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Trajetória social da Rádio Favela Fm

1. Pressupostos teóricos

3.1 Trajetória social da Rádio Favela Fm

A experiência que ganhou notoriedade internacional teve origem no final da década de 70, quando jovens da Vila Nossa Senhora de Fátima, da região Aglomerado da Serra, com cerca de 160 mil habitantes, em 2007, em Belo Horizonte, reapropriavam-se dos movimentos culturais estados-unidenses contra a discriminação racial. O som, a moda e o estilo Black- Power e Black is beautiful invadiam a região (MESQUITA; CALIARI, 2002). Além dos bailes, os jovens tinham poucas outras opções para transitar sua subversão e afirmar sua identidade, muitas dessas em opostos extremos. De um lado, havia as pastorais da Igreja Católica e do outro o ascendente narcotráfico. “A origem da Rádio Favela, segundo seus integrantes, remonta aos eventos de cunho musical e cultural que surgiram como alternativas de lazer em locais próximos do Aglomerado, no final dos anos 70” (SIMÕES; FRANÇA, 2001, p. 2).

O Aglomerado da Serra situa-se na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Próximo de bairros nobres, como Funcionários e São Bento, e do Centro de onde teve origem a cidade, a localidade contrasta com a infra-estrutura de seus vizinhos. Suas vilas, como a de Nossa Senhora da Conceição, Marcola, Cafezal, Novo São Lucas e a Nossa Senhora de Fátima são ocupações de migrantes da zona rural. Possuem precárias condições de moradia. Barracos se amontoam uns aos outros. Não há esgotamento sanitário. São poucas as ligações legais à rede elétrica e à de abastecimento de água. Por essa situação precária, a localidade é denominada de favela.

Esse termo é originário do relato de Euclides da Cunha (2000) sobre a planta favela que cercava o morro onde se situava a comunidade alternativa de Canudos. Assim como o contexto sócio-econômico desse episódio histórico, as favelas do Aglomerado da Serra sofrem com a exclusão e marginalização. O desempregados e a economia informal predominam na localidade. Segundo o senso do IBGE de 2000, 72,39% dos moradores sobrevivem com uma renda familiar inferior a 5 salários mínimos. A localidade possui a menor renda per capita e os maiores índices de violência de Belo Horizonte .

Essa realidade também impõe uma exclusão midiática. Enquanto os bairros vizinhos, São Bento, Centro e Funcionários, concentram a maior parte das emissoras de rádio de Belo Horizonte, até antes da fundação da Rádio Favela, o Aglomerado da Serra – apesar de ter uma população superior a de todos esses bairros – não possuía nenhuma veículo de comunicação radiofônica, nem gráficas, nem emissora de televisão. Segundo o diretor da Rádio Favela, Nerimar Wanderlei Teixeira, essa contradição foi uma das motivações para a criação da emissora. “De nossos barracos víamos as antenas das rádios, escutávamos seu som, mas não podíamos falar, participar nem sequer visitar os estúdios” (Nerimar Teixeira, 2007).

Com o estímulo da paróquia local e da associação de moradores, um grupo, formado inicialmente por 50 jovens, abraçaram então esse sonho de colocar uma rádio na favela. Sua missão era ambiciosa: organizar uma cultura de resistência contra as drogas para barrar o avanço do tráfico e retirar a juventude da marginalidade.

A intenção de criar um espaço para divulgar música e cultura negra, falar da discriminação contra os moradores da favela e conscientizar os jovens da comunidade quanto aos problemas relacionados à violência e às drogas, agravados com a entrada do tráfico que então se instalava naquela local, levaram a que, algumas pessoas ligadas à organização de tais eventos, tomassem a iniciativa de montar também uma rádio (RÁDIO FAVELA, 2006).

Tudo começou com um transmissor caseiro movido à bateria de carro e um toca disco a pilha num cômodo de um barraco de terra batida sem eletricidade. Às 19 horas de 19 de novembro de 1981, entrava no ar Rádio Favela Fm. A emissora logo ganhou notoriedade não só no morro, mas em toda a cidade por dois motivos. Primeiro, ocupava um horário privilegiado. Enquanto todas as rádios eram obrigadas, por lei, a transmitir o programa do Governo Federal “A Voz do Brasil”, a Favela Fm aproveitava-se dessa brecha para emitir sua programação diferenciada. Ao invés de locutores padronizados, conteúdo politicamente favorável às elites e uma plástica pasteurizada, os apresentadores realizavam uma extensão da conversa do povo na rua, uma ampliação do bate-papo crítico sobre a realidade, como explica

um de seus fundadores, Misael (MORAIS, 2003). Isso aproxima a emissora do universo cultural dos ouvintes.

Não custou muito para esse redesenho do rádio, com linguagem diferenciada do padrão comercial, tecnologia improvisada e sem reconhecimento legal, realizar o inesperado: atender à necessidade de comunicação dos moradores da região. Mesmo sem telefone para receber ligação dos ouvintes, e-mail ou recepção para atendimento aos visitantes e ainda com horário reduzido à noite e aos finais de semana, o espírito comunitário da Rádio Favela criou uma rede de informação e solidariedade que, conforme “(...) a voz corrente, resolve em menos de três horas qualquer pendenga de perdidos ou achados” (MESQUITA; CALIARI, 2001) sendo, por isso, considerada por seus locutores como a Internet dos favelados.

Todavia, a reação dos grupos hegemônicos não custou a chegar. A então Delegacia do Ministério das Comunicações (Dentel), a Polícia Federal e até as polícias Civil e Militar deflagraram uma cruzada contra a emissora durante as décadas de 80 e 90. Misael conta que a Polícia chegava com violência, espancando moradores e locutores, prendendo as lideranças comunitárias, destruindo equipamentos e carregando os aparelhos (MORAIS, 2003). Até hoje ele ainda guarda marcas dessa truculência nas cicatrizes em seu corpo. A penúltima investida de repressão, em 1997, “(...) teve ares de operação de guerra: mais de 700 policiais, dois helicópteros e quatro atiradores de elite cercaram o barraco onde a Favela estava instalada, levando todo o pessoal” (MESQUITA; CALIARI, 2001).

As táticas de resistências contavam com o silêncio dos vizinhos, a criação de obstáculos para ação dos policiais e a mudança constante de sede. A emissora ocupou 30 lugares diferentes em 26 anos de existência. Muitas vezes, a chegada dos “pulos da polícia” (como Misael, se refere às blitzs) levava os locutores a fugirem no entrelaçado de barracos da favela com o transmissor debaixo do braço. Somente em 1995, a diretoria da emissora resolveu parar de fugir e ter sede fixa. Um ano depois, eles conquistaram um alvará de funcionamento da Prefeitura de Belo Horizonte. A lei municipal de Rádio Comunitária da capital mineira, mesmo que inconstitucional – pois a Carta Magna brasileira restringe a competência da legislação da radiodifusão à União Federal – levou paz durante quase um ano a Favela Fm.

Além da repressão, a emissora também teve de superar as precariedades de infra- estrutura e a situações de calamidades. Em 1995, por exemplo, o barraco onde funcionava o estúdio foi inundado na época das chuvas. A falta de recursos financeiros dificultava a manutenção e a aquisição de equipamentos. No entanto, o sentimento de pertença dos

moradores da Serra e de admiradores de outras partes criou uma rede de solidariedade e apoio a emissora.