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Trajetória do uso social da Internet

1. Pressupostos teóricos

2.4 Mediações tecnológicas

2.4.2 Tecnologia do redesenho

2.4.2.1 Trajetória do uso social da Internet

Assim como a trajetória da microinformática, a história da Internet mostra como as transformações são causadas pelas reapropriações das tecnologias.

É uma lição comprovada da história da tecnologia que os usuários são os principais produtores da tecnologia, adaptando-a a seus novos usos e valores e acabando por transformá-la, como Claude Fischer (1992) demonstrou em sua história do telefone.

Mas há algo especial no caso da Internet. Novos usos da tecnologia, bem como as modificações reais nela introduzidas, são transmitidos de volta ao mundo inteiro, em tempo real. Assim o intervalo entre o processo de aprendizagem pelo uso, é extraordinariamente abreviado, e o resultado é que nos envolvemos num processo de aprendizagem através da produção, num feedback intenso entre a difusão e o aperfeiçoamento da tecnologia (CASTELLS, 2003, p. 232).

Assim um projeto de origem militar, testado por cientistas, tornou-se um incontrolável espaço onde co-habitam contra-cultura, pesquisa, movimentos sociais, relacionamentos pessoais e empreendorismo empresarial. Na Internet, é possível qualquer usuário ser emissor.

Essa situação está condicionada pela capacidade de produção limitada pela competência técnica, cognitiva e cultural do internauta. Longe do ideal de comunicação "todos para todos" de Pierre Lévy, a rede também possui grandes investimentos de industrias culturais e de informática que tentam concentrar os acessos e limitam a participação de seus usuários a feedbacks controlados previamente. Esses espaços, que restringem a enquetes e e- mails o contato com os internautas, são geralmente portais de empresas de conglomerados de mídias televisivas, radiofônicas e impressas ou provedores de serviço da web.

O sociólogo estado-unidense I. Boal denomina essa situação de novo enclosure (cercamento), um controle semelhante ao processo de cercar as terras na Inglaterra feudal que impulsionou a industrialização no século XVII. Há na rede mundial “tendências econômicas, políticas e legislativas que tendem a converter a Internet num veículo comercial como outro qualquer (...)” (FORD; GIL in DOWNING, 2002, p. 269). Os comunicólogos estados- unidenses Tamara Ford e Genève Gil detectam três iniciativas para o enclosure da grande rede: a privatização das telecomunicações, o controle dos direitos autorais e a falta de apoio financeiro a projetos de mídia alternativa on-line. Eles concluem, desta forma, que “a batalha na Internet é um processo contínuo que envolve, de um lado, o controle corporativo e estatal e, de outro, as tentativas de utilizar um determinado meio numa direção crítica e liberazante” (FORD; GIL in DOWNING, 2002, p. 282).

Todavia, a grande rede ainda tem como seus principais impulsionadores as iniciativas às margens desses investimentos. Assim teve origem o maior site de e-mails, o Yahoo; o maior de buscas, o Google, e o maior de vídeos, o YouTube. Os estudantes da Universidade de Standfor, Jerry Yang e David Filo, em 1994, criaram um índice das páginas da web que visitavam todas as tardes num escritório improvisado originando o Yahoo. Dois anos depois, outros dois estudantes da mesma Universidade, Larry Page e Sergey Brin, inventaram um site de busca mais sofisticado que rastreia automaticamente o conteúdo publicado na Internet. Já

YouTube foi criado, em 2005, pelos estudantes Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, com o objetivo de compartilhar vídeos dos internautas que podem publicar e assistir a suas produções pela web.

Esses exemplos mostram que, através do repasse de informação de usuário para usuário, denominado de estratégia viral, é possível ganhar visibilidade e notoriedade na grande rede sem a necessidade de disponibilizar grandes recursos financeiros. Entretanto, essas iniciativas do Yahoo, Google e YouTube se tornaram posteriormente em grandes negócios ou foram incorporados por mega-empresas. Assim, desenrola-se o infindável fluxo de relações sócio-econômicas na grande rede: o protagonismo de anônimos ganha notoriedade e pode tornar-se capital financeiro, abrindo brechas para novas iniciativas anônimas.

Esses processos sociais, na Internet, são experiências que fogem do controle de seus inventores, remontando à própria origem da rede. O projeto do engenheiro elétrico polonês Paul Baran de uma rede descentralizada, sem um único servidor e com protocolos de troca de dados baseados em pacotes, foi desengavetado pelo Departamento de Defesa estado-unidense depois do lançamento, em 1959, do Sputinik, primeiro satélite artificial, por seus rivais na Guerra Fria, a União Soviética. Temendo um ataque que avariasse o Pentágono, centro de comando da defesa dos Estados Unidos em seu território e no mundo, o Governo aprovou a criação do Advanced Research Projects Agency (Arpa). O objetivo do órgão era mobilizar recursos de pesquisas acadêmicas para superar o poderio tecnológico soviético. Um dos projetos se constituiu no desenvolvimento da rede descentralizada e interativa com contribuição de pesquisadores de diversas origens, logo denominada de Arpanet (rede da Arpa) em 1969. Estando testada, essa poderia servir para as comunicações militares, podendo minimizar os efeitos de possíveis investidas contra o centro de comando. Segundo Baran, a intenção era a criação de uma rede de comunicação que sobrevivesse a um ataque nuclear.

O laboratório envolveu, inicialmente, as universidades da Califórnia, em Los Angeles e em Santa Bárbara, e a de Utah. As pesquisas científicas, baseadas no que Castells (2003) chama de tecnomeritocracia, decorreram a partir dos valores de reconhecimento do mérito de uma contribuição para um invento e de compartilhamento de conhecimento para o acúmulo teórico numa área de estudos. Por isso, a Arpanet estava aberta aos Centros de Pesquisa, mas os cientistas também começaram a usá-la para suas comunicações. Assim, em 1983, houve sua primeira divisão, originando a Milnet, somente com objetivos militares. Em seguida, foram criadas duas outras redes: a CSNET, com finalidades só científicas, e a Bitnet, de acadêmicos sem objetivos científicos. A Arpanet passou a atuar com protocolos compatíveis

para acessar todas as outras redes, tornando-se assim conhecida como Internet, a rede entre todas as redes (Inter -net). Isso enfraqueceu a razão de ser de suas concorrentes, que posteriormente foram desativadas. Em 1990, as atividades da agência do Departamento de Defesa na rede foram encerradas, tornando-se a National Science Foundation, a espinha dorsal da Internet. Em 1992, esta foi substituída pela Internet Society, uma organização privada com participação de representantes de dezenas de países em sua gestão e administração que, segundo Tamara Ford e Genève Gil (DOWNING, 2002), possibilitou o controle da rede por corporações empresariais.

A tecnomeritocria, além de criar esse ambiente de compatibilidade na rede, organizou as páginas no World Wide Web (Teia de Alcance Mundial), um aplicativo que dispõe o teor dos sites da Internet por informação e localização em domínios, desenvolvido pelos pesquisadores do Centre Européen poour Recherche Nucleaire. O “www” possibilita facilidade, navegação e melhor interface para os usuários.

A contracultura, apresentando um caráter subversivo das culturas populares, denominada na Internet de Cultura Hacker, também atua na web, liderada por peritos em computação. Sua intervenção acontece, principalmente, através do princípio da partilha de conhecimentos para a construção de fluxos comunicativos e dos usos dos computadores em rede sem restrições e sem barreiras de acesso. Castells denomina este ideal de libertário. O próprio desenvolvimento da Internet foi conseqüência dessa inovação contra-cultural.

(...) uma contracultura de crescimento descontrolado, quase sempre de associação intelectual com os efeitos secundários dos movimentos da década de 1960 em sua versão mais libertária/utópica. Ironicamente, esse método da contracultura (...) viabilizou os meios tecnológicos para qualquer pessoa com conhecimentos tecnológicos (...) (CASTELLS, 1999, p. 87)

Essas atuações, conforme Manoel Castells (2003), foram fundamentais para o crescimento da rede. Através do movimento de programadores que criam e distribuem software com fonte aberta para modificações e aprimoramento e compartilham conhecimentos, construiu-se uma interface de navegabilidade e laços de solidariedade na Internet. Lèvy (1999) complementa:

O crescimento da comunicação baseada na informática foi iniciado por um movimento de jovens metropolitanos cultos que veio à tona no final dos anos 80. Os autores desse movimento exploraram e construíram um espaço de encontro, de compartilhamento e de invenção coletiva (...). Aqueles que fizeram o ciberespaço são em sua maioria anônimos, amadores dedicados a melhorar constantemente as ferramentas de software de comunicação (...). (LÈVY, 1999, p. 126).

Uma das primeiras criações da contracultura que possibilitou o desenvolvimento da rede foi o modem. Aliado aos computadores pessoais, este recurso viabilizou a expansão da Internet pelo mundo. Segundo Castells (1999), em 1977, dois estudantes de Chicago, Ward Chrstensen e Randy Suess, escreveram um programa que permitia a transferência de arquivos entre computadores através do telefone. A finalidade era programar, em conjunto, mesmo estando em locais separados, jogos durante as fortes nevadas do inverno de Chicago. Outras significativas contribuições da Cultura Hacker para o desenvolvimento da rede foram o e- mail, com grande participação de Ray Tomlinson, em 1971; o fórum on-line (chat), criado inicialmente por três universitários, Comsturd, Jon Lusky e Diana Bruce, para conversas instantâneas, em 1979, e o sistema operacional gratuito Linux.

Além dos programadores, os hackers deram origem a outro subgrupo, os crackers, que quebram sigilos na rede, sejam pessoais, sejam de programas ou páginas comerciais que necessitam de pagamento para sua utilização. Mesmo que ilegal, é possível reconhecer sua atuação como uma reação subversiva contra o crescimento da indústria do software e a comercialização de conhecimento na rede, que originalmente era livre e gratuito. Já os cyberpunks, também um subgrupo dos hackers, são ativistas políticos que lutam “para preservar sua liberdade contra a intrusão de quaisquer tipos de poderes, inclusive a tomada de controle de seus provedores de serviço de Internet pelas corporações da mídia” (CASTELLS, 2003, p. 46). Esses grupos tentam redesenhar a grande rede, transformando-a de espaço de pesquisa para local de múltiplos usos.

Tanto a cultura hacker como a tecnomeritocracia têm a fonte aberta e o conhecimento compartilhado como princípios norteadores de suas contribuições para a Internet. Todos os programas criados pelos hackers têm a possibilidade de outros peritos fazerem modificações, corrigindo-os, aperfeiçoando-os, dando novos usos e possibilitando redesenhos e reapropriações. Assim a partilha do conhecimento possibilita diversas contribuições que acumuladas constroem os diversos recursos e espaços da grande rede.

Outras comunidades encontraram na Internet um lugar para a divulgação de seus ideais, a construção de suas identidades e a realização de embates políticos. Castells (1999) cita dois exemplos pioneiros: os zapatistas e o Greenpace. O primeiro, um movimento indígena mexicano, conseguiu evitar seu massacre, quando encurralado pelas tropas do exército, por meio de uma corrente de mensagens eletrônicas enviadas por e-mail que mobilizou governos e entidades do mundo inteiro, entre estes a Organização das Nações Unidas e o Vaticano.

Muitos acontecimentos em Chiapas (território controlado pelos zapatistas) foram reportados quase ao vivo pelas pessoas que estavam presentes e que, do contrário, não teriam nenhum outro meio de fornecer seus relatos em primeira mão para milhares de leitores. Os internautas globais debateram uma série extraordinária de questões omitidas ou deturpadas pela imprensa oficial (...) (FORD; GENÈVE in DOWNING, 2002, p. 301).

Já o grupo de ambientalistas, Greenpace, utiliza suas páginas na Internet para mobilizar seus ativistas em todas as partes do planeta e para dar significado a suas ações.

A rede mundial de computadores, conforme Canclini (2006), passa a conectar as cidades ao mundo. Instantaneamente, o que acontece em qualquer lugar do planeta pode refletir em outro ponto. Esta, de acordo com Martín-Barbero (2004), ativa as relações sociais por possibilitar a realização de negócios, a administração de empreendimentos e o controle de relações. Um novo padrão geográfico torna os territórios pontos de acesso e transmissão definidos pela circulação. O capitalismo cria novas condições de existência através da acumulação flexível e controle de pontos eqüidistantes. A organização vertical do trabalho se desintegra com a multiplicação das sedes, subcontratação, multiplicação de lugares de produção e crescente centralização financeira.

No âmbito político, a Internet, através dos blogs, sites de movimentos sociais, grupos de discussão, e-mail, bate-papo on-line, conferências, murais, troca de arquivos e mecanismos de buscas, possibilita a criação de uma esfera pública global,

(...) um meio pelo qual a política pode tornar-se realmente participativa (...) que oferece, aos indivíduos e coletivos independentes de todo o mundo, a chance de comunicar-se, com suas próprias vozes, com uma audiência internacional de milhões de pessoas (FORD; GIL in DOWNING, 2002, p. 270).

A rede também traz mudanças culturais. “(...) os novos modos de simbolização e ritualização do laço social se acham a cada dia mais entrelaçados às redes comunicacionais e aos fluxos informacionais”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 258). Surgem novas maneiras de como as tecnologias tocam e falam com as pessoas, convertendo objetos em suportes informacionais e tentando converter a realidade em espetáculo. Da mesma forma que a técnica reinventa o mundo através de seu potencial globalizador, os usos mudam radicalmente o significado social de estar conectado à rede. Neste jogo, não só a tecnologia é transformada pelos usos, como também possibilita a construção de novos comportamentos.

Esta pesquisa tem, assim, como pressuposto que seu objeto, as mediações sonoras da Rádio Favela na Internet, situa-se num ambiente onde co-existem as duas diferentes lógicas de produção cultural, apresentadas nos itens 1.3. A Internet é um território sem prévio

controle e sem proprietários pré-estabelecidos, dado sua condição de rede aberta. Assim da mesma maneira que tem espaço para a contra-cultura baseada no conhecimento que se compartilha com toda a comunidade e nas bricolagens que redesenham sua tecnologia – como no caso da Rádio Favela, a rede mundial abriga grandes conglomerados de mídias, empresas software e órgãos públicos. Todavia, não há uma homogeneidade procedimental na Internet: por vezes, os conglomerados e governos usam táticas e recursos da produção contra-cultural, como o compartilhamento de conhecimento em comunidades virtuais, e alguns movimentos sociais se reapropriam da estética homogeneizadora dos veículos comerciais. A diferença freqüente entre a atuação dos movimentos sociais e das empresas na rede é que, enquanto os primeiros buscam conquistar espaços comunicativos de difícil acesso nas mídias impressas e audiovisuais, os segundo encontram, na grande rede, uma ampliação no domínio tendo como principal objetivo o lucro e o controle político.