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O que os fez voltar, permanecer e obter sucesso escolar: o trabalho

No documento Valmir Almeida Passos.pdf (páginas 110-118)

Capítulo IV- Sucesso escolar

4.3. O que os fez voltar, permanecer e obter sucesso escolar: o trabalho

A Educação de Jovens e Adultos é um direito humano fundamental em um mundo em constante transformação, conforme a Declaração de Hamburgo. O desafio que se apresenta aos países é garantir esse direito àqueles que não tiveram a oportunidade de aprender ou não têm acesso à escola. A Declaração de Hamburgo aponta que, em decorrência das transformações ocorridas com a globalização da economia, das mudanças nos padrões de produção, do desemprego crescente e da dificuldade em levar uma vida estável, são necessárias ações políticas trabalhistas mais efetivas e também investimentos em educação (BRASIL, 1998, p. 95).

A intenção é permitir que “[...] homens e mulheres desenvolvam suas habilidades e possam participar do mercado de trabalho e da geração de renda”. Nesse processo de transformações, afirma-se que o desenvolvimento de novas tecnologias nas áreas de informação e comunicação tem trazido a possibilidade de novos tipos de exclusão social para aqueles (indivíduos ou empresas) que não conseguem a elas se adaptar. Assim, “uma das funções da educação de adultos, no futuro, deve ser a de limitar esses riscos de exclusão, de modo que a dimensão humana das sociedades da informação se torne preponderante” (BRASIL, 1998, p. 95).

No relatório que Delors (1999) fez para a UNESCO, conhecido como Relatório Delors27, quando trata da relação entre educação e o mundo do trabalho, ele afirma que a educação

não serve, apenas, para fornecer pessoas qualificadas ao mundo da economia: não se destina ao ser humano enquanto agente econômico, mas enquanto fim último do desenvolvimento”. Fundamentando-se na concepção de educação permanente, idéia essencial de nossos dias, defende que “[...] deve ir além de uma simples adaptação ao emprego, na concepção, mais ampliada, de uma educação ao longo da vida (DELORS, 1999, p. 85).

27 Jacques Delors, economista e político francês e ex-presidente da Comissão Européia,coordenou o relatório para

a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Esse Relatório está publicado em forma de livro no Brasil, com o título Educação: Um Tesouro a Descobrir(UNESCO, MEC, Cortez Editora, São Paulo, 1999)

No Brasil, a Educação de Jovens e Adultos, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – L.D.B.E.N. 9394/96, nos artigos 37 e 38, apresenta-se como uma modalidade de ensino a ser oferecida a todos os cidadãos, potencialmente trabalhadora, constituída por jovens e adultos, que não tiveram acesso à educação em idade própria (SAVIANI, 2003).

Tal acessibilidade teria que atender as etapas do ensino fundamental e médio, assegurando metodologias, currículos e preparação de educadores adequados às múltiplas necessidades dos alunos. A realidade dos alunos que frequentam a EJA é bastante complexa e, ao mesmo tempo, diversa, apresentando características e especificidades que não podem ser desprezadas no cenário educacional. O parecer do Conselho Nacional de Educação – C.N.E. 11/2000, das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos, define esses alunos como:

(...) homens e mulheres, trabalhadores empregados e desempregados ou em busca do primeiro emprego; filhos, pais e mães; moradores urbanos de periferias, favelas e vilas. São sujeitos sociais e culturais marginalizados nas esferas socioeconômicas e educacionais, privados do acesso à cultura letrada e aos bens culturais e sociais, comprometendo uma participação mais ativa no mundo do trabalho, da política e da cultura. (...) Trazem a marca da exclusão social, mas são sujeitos do tempo presente e do tempo futuro, formados pelas memórias que os constituem enquanto seres temporais (...) Muitos nunca foram à escola ou dela tiveram que se afastar, quando crianças, em função da entrada precoce no mercado de trabalho, ou mesmo, por falta de escolas. Jovens e adultos que, quando retornam à escola, o fazem guiados pelo desejo de melhorar de vida ou por exigências ligadas ao mundo do trabalho. São sujeitos de direitos, trabalhadores que participam concretamente da garantia de sobrevivência do grupo familiar ao qual pertencem. (C.N.E., 2000, p.9).

A E.J.A. é uma educação da classe trabalhadora, sobretudo porque representa uma expressiva parcela de indivíduos que, mesmo possuindo as mais diversas experiências e histórias de vida (mulheres, homens, jovens, migrantes, etc.) têm a existência marcada por situações adversas de produção da própria existência e pela entrada precoce no mundo do trabalho e consequentemente o seu afastamento da escolarização.

Tomamos como especificidade a classe trabalhadora, aqui representada pelo grupo alunos da EJA da Escola Estadual Professora Lenita Camargo, foco de nossa pesquisa e que foram inseridos de forma precária no mundo do trabalho com pouca, ou nenhuma, escolarização e, consequentemente, baixa qualificação, que os levaram a empregos precários que não necessitavam de muita escolarização. Vale salientar e não desprezar a quantidade de

saberes que cada um desses alunos-trabalhadores possui em função das atividades que realizam ou realizaram. Saberes, certamente, não-escolares, mas saberes que são muito importantes dentro desse processo de volta aos bancos escolares. Como podemos perceber na fala da professora Maria:

Cada um tinha uma profissão, e no começo tinham vergonha de falar o que fazia. Mas eu e a Cida, sempre preparávamos atividades que falavam destas profissões, pois, queríamos também um resgate e uma valorização desta profissão, e que com o estudo ele poderia mudar de trabalho ou melhorar dentro da sua profissão.

Para compreendermos melhor como o mundo do trabalho dentro de uma sociedade capitalista recebe e define estes sujeitos, recorremos à afirmação de Saviani (apud VENTURA, 2010, p. 08):

O mundo do trabalho constitui o trabalhador como uma marca da sociedade de classes e, em especial, da sociedade capitalista, na qual os possuidores dos meios de produção e seus representantes são considerados detentores do saber científico, enquanto aos vendedores de força de trabalho cabe o saber prático, adquirido na experiência do trabalho precarizado.

Quando criança, ou jovem, a escola não era sua ocupação principal, pois precisavam trabalhar, para seu sustento ou o da família. Por que o mundo do trabalho os fez voltar à escola? Através de alguns depoimentos dos pesquisados encontramos as respostas para esta pergunta. Os sujeitos falam:

Comecei a perceber que boas oportunidades de trabalho eu teria somente teria se voltasse a estudar.Mesmo me achando velha voltei. (Simônica)

Eu procurava emprego e não conseguia porque não tinha terminado nem o ensino fundamental. (Carla)

Eu voltava a estudar ou perderia o emprego. (Aparecida)

A necessidade de aprender mais, ganhar mais, crescer e virar um mestre de obras com estudo e não somente no papel. (Ariovaldo).

Sou cabeleireira e manicure e preciso do estudo para fazer o curso de esteticista. (Aline)

Eu preciso do estudo para ser mecânico profissional. (Leandro)

Não quero ser doméstica minha vida inteira. (Queli)

Através dos depoimentos dos sujeitos analisados nesta pesquisa, percebemos que são trabalhadores que retornaram à escola e acolheram esse desafio em busca de alcançar um novo conhecimento com o intuito de vencer os obstáculos impostos pelas circunstâncias de suas vidas, baseando-se na educação como um bem individual, pois cada um tem o seu conhecimento e, por meio da educação escolar, poderá lapidá-lo e produzi-lo de forma coletiva na sociedade. O maior desafio foi permanecer na escola sem interrupções e construir o novo conhecimento.

A necessidade de aprender mais, ganhar mais, crescer e virar um mestre de obras com estudo e não somente no papel. (Armando)

Minha vida mudou e muito mesmo, porque eu consegui terminar meus estudos e quero aprender mais e tenho uma profissão. (Marcelo)

Com o meu estudo aprendi a fazer de tudo na marcenaria e principalmente as medidas. Quero fazer um curso de marcenaria artística. (Roberval)

Mudou muito porque agora eu posso aliar o conhecimento técnico que tenho com o estudo que alcancei. (Sandro)

Mudou porque hoje eu sei ler e escrever muito bem e fui considerada uma das melhores alunas da classe. Criei meus filhos sozinha e agora posso até deixar de ser doméstica e buscar outra profissão. (Sandro)

A empresa que trabalho se o funcionário termina a oitava série ele tem um aumento, e isto ocorre também quando ele termina o ensino médio. Aumentaram meu salário duas vezes. (Maria Eunice)

Eles pleiteiam, como se pode observar, um emprego digno não somente por questões econômicas, mas também como direito de autonomia pessoal e dignidade. Para eles, o emprego é lugar privilegiado para garantir a sobrevivência e um elemento essencial de sua

localização no espaço social. Eles expressam em suas falas o desejo de um emprego que lhes assegure um ganho e, se possível, lhes permita executar um trabalho em que se reconheçam e que sejam valorizados.

À luz dessas considerações, não podemos negar que a educação é fator estratégico na inserção do mundo do trabalho, principalmente para os jovens e adultos habitantes da periferia, pois eles dão um valor e um novo significado ao novo processo de escolarização e veem nele um papel importante para reduzir as desigualdades sociais, na inserção social e de uma nova reinserção no mundo do trabalho.

O fato de concluir seu processo básico de escolarização (Ensino Fundamental e Médio) garante a esses sujeitos vários direitos, ou seja, a possibilidade de ter melhores ganhos salariais, promoções, novas oportunidades de mudança para empregos mais qualificados, valorização pessoal, etc. É pelo trabalho e por sua realização cotidiana que o trabalhador se reconhece na sociedade, pois essa é uma ação fundante, que transforma as suas condições socioeconômicas.

Quando me separei comecei como lavadora de ônibus e, com a oitava série, fui promovida para cobradora de ônibus. E com o ensino médio, posso concorrer a uma vaga de fiscal. (Regina Mara)

A empresa que trabalho se o funcionário termina a oitava série ele tem um aumento, e isto ocorre também quando ele termina o ensino médio. Aumentaram meu salário duas vezes. (Maria Eunice)

Minha patroa me incentivou muito e, quando eu pensava em desistir, ela me dava um prêmio a cada ano que eu terminava na escola. (Maria de Fátima)

Tenho mais confiança e estou tentado um emprego melhor. As oportunidades estão aparecendo. (Luiz)

Estou desenvolvendo novas funções no meu trabalho, porque auxilio no atendimento e na entrega de mercadorias. (Érica)

Aumentaram meus conhecimentos, fui promovido na construtora e melhorou meu padrão de vida. (Armando)

Mudou muito, porque eu agora sei ler e escrever e consigo preparar alguns pratos mais sofisticados no restaurante onde trabalho.

Conforme Paiva (2000), a educação tem que assegurar o desenvolvimento integral da personalidade e suas potencialidades podendo ser reveladas e desenvolver-se. O ser humano é capaz de transformar um produto em um sentido completo. Todo um universo de necessidade vem à tona nessas condições, ativando o indivíduo em todas as esferas da vida social, inclusive consumo, prazer, criação e cultura. A educação é a mais importante ferramenta para transformação da vida das pessoas, porém não sozinha e nem do jeito ela que vem sendo constituída.

Toda ação educativa é ação humana e a educação não ocorre isolada de outros processos sociais; por isso, a formação principalmente do aluno-trabalhador que pertence a E.J.A. deve ser compreendida como a própria tentativa de mudança e posicionamento do ser social em relação ao

capital. E continua: “É preciso lembrar que nas sociedades capitalistas os trabalhadores são

historicamente destituídos de possibilidades de incorporar-se ao mundo da educação, ou de manter simultaneamente as duas condições: de aluno e trabalhador. A E.J.A. se propõe justamente, a mudar essa situação” (Paiva, 2000, p.150).

Não podemos esquecer que, para mudar o cenário da E.J.A., é importante não apenas escolarizar mecanicamente os alunos-trabalhadores, mas cobrar do Estado que seja cumprida a dívida social que existe para com esses sujeitos. Muitas ações da E.J.A. precisam ser repensadas, principalmente como vêm sendo executadas na escola, pois esses sujeitos merecem e têm o direito de receber uma educação de qualidade. Segundo Ferrari (2001, p. 07), a função da escola para a E.J.A. é:

Cabe à escola conjugar, ao mesmo tempo, os conteúdos do ensino e as disciplinas escolares com o gosto pela verdade, o espírito crítico, a consciência de suas responsabilidades sociais, objetivando a conquista da autonomia da pessoa do jovem e adulto, fortalecendo a postura de cada um e a consciência do grupo enquanto cidadãos e priorizando o respeito por si mesmo e pelos outros.

O retorno à escola é compreendido por vários alunos trabalhadores da E.J.A. como algo importante, pois para eles está claro que a educação escolar é primordial, devido à grande competitividade e à mecanização do mercado de trabalho. No relato de Geraldo, podemos verificar a importância da E.J.A. para estes sujeitos:

Sou motorista de caminhão e precisava do estudo para acompanhar as transformações do meu trabalho.A empresa que trabalho comprou caminhões computadorizados que só faltavam falar e com o estudo estou

conseguindo acompanhar estas modificações e fazer os relatórios das viagens. (Geraldo)

Para Ventura (2010), o mundo do trabalho segue as regras do sistema capitalista, acarretando uma maior competitividade no acesso a um posto de trabalho, o que se torna mais difícil para as pessoas com baixo grau de escolaridade, pois, na grande maioria dos casos, as oportunidades de trabalho são destinadas para atender a funções específicas e que demandam qualificações.

Mileto (2009) afirma que a educação é o instrumento que vai permitir às pessoas buscarem uma melhoria de vida, capacitando-se para competir no mercado de trabalho bem como reconhecer seus direitos.

Para que aumentem as possibilidades individuais de educação, e para que se tornem universais, é necessário que mude o ponto de vista dominante sobre o valor do homem na sociedade, o que só ocorrerá pela mudança de valoração atribuída ao trabalho. Quando o trabalho manual deixar de ser um estigma e se converter em simples diferenciação do trabalho social geral, a educação institucionalizada perderá o caráter de privilégio e será um direito concretamente igual para todos (MILETO, 2009, p.37).

Com o crescimento social, a mudança econômica e o avanço tecnológico, as pessoas se sentem obrigadas a procurar a escola na tentativa de conseguir um emprego na cidade, melhorar seu padrão de vida ou manter-se atualizado (GARCIA, 2004).

As mudanças ocorridas no mercado de trabalho, no entanto, vêm exigindo mais conhecimentos e habilidades das pessoas, assim como atestados de maior escolarização, obrigando-as a voltar à escola básica, como jovem, ou já depois de adultos, para aprender um pouco mais ou para conseguir um diploma.

A demanda por mão de obra mais escolarizada e mais qualificada é uma das exigências da economia mundial que, desde fins da década de 1980, é regida pelo neoliberalismo. Outros fatores considerados pelos estudiosos, como a redução do papel do Estado nas áreas sociais (a educação é um exemplo), a reestruturação do trabalho, o desemprego estrutural e o aumento do emprego informal vieram afetar dramaticamente os setores mais empobrecidos da sociedade. Certamente, os reflexos produzidos a partir da articulação desses fatores mostram-se mais perversos nos países de economia periférica, como é o caso do Brasil, obrigando uma parcela da população a buscar a escolarização como forma de reclassificação social e pessoal”. (LARANJEIRA, 2010, p.10).

Podemos confirmar as palavras de Mileto, Garcia, Laranjeira e Ventura, através das seguintes falas:

Tudo, porque sou uma pessoa melhor e agora tenho oportunidades e portas que se abriram para mim.( Gisele)

Para Santos (2007), um dos maiores desafios que os alunos-trabalhadores encontram é o cansaço, tanto físico quanto mental. Apesar de eles terem dificuldades em conciliar a escola e o trabalho, é possível que possam ver a escola como um espaço de compreensão de conhecimento, e se posicionar frente à exploração do capital, se entendendo enquanto trabalhador e sujeito de sua própria história. Santos (idem) menciona que os alunos da EJA fazem um sacrifício obrigatório e necessário para frequentar a escola depois da jornada de trabalho. No depoimento de Roberval, podemos ter uma noção deste sacrifício:

O esforço e a dedicação da minha esposa e dos meus filhos. Foi uma luta vencer o sono e o cansaço. (Roberval)

O depoimento de Roberval retrata bem a afirmação de Zago (2000, p. 39): “... para permanecer na escola são feitos grandes sacrifícios, pois ser estudante não é um ofício que possa ser exercido sem ônus”. Para Nogueira, Romanelli & Zago (2008), o auxilio da família é muito importante para que os sujeitos possam conciliar as atividades escolares e trabalho, como podemos observar através do seguinte depoimento:

Mudou porque hoje eu sei ler e escrever muito bem e fui considerada uma das melhores alunas da classe. Criei meus filhos sozinha e agora posso até deixar de ser doméstica e buscar outra profissão.(Vanessa)

No relatório preliminar da VI CONFITEA foi definida a importância da Educação de Jovens e Adultos especialmente para as mulheres:

as mulheres que estudam na educação de jovens e adultos trabalham em casa ou fora, trabalham na economia formal e requerem um trabalho decente, sustentável e oportunidades para continuar aprendendo, melhorar suas capacidades, bem como a possibilidade de melhorar suas qualificações para proteger ou promover as oportunidades de ganhar a vida e obter satisfação no trabalho. Elas constituem a maioria dos trabalhadores mal remunerados por seu trabalho. São ativas e em grande número na economia informal, e atualmente estão se transformando em chefes de família. As mulheres são a população prioritária para o desenvolvimento de políticas em torno ao trabalho decente, à previdência social, à educação e ao desenvolvimento. (CONFITEA, 2009, p. 07)

Observamos, nos relatos dos alunos trabalhadores da E.J.A. da Escola Estadual

Professora Lenita Camargo, a grande realização que o processo de escolarização fez e faz em suas vidas e aqui, especialmente, no mundo trabalho.

No documento Valmir Almeida Passos.pdf (páginas 110-118)