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3 PRÁXIS DOCENTE NA RELAÇÃO INSTITUIÇÕES DE

4.1 O récit de vie como projeto (re)inventivo de si na narrativa

embasa-se em Freire (1987), tento em vista o desafio da inquirição como alternativa de quem se propõe a si mesmo como problema. E em determinado momento, ao descobrir seu pouco saber de si, inquieta-se por saber mais. Para Freire (1987), o reconhecimento desse caráter opaco de si é uma das razões dessa procura. Logo, buscando problematizar-se, o sujeito busca responder-se! E suas respostas o levam inevitavelmente a novas perguntas na jornada do conhecimento de si.

Nossa proposta ancora-se também em Pineau e Le Grand (2012, p. 15) na perspectiva de ter a consciência de que “fazer uma vida nunca foi fácil” e “compreendê- la, menos ainda” (PINEAU e Le GRAND, 2012, p. 15). Nesse aspecto, o desafio de narrar-se se intensifica. Os autores afirmam ainda que, “em geral, uma crise é necessária para que o sujeito” tenha “coragem para começar não apenas a dar voz ao ‘eu’, mas a refletir, fazendo-o trabalhar, selecionar e conjugar, na primeira pessoa, as palavras e os momentos herdados” (PINEAU e Le GRAND, 2012, p. 22 – grifo dos autores). Desse modo, é necessário legitimar as escritas pessoais e reconhecer “a dimensão simbólica do ser humano, que precisa se inscrever para ser e construir seu devir” (PINEAU e Le GRAND, 2012, p. 22).

O aspecto autopoético do récit de vie se ancora, ainda, na capacidade humana de ressignificar suas experiências (PASSEGGI, 2011). Desse modo, assumindo a essência autopoiética, somos capazes de nos reinventarmos. Logo, “percorrer os caminhos da

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reflexividade autobiográfica implica alcançar a consciência histórica numa perspectiva de retorno ao vivido para reinvertar-se” (MENDONÇA e PASSEGGI, 2013).

Poder reinventar-se soa como uma proposta extraordinária ou no mínimo uma caminhada compensadora. Esse caminhar que Josso afirma ser ao encontro de si, “visa à descoberta e à compreensão de que viagem e viajante são apenas um” (JOSSO, 2012, p.21). Desse modo, quando o narrador descobre-se protagonista de sua história, busca seus vários “registros62 inscritos na ciência do humano” (JOSSO, 2012, p. 22), busca, ainda, “apreender suas complexas imbricações no centro” da sua “existencialidade”, o que implica dizer que a experiência de caminhar para si envolve os “nossos diferentes modos de estar no mundo, de nos projetarmos nele, e de o fazermos na proporção do desenvolvimento da capacidade, para multiplicar, alargar, aprofundar as nossas sensibilidades para nós mesmos e para o mundo” (JOSSO, 2012, p. 22).

Fazendo uma analogia como a metáfora proposta por Josso (2012) em que, nas narrativas de formação, o sujeito empreende uma viagem na qual ele vai explorar o viajante, no récit de vie o escritor explora o personagem principal da história, mediante um projeto discursivo e artesanal de si, no qual há uma equivalência de identidades entre escritor e personagem, e, assim, estabelece-se a inter-relação entre obra e vida, isto é, escrita e escritor se fundem numa relação simbiótica.

No decurso da composição do récit de vie, presente, passado e futuro são articulados de modo a permitirem a elaboração do “projeto de si por um sujeito que orienta a continuação da sua história com a consciência reforçada dos seus recursos e fragilidades, das suas valorizações e representações, das suas expectativas, dos seus desejos e projetos” (JOSSO, 2012, p. 23). Desse modo, Josso (2012) salienta que esse processo de composição introspectiva deve ser gestado na perspectiva do confronto do olhar do outro; ou seja, num jogo com os efeitos de contraste que essa alteridade pode gerar.

Portanto, o récit de vie, narrador entra em cena para desnudar-se, dar-se a conhecer, “para si colocar a si mesmo sob o olhar do outro” (FOUCAULT, 2006, 150). Trata-se, assim, de uma construção da individualidade na perspectiva de falar de si mesmo para si como falaríamos para os outros.

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Nesse aspecto, Bakhtin (2003) salienta que “a coincidência de pessoas ‘na vida’, entre a pessoa de que se fala e a pessoa que fala, não elimina a distinção existente dentro do todo artístico; e, de fato, pode-se formular a pergunta: como me represento a mim mesmo? Pergunta esta que se distinguirá desta outra: quem sou?)” (BAKHTIN, 2003, p. 165. Grifo do autor). Esse fato implica na questão de que o autor na narrativa é livre e tem soberania sobre como deseja construir a imagem de si na narrativa. É, pois, esse jogo de alteridade que garantirá a maneira como o autor decidirá apresentar a si mesmo. O narrador cumpre, pois, esse papel de representar a si mesmo de acordo com a imagem de si que ele gostaria que figurasse em sua narrativa autobiográfica.

Bakhtin diz que

no que concerne aos elementos chamados autobiográficos dentro de uma obra, eles podem variar ao infinito e relacionar-se seja com a confissão, seja com a exposição prática, puramente objetiva que expõe um ato (ato cognitivo, especulativo, político, prático, etc.), ou, enfim, podem ser líricos; eles só nos apresentam interesse quando são precisamente biográficos, ou seja, quando servem para realizar o valor biográfico (BAKHTIN, 2003, p. 166).

A respeito desse valor biográfico o autor afirma que pode ser compreendido como um princípio organizador na narrativa sob dois vieses, a saber, a “narrativa que conta a vida do outro” e a “narrativa que conta minha própria vida” (BAKHTHIN, 2003, p. 166).

Nesse sentido, o princípio organizador da narrativa autobiográfica e, por conseguinte, do récit de vie como projeto artesal de si, consiste em dar forma ao “que eu mesmo tiver vivido” na perspectiva de que a “narrativa que conta minha própria vida” subjaz “à consciência, à visão, ao discurso, que terei sobre a minha própria vida” (BAKHTIN, 2003, p. 166).

Assim, subjacente a esse jogo dialógico, Bruner (2014) nos diz que repousa a nossa percepção de singularidade, que parte da maneira de como nos distinguimos dos outros. E essa distinção é feita a partir da comparação do nosso relato sobre nós em relação ao relato do outro sobre si (mesmo). Se falar de nós para nós mesmos não é tarefa fácil, também não o é falar de nós para o outro. Essa ação discursiva - quer seja de natureza autodialógica (eu – consigo mesmo), quer seja dialógica (eu – outro) - de contarmos sobre si, passa pela nossa ponderação a respeito de como o outro gostaria que nós fóssemos (BRUNER, 2014).

Bakhtin (2003, p.116) explicita ainda que o autor da biografia é o outro possível, ou seja, esse outro, “cujo domínio sobre mim na vida admito com a maior boa vontade, que se encontra ao meu lado quando me olho no espelho, quando sonho com a glória, quando reconstruo uma vida exterior para mim”; esse outro possível é o mesmo que o autor afirma penetrar a nossa consciência e, com, frequência, governa nossa conduta, nosso juízo de valor, e

“na visão que tenho de mim, é o outro instalado em minha consciência, com quem minha vida exterior pode conservar uma suficiente maleabilidade (a vida interior - sobre a qual o domínio do outro exerce sua tensão tornou-se, claro, impossível, e é aí que é travado o combate contra o outro, para libertar o meu eu-para-mim em toda a sua pureza) (BAHKTIN, 2003, p. 166,167).

Nessa perspectiva, Tezza (1995, s.p.) afirma que para Bakhthin, o autor-criador é, pois, a consciência de uma consciência, ou seja, “uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo”. Logo, o autor-criador apresenta mais conhecimento que seu heroi. Nesse aspecto, instaura-se um princípio básico da visão de mundo de Bakhtin: a exotopia, que pode ser simplificadamente definida como

o fato de que só um outro pode nos dar acabamento, assim como só nós podemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós, daqui onde estamos, temos sempre apenas um horizonte; estamos na fronteira do mundo que vivemos - e só o outro pode nos dar um ambiente, completar o que desgraçadamente falta ao nosso próprio olhar (TEZZA, 1995, s.p.).

Isso ratifica, segundo Tezza (1995, s.p), que no universo bakhthiniano nenhuma voz se apresenta sozinha, uma vez que estamos inevitavelmente influenciados uns pelos outros. A natureza da linguagem é, portanto, “inelutavelmente dupla”.

Posto isto, Bakhthin (2003) afirma que esse outro não entra em conflito com o eu-pra-mim, uma vez que no plano dos valores, nós continuamos a ser solidários com o mundo dos outros, porque nós nos percebemos dentro de uma coletividade (nossa família, nosso país, cultura universal), nesse aspecto, o autor afirma que

enquanto minha vida participa dos valores que compartilho com os outros, está inserida num mundo que compartilho com os outros, essa vida é pensada, estruturada, organizada no plano da possível consciência que o outro terá dela, percebida e estruturada como a possível narrativa que o outro poderia fazer dela dirigida a outros (descendentes); a consciência do possível narrador e o contexto de valores desse narrador organizarão meu ato, meu pensamento e meu sentimento quando estes participarem do mundo dos outros; cada um dos aspectos da minha vida poderá ser percebido no todo da narrativa

(da história relatada dessa vida, e que pode encontrar-se em todas as bocas); a contemplação da minha própria vida não é mais que a antecipação da recordação que essa vida deixará na memória dos outros (BAKHTIN, 2003, p. 167).

As relações dialógicas ocupam, dessa forma, na obra de Bakhthin um valor considerável. Desse modo, as produções de sentidos subjazem às relações nas quais o homem interroga-se a si mesmo e são constituídas nesse mundo da alteridade que, segundo Bakhthin, é ocupado tanto pelo autor quanto pelo leitor. Assim explicita o autor:

O desígnio biográfico conta com a intimidade de um leitor que participe do mesmo mundo da alteridade; esse leitor ocupa a posição do autor. O leitor crítico percebe a biografia como material quase bruto suscetível de receber a forma e o acabamento artístico. Tal percepção compensa a lacunosidade das posições do autor e pode levar à exotopia completa, introduzindo na obra elementos que lhes são transcendentes e lhe asseguram o acabamento (BAKHTHIN, 2003, p. 180).

A respeito da relação autor-leitor, Teza (1995, s.p) afirma que “o autor é parte integrante do objeto estético. Mais heresia ainda: o espectador também o é”. Imbricada, pois, nessa relação autor-leitor, temos o conceito de exotopia proposto pelo autor. Desse modo, numa declaração clara de valoração das relações de produção de sentido dialógicas e também de ratificação da constituição da exotopia, Bakhthin afirma que

do ponto de vista da produtividade efetiva do acontecimento, quando somos dois, o que importa não é o fato de que, além de mim, haja mais outro homem, semelhante a mim (dois homens), e sim que, para mim, ele seja o outro; é nisso que sua simpatia por minha vida não é nossa fusão num único ser, não é uma duplicação numérica da minha vida, e sim um enriquecimento do acontecimento da minha vida, pois ele a vive de uma nova forma, numa nova categoria de valores – como vida de outro que é percebida diferentemente e recebe uma razão de ser diferente da sua própria. A produtividade do acontecimento não consiste na fusão de todos em um, mas na exploração da exotopia que permite à pessoa situar-se num lugar que é a única a poder ocupar fora dos outros (BAKHTHIN, 2003, p. 103).

No entanto, mais que conceito espacial, a exotopia, que compreende a instância do olhar, é também um conceito temporal. Por conseguinte, o autor-criador está à frente (espacialmente de fora) e temporalmente (mais tarde) que o heroi. Desse modo, é esse excedente de visão (tanto do espaço, quanto no tempo), “que dá sentido estético à consciência do outro, dá-lhe forma e acabamento, uma forma e um acabamento que jamais podemos ter por conta própria, na estrita solidão de nossa voz” (TEZZA, 1995, s.p). E essa peculiaridade na narrativa permite, ademais, ao autor-criador (BAKHTIN,

2003) engendrar na tessitura da intriga narrativa (RICOEUR, 1994), um fiador capaz de elaborar estratégias discursivas plausíveis de modo que ele possa barganhar a adesão do seu interlocutor no sentido argumentativo que subjaz a construção do ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2011).

É nesse sentido que narrar uma vida não equivale a simplesmente biografá-la, ou seja, trata-se menos de inventariar os fatos vividos e mais identificar os fatos decisivos para a orientação de uma existência profissional (LERAY, 2008, p. 48). Logo, ao compor seu récit de vie, mais que elencar uma série de fatos que lhe pareçam pertinentes relatar sobre tecnologias, o(a) professor(a)-autor(a) compõe sua história, sob a perspectiva da autoconstrução artesal da imagem si e das inter-relações estabelecidas no âmbito da incorporação das novas tecnologias.

De acordo com Leray (2008, p. 45), na medida em que o sujeito-autor organiza a sua própria história de vida, ao mesmo tempo singular e coletiva, ele reconhece quem ele é. Desse modo, a imagem de si revelada na narrativa tecnoautobiográfica é fruto de uma reflexão do(a) professor(a)-autor(a)-personagem sobre ele/ela mesmo(a), ou seja, o récit de vie do(a) professor(a) é um aparato discursivo em que “o sujeito toma a si mesmo como objeto de reflexão” (PASSEGGI, 2011, p. 01).

Refletir sobre sua nova realidade de trabalho, ponderar o discurso tecnopedagógico são atitudes essenciais nessa nova realidade e ajudam o(a) professor(a) a construir a consciência histórica de si e de sua busca de formação. O escrever sobre si faz, pois, desnudar características e posicionamentos relevantes para uma práxis consciente e para seu autoconhecimento como profissional, além de fazer emergir a imagem de si em sua narrativa levará, inevitavelmente, a compartilhar seus anseios, dúvidas e expectativas. E assim, oportunizar para si próprio a possibilidade de (re)construir sua prática, mediante sua ação reflexiva.