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Rádios livres e comunitárias

1. Pressupostos teóricos

2.4 Mediações tecnológicas

2.5.5 Rádios livres e comunitárias

O tensionamento oposto a essa tendência de formação de grandes conglomerados radiofônicos surge com o fenômeno das rádios livres. Segundo Peruzzo,

A rádio livre é aquela que, numa conjuntura conflitiva ou não-conflitiva, ocupa um espaço no dial dos receptores sem ter recebido a concessão de um canal, sendo, por isso, também conhecida como “clandestina”, “pirata” ou “alternativa”. (...) Em geral, representa uma forma de contestar o sistema de radiodifusão vigente, que priva a maior parte das organizações da sociedade civil do acesso às ondas sonoras. (PERUZZO, 1998, p. 217).

Conforme Gisela Ortrawiano (1985), no Brasil, o sistema de exploração do rádio é misto. As emissoras podem ser controladas tanto ao Estado como à iniciativa privada. Todavia, a propriedade dos canais radiofônicos é da União Federal que, através de concessão, permite a exploração por fundações, no caso das rádios educativas, por empresa, rádios comerciais e, por associações, rádios comunitárias. As estações que não possuem tal autorização, dadas pelo Ministério das Comunicações, depois de outorgadas pelo Congresso Nacional, são consideradas ilegais pelo Estado e denominadas pelos movimentos sociais de rádios livres.

As primeiras experiências contestatórias originam-se, no entanto, na década de 20 do século XX, com movimentos sindicalistas e operários na Áustria, Estados Unidos e Países Baixos. Todavia as rádios mineiras bolivianas, em 1947, ganham a maior repercussão histórica do movimento. O objetivo era o questionamento da oligarquia dominante naquele país e da exploração dos trabalhadores, principalmente da mineração submetidos a condições subumanas. A primeira estação foi a Rádio Sucre, através da iniciativa de professores normalistas e médicos ligados a Federação Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia. Ainda com um uso social diferenciado, no mesmo ano, um grupo de camponeses com apoio da Igreja Católica funda a Rádio Sutaneza, com objetivo de “‘desenvolvimento rural’, o que inclui um amplo projeto de alfabetização à distância” (MATOS, 2006, p. 57). Os mineiros bolivianos chegaram a fundar quase 30 emissoras entre 1957 a 1964 (OLIVEIRA, 2007). Nesta mesma perspectiva política, o movimento revolucionário cubano, liderado por Che Guevara e Fidel Castro, cria em 1959, a Rádio Cuba Rebelde.

Já na Europa, as rádios livres aparecem na década de 60. “A Rádio Caroline, transmitida do mar do Norte, foi a primeira (em 1964) de um conjunto de estações a desafiar as autoridades e transmitir principalmente música popular para a Grã-Bretanha (...)” (BRIGGS; BURKE, 2004, p. 229). A iniciativa contribui para a BBC criar um canal para os estilos musicais antes completamente excluídos de sua programação. Como transmitia um sinal não autorizado pelo governo inglês, as embarcações radiofônicas eram comparadas a barcos piratas. Surge assim a denominação pejorativa de rádio pirata.

Na década de 70, as rádios livres tomam força associada “a movimentos libertários, principalmente na Itália e na França” (ORTRIWANO, 1985, p. 34). A esquerda italiana promove experiências com ênfase na apropriação das emissoras por grupos de bairros, de jovens, de consumidores, de étnicos e de mulheres. O movimento de rádios livres, na França, engaja-se, a partir de 1977, na eleição do socialista François Mitterrand, chegando a funcionar mais de mil emissoras não autorizadas simultaneamente naquele país. Até 1981, as rádios livres tinham vida efêmera, dado a perseguição enfrentada. Após dez tentativas fracassadas, Mitterrand é eleito presidente, e essas emissoras se tornam “especializadas em música jovem, outras ligadas a minorias gays e uma outra parcela identificada com os bairros e comunidades locais” (OLIVEIRA, 2007, p. 63).

No Brasil, estas experiências são impulsionadas na década de 80. De um lado, aparecem as emissoras de serviços de irradiação de som por alto falantes utilizadas

(...) por associações e movimentos que, não podendo operar emissoras convencionais, em razão das limitações impostas pelo sistema de concessão de canais (...) se valem desse instrumento para transmitir programas e satisfazer, assim, algumas de suas necessidades comunicativas (PERUZZO, 2004, p. 159).

De outro lado, jovens e movimentos populares desafiam a legislação

(...) principalmente a partir da divulgação (...) proliferação de ‘rádios piratas’ na cidade paulista de Sorocaba. (...) lá chegaram a existir em operação 42 emissoras clandestinas de FM durante o verão de 82 (ORTRIWANO, 1985, p. 35).

As associações comunitárias, motivadas pela facilidade em montar ou comprar um transmissor, por decisões favoráveis da Justiça Federal e por legislações de radiodifusão em alguns municípios, espalharam emissoras por todo o território nacional na década 90. A repressão, no entanto, lacrou e apreendeu equipamentos, processou e prendeu seus organizadores principalmente após a regulamentação da radiodifusão comunitária através da lei 9.612/98, em 2001.

A comunicóloga brasileira Márcia Vidal Nunes explica que a origem dessas emissoras teve objetivos diferentes:

(...) algumas rádios livres surgiram para apoiar atividades da política, partidária ou sindical; outras transformaram o fato de transmitir o que quer que fosse, de música a relatos íntimos, em gesto de contestação ao monopólio estatal das concessões em radiodifusão; outras pertenciam a amantes do rádio e da música (NUNES in PAIVA, 2007, p. 98)

A experiência pioneira foi a Rádio Paranóica, criada em outubro de 1970 por dois irmãos adolescentes, em Vitória. A ousadia em plena ditadura militar se alastra para Sorocaba, em 1976, com a Rádio Spectro, e para Criciúma, em 1978, com a Rádio Globo. Em

1985, São Paulo já possuía, operando em Freqüência Modulada, as rádios livres Xilik, Totó Ternura, Patrulha, Bruaca, Ilapso, Neblina e Tereza.

As emissoras participantes de movimentos sociais destacaram-se porque “são, na verdade, o canal de expressão para conteúdos que não encontraram representação nos meios de comunicação” (NUNES in PAIVA, 2007, p. 98). Essas originam a denominação rádio comunitária que, posteriormente, foi apropriada por outros diferentes sujeitos sociais. A primeira deste tipo surge, segundo Peruzzo (1998), em Vitória, em 1985, a Rádio Popular de São Pedro, instalada através de alto-falantes. No mesmo ano, em São Paulo, as emissoras Patrulha, Bruaca, Ilapso e Neblina das comunidades, respectivamente, da zona leste, sul, oeste e Garulhos, saem dos alto-falantes para as ondas hertizianas. Em comum, essas rádios tinham uma programação voltada para os problemas dos bairros.

Na modalidade de alto-falante, as experiências se disseminam principalmente, em Fortaleza, com o projeto de rádios comunitárias implantado pela então prefeita Maria Luiza Fontenelle. A pioneira foi a do bairro Jardim Iracema em 1982. Em 1988, eram seis e, no início da década de 90, vinte. Já em Recife, a Rádio Sabiá, no bairro de Guabiraba, foi, em 1984, a primeira comunitária pernambucana.

Conforme Márcia Nunes, outras quatro experiências marcantes na Freqüência Modulada foram a Novo Rumos em Queimados, 1990; a Favela Fm, em Belo Horizonte, 1981; a Mandacaru Fm em Fortaleza, 1993 e a Casa Grande Fm em Nova Olinda, 1998. A primeira proporcionou a convivência de programas de diferentes igrejas que conseguiram diminuir os índices de violência na comunidade. A Favela Fm, objeto desta pesquisa, também se destacou por colaborar com o afastamento dos jovens das drogas e do tráfico, sendo reconhecida, por isso, pela Unesco e pelo Sindicato dos Jornalistas da Alemanha e por conquistar a 3a. maior audiência da capital mineira. Já a Mandacaru Fm caracterizou-se pela vivência cultural através da música para atrair o povo a exercer a cidadania. Marcada pela autogestão das crianças, a Casa Grande Fm conseguiu reforçar a identidade cultural local, a economia solidária e as vivências coletivas.

O movimento de rádios comunitárias agregou na década de 90, além dos movimentos sociais, uma série de emissoras de outros atores entre pequenos empreendedores, cooperativas, grupos políticos, músicos e empresários. O objetivo, segundo Francisco Joaquim, conhecido com Kim, que foi de 1997 a 2000 da diretoria da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), era pressionar o Congresso Nacional para a aprovação da lei das rádios comunitárias. Na oposição, a Associação Brasileira de Rádio e Televisão

(Abert), reunindo as empresas da área, atuava em duas frentes. Uma forte campanha publicitária da Abert acusava, entre 1998 a 2002, as rádios comunitárias de pirataria (atividade ilegal), causadoras de interferências nas comunicações dos serviços públicos (controle aéreo, polícia, bombeiros, ambulâncias), pondo em risco a vida das pessoas. Outra iniciativa da Associação foi um lobby no Congresso Nacional para dificultar o funcionamento das rádios comunitárias legalizadas. Depois de dois anos de tramitação no legislativo, a tão reivindicada lei acabou enfraquecendo o movimento, pois, cedendo ao lobby da Frente Nacional da Radiodifusão (grupo de parlamentares que representa os interesses da Abert), trouxe as seguintes dificuldades:

Limitação de potência das emissoras em 25 watts com raio máximo de atuação de 1 km2; proibição de propaganda nas comunitárias dificultando a manutenção das mesmas; canal único para todo o território nacional provocando em determinados locais a sobreposição de transmissões e impossibilitando mais de uma emissora numa mesma localidade e inexistência de proteção legal contra a interferência de outras emissoras a uma rádio comunitária (COSTA FILHO, 2006, p. 198).

Depois da aprovação e regulamentação da lei, cessaram as medidas judiciais que autorizavam o funcionamento de emissoras sem concessão, e a repressão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e da Polícia Federal se intensificaram, resultando, em 2003, no fechamento de 3.200 emissoras, segundo o site Centro de Mídia Independente.

A perseguição contra as comunitárias é impulsionada não só pela tentativa de manter a concentração dos canais nas mãos de reduzidos grupos políticos e econômicos, mas também pelas inovações destas últimas que ameaçaram as audiências das primeiras. Através das comunitárias, o tom sério e distanciado, predominante na Freqüência Modulada, foi rompido pela proximidade e pela participação de seus receptores. A ruptura levou as comerciais a redesenharem suas programações, incorporando, principalmente no final da década de 90, a descontração e caricatura do popular folclórico.

Com a aprovação da lei 9.612/98, a concessão de rádios comunitárias se tornou moeda corrente de trocas políticas no final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso e no de Luís Inácio Lula da Silva. Conforme uma ampla pesquisa dos comunicólogos brasileiros Cristiano Aguiar e Venício Lima, entre 1999 e 2004, foi instaurado um coronelismo eletrônico de um outro tipo, envolvendo as outorgas de rádios comunitárias. De acordo com a investigação, as associações que concorrem para um canal deste tipo necessitam de um “padrinho político” que determina não só a aprovação do pedido, como sua velocidade de tramitação. Os pesquisadores até descobriram a existência de um sistema de informática no

Ministério das Comunicações, o “Pleitos”, para gerenciar especificamente os pedidos de concessão de rádios comunitárias apadrinhadas por lideranças políticas.

Para os 86 processos apadrinhados por políticos do Partido dos Trabalhadores a média de tempo de tramitação na Presidência da República – Casa Civil/SRI foi de 280 dias. Já para os 184 processos apadrinhados pela base aliada esse tempo foi de 326 dias. E para os 44 de interesse da oposição, o tempo médio de tramitação subiu para 374 dias. (LIMA; AGUIAR, 2007, p. 35)

Os dados colhidos ainda demonstraram que das 2.205 rádios comunitárias integrantes da amostra, 1.106 (50,2%) possuem vínculos políticos com candidatos das últimas eleições, doadores de campanha, ocupantes de direção em diretórios e comissões provisórias municipais ou estaduais de partidos políticos, ocupantes de cargos de 1o e 2o escalões nos poderes executivo e legislativo, familiares de detentores de mandatos eletivos ou familiares de candidatos. Segundo Aguiar e Lima, a utilização política das outorgas acontece em dois níveis:

(...) no municipal, em que as outorgas têm valor no “varejo” da política, com uma importância bastante localizada; e no estadual/federal, no qual se atua no “atacado” por meio da construção de um ambiente comunicacional formado por diversas rádios comunitárias controladas por forças políticas locais que devem o “favor” de sua legalização a um padrinho político. (LIMA; AGUIAR, 2007, p. 49)

Por isso, a comunicóloga Catarina de Oliveira (2007) defende a necessidade de diferenciar as rádios comunitárias das rádios ditas comunitárias. As primeiras possuem uma proposta e um funcionamento organizado por movimentos sociais e culturais que têm uma trajetória própria antes da criação da emissora. Ela, no entanto, afirma não idealizar uma proposta de comunicação comunitária, solidária e integrada sem ambigüidades porque

(...) essas práticas radiofônicas fazem um cruzamento dos processos de mobilização dos movimentos sociais com elementos dos processos de massificação e mundialização da cultura. Essa capacidade de interação entre duas lógicas diversas é que constitui as falas e expressões dos movimentos sociais e culturais populares atuantes nos anos 90-2000. (OLIVEIRA, 2007, p. 68)

Jairo Greisa faz outra diferenciação. Para ele, é preciso separar as rádios comunitárias das rádios comerciais populares. Essas últimas propõe a identidade entre indústria cultural e ouvintes, tentando constituir seus públicos pelo discurso do modo de ser e viver. A rádio comercial popular “(...) não objetivava uma ação pedagógica (como devem objetivar as rádios comunitárias) que promova a socialização política dos segmentos populares. Pelo contrário, ela mesma se apresenta como substituta das benfeitorias do Estado. É uma privativazação do público” (GREISA, 2003, p. 33). Sua atuação promove, por vezes, intervenções de prover

assistência aos necessitados, como alimentação, roupas e remédios. Quando se resumem a isso, podem caracterizar-se de ações paternalistas para alimentar um infindável círculo de dependência dos desfavorecidos.

Num estudo que envolveu rádios livres da Argélia, França e Itália, John Downing identifica as comunitárias como exemplos de mídias radicais que têm quatro características fundamentais. A primeira é a ruptura com o controle hegemônico das informações e opiniões das indústrias culturais. A segunda é a sensibilidade às vozes e aspirações dos excluídos. A terceira configura-se pela independência ao poder estatal e religioso. Por fim, a última característica é seu papel inovador. Na análise dessas emissoras, Downing concluiu que, depois de períodos de mobilização e efervescência pela quebra dos oligopólios da comunicação, essas rádios foram apropriadas por empresas para a exploração comercial.

‘ Em certo sentido, na França como na Itália, os vencedores dessa demorada batalha foram sem dúvida as grandes corporações, que se instalaram em grande estilo no rádio e especialmente na televisão quando a publicidade foi autorizada e a transmissão comercial profissional se tornou regra. (DOWNING, 2002, p. 254).

Downing pondera que “essas arrojadas aventuras radiofônicas não podem ser consideradas nulas e vãs pelo fato de não terem sobrevivido” (DOWNING, 2002, p. 255).

Já Cecília Peruzzo (1998) classifica as rádios comunitárias conforme a atuação dos ouvintes na emissora. Algumas permitem somente a participação nas mensagens (fazendo um pedido musical ou mandando um alô) – o que antes não era muito comum nas FM, estereotipadas de pano de fundo e “viotrolão”. Outras experiências comunitárias possibilitaram os ouvintes a tomar parte na produção ou até nas decisões. Isto não significou necessariamente a construção de um conteúdo subversivo, contestatório ou emancipatório, mas a comunicóloga brasileira lembra que as iniciativas que, de alguma maneira, tornam o povo protagonista podem colaborar para uma ruptura da lógica de dominação e levar a

(...) um longo e articulado processo de tomada de consciência, pelo qual os indivíduos adquirem uma vivência real de sua situação e de seu destino no universo social e político que os rodeia, elaboram e definem uma imagem de seus autênticos interesses e os contrastes, analiticamente, com a ordem social, política e econômica. (UTRIA apud PERUZZO, 1998, p. 146).

Downing concorda com essa idéia. Para ele, os possíveis efeitos desse processos

Implica que cada um tenha a oportunidade de criar suas próprias imagens acerca de si mesmo e do ambiente; que cada um seja capaz de recodificar a própria identidade de acordo com os signos e códigos que escolha, (...) que cada um se torne contador da sua própria história (...); e que cada um reconstrua o retrato pessoal que tem da própria comunidade e da própria cultura; (...) que cada um retire a própria linguagem do seu esconderijo habitual e traga para fora (...). (DOWNING, 2002, p. 89).

Questionar se uma rádio é comunitária ou não é uma análise complexa, porque depende de diversas variáveis que podem mudar, conforme os contextos históricos, culturais, políticos e sócio-econômicos de cada comunidade. Até mesmo a compreensão do que seja comunitário é ambígua.

A definição de comunidade, segundo a comunicóloga brasileira Raquel Recuero, remonta ao clássico Ferdinand Tönies, que conceitua comunidade em oposição à sociedade. A primeira remonta à pureza afetiva dos laços sociais antes da modernização que criou a segunda. A crítica a essa idéia vem do sociólogo Emile Durkheim, para quem diferenciar sociedade de comunidade pela naturalidade das relações sociais é inviável, porque ambas são frutos da mesma evolução natural do homem. Para este último, “a comunidade se desenvolve primeiro e, a segunda, é seu fim derivado” (RECUERO, 2003). Max Weber já faz uma distinção entre ambas a partir do sentimento de situação em comum da primeira. A idéia de “pertença”, conforme o comunicólogo brasileiro Marcos Palácios (1998), que as caracteriza pode então criar tanto comunidades territoriais como virtuais.

Compreende-se então comunidade com base nos laços de identidade cultural e pertença de seus membros e na dinâmica de suas relações sociais, tecidos em torno de territórios geográficos ou informacionais. Desta maneira, o conceito mínimo de rádio comunitária deve levar em contar três aspectos: a existência e atuação do movimento social (mesmo que informalmente) antes e posterior à criação da emissora; um mínimo de participação de ouvintes nas decisões da gestão e da programação; e uma proximidade da emissora com o universo cultural de sua comunidade com objetivos de respeito as diferenças e a melhoria das condições de vida.