrique Cardoso, discutem desemprego, inflação, eleições municipais e destacam a função da Rádio alertar para os problemas existentes no país. (SIMÕES; FRANÇA, 2001, p. 3)

Nesta perspectiva, o espírito comunitário e o ideal da justiça social substituem, por vezes, os referenciais do consumismo e do espetáculo, geralmente propagados pelas emissoras comerciais.

A partir de janeiro de 2008, a Rádio Favela consolidou uma mudança, já iniciada paulatinamente desde meados do ano anterior em sua programação, padronizando, engessando e profissionalizando sua produção. O jornalismo passou a ser apresentado em horários fixos (de 30 em 30 minutos) por locutores com o padrão das rádios comerciais

limitados a ler notícias sem comentários críticos. Os apresentadores dos programas musicais só falam na Entradas e Saída de Blocos, somente mandando alôs, desanunciando músicas, fazendo testemunhais principalmente de festas e chamadas dos próximos programas. O diretor, Nerimar Teixeira, explica que as mudanças são para garantir a audiência da emissora e mostrar que a favela também pode produzir um rádio profissional. Essa situação traz o seguinte questionamento: será que, 19 anos depois de estar no ar, os gestores da Rádio Favela compreenderam que ocupam um território próprio, trocando as táticas pelas estratégias? Todavia, esta pesquisa não possui competência para refletir tal questão, pois são mudanças muito recentes reveladas no final da produção dessa dissertação, por isso não foi possível analisá-las.