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3 CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E DA TRANSFOBIA

4.1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

4.1.1 Proibição da Analogia “In Malam Partem”

Haja vista tudo o que fora explicitado supra, levando em consideração o entendimento sobre o princípio da legalidade contraposto ao julgamento do STF, no que toca à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e ao Mandado de Injunção (MI) nº 4733, é indubitável que se deve dar mais atenção a uma das funções do princípio da legalidade. Neste ponto, é de cabal importância salientar que a máxima da reserva legal no Direito Penal, além de ostentar outras funções não menos importantes, tem também como escopo a vedação da utilização da “analogia” para serem criados crimes, fundamentar ou agravar penas. Então, é possível notar que este objetivo do princípio em questão se expressa pelo termo

“nullum crimen nulla poena sine lege scricta”, isto é não há crime, tampouco há reprimenda penal, sem lei estrita para tal.

Neste ponto, de acordo com os ensinamentos de Nilo Batista, sobre o conceito de analogia, é possível ser entendido que é “procedimento lógico pelo qual o espírito passa de uma enunciação singular a outra enunciação singular (tendo, pois, caráter de uma indução imperfeita ou parcial), inferindo a segunda em virtude de sua semelhança com a primeira.”84 No que toca ao âmbito jurídico, a analogia é caracterizada por quando um jurista atribui a um caso em que não há legislação expressa para as suas particularidades, alguma regra ou regras que está ou estão predispostas para a resolução de casos semelhantes ou parecidos.

Desta maneira, é de substancial relevância a hermenêutica principiológica, com fulcro na reserva legal como máxima norteadora, de que não se pode utilizar a analogia no Direito Penal a toda e qualquer norma que defina crimes e comine ou

83 In verbis: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;” (BRASIL, 1988).

84 BATISTA, 2011, p. 72.

agrave reprimendas. Isto com fundamento na posição pacificada da doutrina brasileira de que a “expansão lógica, por qualquer processo, é terminantemente vedada”85, quando esta for atribuir situação ainda mais gravosa à pessoa que está sendo imputada a conduta criminosa.

Quando em contraste desta função da máxima axiológica da legalidade com o julgamento parcialmente procedente da ADO 26 e do MI 4733, é impreterível ressaltar que há eventuais problemáticas, as quais merecem ser discutidas e analisadas. Isto porque a criminalização das condutas homofóbicas e transfóbicas pode ter sido consagrada infringindo pontualmente a proibição do emprego da analogia para tipificar condutas, atribuindo-lhes pena no âmbito do Direito Penal.

Conforme explicações sobre o desdobramento do princípio da legalidade ou princípio da reserva legal, é vedada a adequação típica entre um determinado comportamento e um tipo penal específico, sob argumento de que ambos são meramente “semelhantes”, mesmo em caso que tenha sido vislumbrada a omissão do Poder Legislativo sobre a temática.

Neste ponto, saliente-se que a Lei nº 7.716 de 1989 foi promulgada com a finalidade de definir os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, sendo que, em seu artigo 1º, estabeleceu que “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional."86 Destarte, não há o que se falar sobre o diploma legal ter o escopo de tipificar condutas que venham a ser discriminatórias contra pessoas, em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.

Conforme se analisa detidamente da Lei Antirracismo, esta possui a finalidade de tratar como crime comportamentos preconceituosos em questões étnico-raciais, sendo que, de acordo com Almiro de Sena Soares Filho, estas ações se caracterizam como:

toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades

85 BATISTA, 2011, p. 73.

86 BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de

raça ou de cor. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%207.716%2C%20DE

%205%20DE%20JANEIRO%20DE%201989.&text=Define%20os%20crimes%20resultantes%20de,eu

%20sanciono%20a%20seguinte%20Lei%3A&text=1%C2%BA%20Ser%C3%A3o%20punidos%2C%2 0na%20forma,de%20ra%C3%A7a%20ou%20de%20cor. Acesso em: 22 de abril de 2021.

fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.87

Diante disso, quando criminalizada a homotransfobia pelo Poder Judiciário, através do julgamento da ADO 26 e do MI 4733 pelo Supremo Tribunal Federal, é notável a possibilidade de observação de supostas controvérsias sobre uma, teoricamente, interpretação extensiva por parte dos Magistrados da Corte em questão, no que tange a conceituação de “racismo”. Isto porque, conforme explicado supra, a Lei Antirracismo, a qual possui hipóteses taxativas, não menciona, em todo o seu teor e em momento algum, sobre a discriminação contra pessoas da comunidade LGBT.

Destarte, é imperativo vislumbrar que o Congresso Nacional não realizou processo legislativo, para o fim de que a homotransfobia fosse tipificada e sofresse sanções no âmbito do Direito Penal. Então, é discutível a plausabilidade sobre argumentações de que a maior instância do Poder Judiciário incluiu condutas discriminatórias relacionadas a orientação e identidade de gênero a tipos penais anteriormente consolidados no ordenamento jurídico. Ressalta-se novamente que os tipos em comento são estritamente relacionados às ações contundentes de cunho racista.

Em contrapartida, é imperioso destacar o teor do voto do Ministro Relator Celso de Mello, o qual foi criterioso ao afirmar que não se tratava de formulação de tipos penais, tampouco de sanções neste âmbito. Segundo o Magistrado, é juridicamente inviável, sob o prisma do Direito Constitucional, a Colenda Corte de qual faz parte criar tipos penais e cominar as suas respectivas penas, haja vista que se trata de provimento jurisdicional. Entretanto, fora salientado que restringiu sua hermenêutica, no sentido de que as condutas homofóbicas e transfóbicas sofressem subsunção aos preceitos primários de incriminação predispostos na Lei nº 7.716/1989, a qual é existente no mundo jurídico.88

87 SOARES FILHO, Amiro de Sena. Estudo da Legislação Penal de Combate ao Racismo. MPSP.

Disponível em:

http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/acoes_afirmativas/inc_social_etnicas/Diversos_Ig ualdade_Racial/Estudo_legislacao_penal_combate_racismo.pdf. Acesso em 22 de abril de 2021.

88 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, rel. Min. Celso de Mello, voto do rel. Min. Celso de Mello, j. em 13.06.2019, p. 95. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26votoMCM.pdf. Acesso em 22 de abril de 2020.

Ante o exposto do voto do Relator, o referido entendeu que os comportamentos materializados por atos de homofobia e transfobia são configurados como manifestações categóricas de racismo, os quais estão individualizados no âmbito social, sendo denominados como “racismo social”.

Segundo o Magistrado, a conceituação de racismo, cujo é relacionado direta e evidentemente com manifestação de poder:

permite identificá-lo como instrumento de controle ideológico, de dominação política, de subjugação social e de negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por não integrarem o grupo social dominante nem pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados “outsiders” e degradados, por isso mesmo, à condição de verdadeiros marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa e injusta inferiorização, a uma perversa e profundamente lesiva situação de exclusão do sistema de proteção do Direito. Daí a constatação de que o preconceito e a discriminação resultantes da aversão aos homossexuais e aos demais integrantes do grupo LGBT (típicos componentes de um grupo vulnerável) constituem a própria manifestação – cruel, ofensiva e intolerante – do racismo, por representarem a expressão de sua outra face: o racismo social.89

Sob esta ótica do Ministro Celso de Mello, não haveria o que se discutir sobre eventual emprego de analogia “in malam partem” na criminalização de condutas homotransfóbicas. Isto porque não se estaria estendendo as normas penais incriminadoras contidas na Lei nº 7.716/1989 as formas de comportamento discriminatório contra integrantes da comunidade LGBT. De acordo com o posicionamento do Magistrado, a noção de “raça” não é restrita a características de propriedade rigorosamente fenotípicas, uma vez que se trata de uma construção social, cuja tem a finalidade de fundar a desigualdade, por intermédio de mecanismos que amparem esta forma de hegemonia de alguns sobre uma minoria.

Desta maneira, segundo a inteligência exposta pelo Relator da ADO 26, a Lei Antirracismo pronta e satisfatoriamente prevê as condutas de racismo, através das variadas tipificações que compõem o diploma legal, sendo que, de um conceito amplo desta forma de discriminação, existe o chamado “racismo social”. Então, como a homofobia e transfobia são demarcadas como expressão deste chamado racismo social, seu voto foi no sentido de reconhecer que estes comportamentos

89 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, rel. Min. Celso de Mello, voto do rel. Min. Celso de Mello, j. em 13.06.2019, p. 95. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26votoMCM.pdf. Acesso em 22 de abril de 2020.

discriminatórios contra as pessoas LGBT devem ser criminalizados, não se traduzindo como analogia “in malam partem”.