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6. Análise da narrativa

6.1. Rede temática e encadeamento de plots

Um esquema de plot é nada mais que uma estrutura narrativa mínima que segue a estrutura genérica de um evento, portanto, ele constitui o bloco mais básico para a construção de uma narrativa complexa. A partir das pistas linguísticas, podemos extrair indicações sobre a estrutura temática (redes de motifs), o uso de teorias populares e a introdução de plots como mecanismos de inferência. Os motifs são essenciais para a construção de sentido na narrativa, pois os conceitos que eles expressam evocam frames que facilitam a contextualização dos eventos. Os

motifs compõem uma rede temática que restringe as possibilidades de inferência, auxiliando na

compreensão. Além disso, essa rede auxilia na identificação da categoria da narrativa, tanto de forma ampla como também no nível do plot. Em nosso corpus, por exemplo, é a rede de motifs que gera associação temática à fantasia medieval, que informa, por sua vez, as possibilidades da narrativa como um todo, enquanto os temas utilizados em plots específicos auxiliam inferências mais localizadas. Finalmente, encontramos situações nas quais não estamos equipados com o conhecimento prévio necessário para fazer inferências precisas sobre algum elemento narrativo e também não podemos recorrer ao lugar-comum dos motifs para preencher essas lacunas. Neste caso, apelamos para a nossa intuição para preencher as lacunas, chamamos a esse conhecimento intuitivo teorias populares (LAKOFF & NARAYANAN, 2010). Começamos a análise com o Bloco A, no qual o Narrador introduz a narrativa:

[18:10]

[Narrador]: como eu ia dizendo... vocês começaram lá em NeverwinterItem_I... só pra dar uma acelerada... porque eu acho que [Jogador A] não escutou essa parte... vocês começaram lá em Neverwinter... teve um... um anão famoso aí... que tem mais dois irmãos... chamado Gundrin... Rockseeker... contratou vocês praItem_II... levar uma... carruagem... ah::... uma carruagenzinha...com alguns vários mantimentos... comida... picareta...tudo mais... que dá a impressão que né... é alguma coisa que ele vai usar pra.. alguma jornada aí... mineração algo do tipoItem_III... e ele vai seguir com outr/ com esse outro guerreiro humano aí... o Sildar...em direção a Phandalin que tá marcado em roxo aí... e::... ele vai na frente... como vocês vão um pouco mais devagar... ele pediu pra vocês encontrarem lá... e qualquer coisa se não encontrasse ele na cidade entregar::... essa carruagenzinha aí... que eu... num tô sabendo a palavra em portuguêsItem_IV... num lugar chamado::... Barthen’s Provision

[Jogador C]: a quem?

[Narrador]: é um lugar que... é um lugar que... tipo um mercadinho... que tem nessa cidade de Phandalin... [Jogador C]: sim... mas pra quem? vou chegar lá dizer e dizer... “ó, carruagem”?

[Narrador]: você pergunta “cadê...cadê o Barthen?”... é... deixa::...’

Bloco A – Narração de abertura do jogo

O Bloco A apresenta aos jogadores o estado inicial da narrativa, fornecendo várias indicações que os permitirão realizar inferências sobre a história. Um aspecto que chama a atenção é a ausência de uma apresentação dos protagonistas – os personagens dos jogadores – nesse momento e, de fato, durante todo o trecho de narrativa que compõe essa sessão, como seria típico de uma narrativa. Isso se deve ao fato de que os protagonistas são criados pelos jogadores e, portanto, conhecidos por eles. O narrador omite informações conhecidas pelos jogadores, pois eles são tipicamente os únicos interlocutores. De fato, como veremos nos blocos subsequentes, os jogadores possuem mais informações sobre os protagonistas que o próprio narrador.

compreensão. Dungeons & Dragons deve muito de seus tropos à influência de Tolkien19 e suas obras de fantasia. Os arquétipos usados para as raças e classes dos personagens remetem diretamente às criatura e personagens de livros como O Senhor dos Anéis e o Silmarillion, ao ponto de que os criadores do jogo tiveram que mudar o nome da raça Hobbit para Halflling para evitar problemas legais (COVER, 2010). Logo, a estrutura de motifs desse jogo é fortemente influenciada por essas obras, que se apoiam no folclore europeu. Por exemplo, jogadores experientes podem inferir um pouco sobre o personagem Gundrin Rockseeker, apresentado no Bloco A, ao saber que ele é um anão. O Player’s Handbook (doravante, Livro do Jogador) possui uma descrição que detalha essa raça de maneira geral, servindo como modelo para o anão típico no jogo. O mesmo é verdade para as classes dos personagens (WIZARDS, 2014). Assim, ao dizer que Sildar é um guerreiro, o narrador está oferecendo uma imagem que pode ser usada como suporte para inferência até que o personagem seja desenvolvido. Além disso, o narrador, ao descrever os conteúdos da carroça que os personagens dos jogadores devem escoltar, associa picaretas a mineração. Dois fatores estão vinculados a essa associação.

Primeiro, existe o motif na mídia ocidental do minerador com uma picareta que associa o instrumento ao trabalho em mineração, de maneira que a menção de uma picareta (Item_III, no Bloco A) em contexto recupera a mineração por metonímia, ou seja, a recorrência desses elementos em contexto ativa um frame MINERAÇÃO (Ver Figura 3). Segundo, há uma teoria popular de como o trabalho de mineração funciona associada a esse motif, isto é, uma noção de que o trabalho do minerador envolve extrair o minério com picaretas, sobretudo quando é considerada a tecnologia medieval do universo narrativo no contexto de nosso corpus. Adicionalmente, desde as histórias de Tolkien, a raça dos anões tende a estar associada à mineração, devido à proeminência das minas de Moria no romance O Senhor dos Anéis. D&D segue esse tropo e seus “anões são conhecidos como guerreiros, mineradores e trabalhadores da pedra e do metal ”20 (WIZARDS, 2014, p. 18). Este é apenas um exemplo de como a estrutura temática formada pelos motifs fornece apoio para a compreensão das informações contextualizadas. Outras informações encontradas no Livro do Jogador podem ser concebidas como motifs. Por exemplo, assim como os anões, existem outras Raças descritas no livro, cada descrição fornece um arquétipo para aquela raça. Da mesma forma, as Classes dos personagens consistem em arquétipos das capacidades de um personagem. Podemos considerar, então, que a sistematização dos elementos narrativos de D&D em regras fornece uma listagem indexada dos conceitos convencionais desse domínio, como o índice Thompson fez para os contos de fada. Logo, uma descrição econômica como “elfo mago” ou “anão guerreiro” fornece uma grande quantidade de informação a um jogador que possui experiência com o RPG.

19 J. R. R. Tolkien foi um escritor inglês, que escreveu a saga O Senhor dos Anéis e outros romances de fantasia. Sua obra foi a principal influência para os mundos de D&D (WIZARDS, 2015).

Figura 3 – Imagens encontradas pesquisando o termo “minerador” no google21. Note que a extensão metafórica MINERADOR_DE_BITCOIN mantém a metonímia da picareta

Fonte: Busca por “minerador” no Google, 25/05/2018.

Além dos conceitos mínimos como os motifs, também há a ativação de outros frames mais elaborados por elementos linguísticos. Por exemplo, o universo no qual a narrativa se passa é detalhado na publicação Forgotten Realms. Logo, o universo narrativo em nosso corpus permite que os jogadores tirem proveito de seu conhecimento prévio desse universo na compreensão. “Neverwinter” (Item_I, Bloco A) é uma cidade nesse universo. Mesmo se supormos que os jogadores são completamente leigos em relação ao material do jogo, durante a interação no trecho do Bloco A a imagem de um mapa (Figura 4), onde Neverwinter está marcada, é exibida na plataforma, de forma que todos os jogadores podem vê-la. Logo, os jogadores entendem minimamente que Neverwinter é uma CIDADE, e talvez possuam um frame mais detalhado com base em seu conhecimento prévio (uma cidade grande, na Costa da Espada, em Faerûn etc.).

Figura 4 – Mapa da Costa da Espada exibido durante a sessão.

21 https://www.google.com.br/search?q=minerador&client=opera&hs=ryT&source=lnms&tbm=isch&sa=X- &ved=0ahUKEwjOpNy8ka7bAhUChpAKHcrjAWcQ_AUICigB&biw=1878&bih=968, pesquisa em: 30/05/2018.

Fonte: Vídeo do corpus. https://www.youtube.com/watch?v=fOwDm3-MdOs: Acesso em: 27/03/2017.

O que diferencia um motif como ANÃO de um frame CIDADE e de um frame NEVERWINTER? O motif é um arquétipo genérico recorrente em várias narrativas semelhantes, isto é, dado o contexto de uma narrativa de fantasia baseada na obra de Tolkien, o conceito ANÃO assume propriedades específicas desse tipo de literatura. O frame CIDADE é um frame conceptual básico construído pela experiência corporificada, ou seja, uma categoria que permite identificar certos tipos de espaço como equivalentes com base em invariâncias identificadas durante a vida. NEVERWINTER, por sua vez, é um frame de domínio específico, modelado sobre frames mais básicos, CIDADE sendo o mais evidente. O conceito NEVERWINTER tem origem em um tipo de literatura, assim como o motif ANÃO. No entanto, NEVERWINTER está restrito a um grupo de obras proprietárias, enquanto o motif é uma convenção narrativa22. Isto é, um motif é um elemento tradicional que se comporta de forma semelhante a um frame conceptual, mas sua construção se deve primariamente à experiência cultural.

Apesar da distinção ser tênue, separar o motif como categoria analítica é útil na análise de narrativas por vários motivos. Primeiro, eles possuem um papel muito específico na construção de sentido da narrativa, facilitar o processo de inferência pela familiaridade. Segundo, seu processo de construção é único e eminentemente narrativo, se aceitarmos os motifs como um elemento de sentido básico da narrativa, seria interessante examinar de forma mais sistemática como os vários tipos de narrativa geram as bases para seus temas. Terceiro, se separarmos 22 O seguinte exercício ilustra a distinção: A cidade de Neverwinter aparece apenas em materiais de Forgotten Realms, propriedade intelectual da Wizards of the Coast. Anões nos moldes de D&D, no entanto, aparecem em vários outros RPGs, como Shadowrun, Rifts, Savage Worlds, GURPS etc. Isto é, anões são uma convenção literária empregada por vários autores e, portanto, podem ser entendidos como Motifs.

os frames formados na experiência corpórea dos frames formados pela tradição literária, podemos, em trabalhos futuros, desenvolver métodos de análise que nos permitam analisar como eles interagem entre si para formar redes temáticas, de forma a ver qual o papel da experiência corporificada universal vs. os aspectos culturais na construção de uma tradição narrativa. Devemos ressaltar que essa distinção é meramente didática, realçando quais tipos de experiência informam uma dada conceptualização (ver Tabela 1).

Frame Tipo de conceito Nível de análise Tipo de experiência

ANÃO motif Cultural Contato com convenções literárias ou de mídia, pela leitura ou

experiência social. CIDADE frame conceptual básico Cotidiano Experiência de viver em, ouvir

falar sobre ou ser informado sobre algo

NERVERWINTER frame de domínio específico

Domínio específico (D&D, Forgotten

Realms)

Contato com publicações específicas do cenário Forgotten

Realms de D&D, em romances, livros de D&D ou experiência

social específica.

Tabela 2 – Tipos de frame em jogo e seus aspectos analíticos. Fonte: Elaborado pelo autor. Continuando no Bloco A, já podemos identificar uma outra característica peculiar dessa narrativa. A narração adota a perspectiva do grupo dos personagens, pois eles são as entidades em torno das quais os eventos da narrativa se desenrolam. Isso faz com que tenhamos uma predominância de uma narrativa em segunda pessoa por parte do narrador. As implicações cognitivas desse tipo de narrativa são desconhecidas, mas estudos sugerem que a perspectiva expressa pela informação linguística tem efeitos na compreensão, alterando efeitos de corporificação e interferindo no nível de imersão (BEVERIDGE & PICKERING, 2013; HARTUNG et al., 2016). No nível da linguagem, essa característica gera uma dinâmica peculiar em nosso corpus, que se torna mais evidente nos Blocos B e C. O narrador adota predominantemente uma perspectiva da segunda pessoa, enquanto os jogadores, quando narram as ações de seus personagens, adotam predominantemente a primeira pessoa. Isto é, temos uma relação de identidade entre o jogador e seu personagem, tal que o jogador se refere a seu personagem como a si mesmo e o narrador se referes aos personagens como se refere a seus interlocutores. Os dois espaços mentais (FAUCONNIER, 1985), o da situação da interação no mundo real e o da narrativa, têm dois elementos mesclados por uma relação de identidade.

Temos quatro personagens não focais: Gundrin, seus dois irmãos e Sildar. A narração passa por dois deles: Gundrin e Sildar. Gundrin é posto em evidência quando o narrador diz que ele tem dois irmãos e que ele é famoso. Quanto a Sildar, ele é focalizado quando é dito que é

um humano e que é guerreiro. Nos dois casos, não se trata de uma mudança da perspectiva da narração, a perspectiva da narrativa continua centrada no grupo dos personagens dos jogadores e adota sua perspectiva, mas o narrador põe esses dois personagens em evidência ao discorrer sobre eles. Como dito antes, descrições como “humano guerreiro” têm grandes ramificações na compreensão. Mesmo na ausência de outras informações, os jogadores podem fazer várias inferências com base na temática do jogo. Por exemplo, no nível narrativo, humanos são a raça mais prevalente no mundo de Forgotten Realms, Neverwinter é uma cidade predominantemente humana com liderança humana; no nível mecânico, humanos são a raça mais versátil, podendo escolher onde aplicar seus bônus, guerreiros têm talentos associados a controle do campo de batalha e ganham ataques extras, e assim por diante.

Finalmente, a passagem no Bloco A também é o primeiro momento onde ocorre o surgimento de plots. A missão atribuída aos personagens dos jogadores pelo personagem Gundrin ativa um esquema de plot ESCOLTA. O plot contém minimamente um ponto de partida, um destino, um percurso, um obstáculo e um objeto (ou pessoa) a ser guardado. Podemos associar um

plot a um frame-roteiro, isto é, uma sequência de ações rotinizadas compreendidas como um

evento maior. Propomos, no entanto, uma diferença entre um frame-roteiro e um plot em uma narrativa, refletindo a observação de Schank e Abelson sobre scripts (1975). Um roteiro surge da compreensão das invariâncias gerais que constituem um evento. Os eventos internos de um roteiro – ou seja, os frames que o constituem - são compreendidos, mas o roteiro é resultado de uma abstração que permite o emprego de toda a sequência como um todo. Por exemplo, dizer “fui ao restaurante” permite comunicar todos os passos do roteiro, encapsulando-o em uma construção. O plot, por sua vez, utiliza a compreensão da sequência como suporte para inferências, para em seguida destacar um ou mais eventos do roteiro que se desenrolam de maneira não ortodoxa. Dessa forma, o roteiro ESCOLTA se distingue do plot pela ausência de um conflito que desvie os eventos de seu curso habitual. Frames-roteiro podem ser usados em narrativas de maneira direta, como por exemplo, no Bloco A, na passagem “Gundrin... Rockseeker... contratou vocês” (Item_II, Bloco A) todo o processo de contratação foi encapsulado pela construção transitiva (X age sobre Y). Como veremos adiante, o esquema de plot ESCOLTA é estruturado por um frame-roteiro que serve de base para os eventos narrativos que seguem, conduzindo a um momento de maior focalização onde ocorre um evento que quebra a sequência do roteiro (os jogadores encontram os resultados de um ataque). Uma interrupção do roteiro pode, por sua vez, tornar-se habitual, de forma que a aproximação em um evento do frame-roteiro já pode levar a inferências, como veremos no Bloco B.

Um esquema de plot está associado a um frame-roteiro, que encapsula vários esquemas de ação, que, por sua vez, são constituídos por esquemas imagéticos. Essa estrutura é de grande auxilio para a realização de inferências. Ao acionar o esquema de plot ESCOLTA, os jogadores já ativam toda estrutura que subjaz esse esquema de plot – um esquema de ação ESCOLTA, que

envolve um esquema-i ORIGEM-CAMINHO-META, um OBJETO DA ESCOLTA etc. – de forma a fazer inferências e antecipar alguns aspectos da narrativa. No trecho, o Jogador C e o Narrador têm uma troca, pois o jogador não acha satisfatória a informação provida pelo narrador. Podemos identificar pela discussão que o jogador identificou que o OBJETO DA ESCOLTA é uma coisa (pode-se escoltar uma pessoa), que deve ser entregue a alguém. Ele busca então preencher o RECIPIENTE do objeto com um elemento específico. Se examinarmos o trecho de forma mais extensa no corpus, vemos que os outros jogadores não tiveram a mesma dúvida. Isso sugere que, mesmo que os mecanismos cognitivos sejam os mesmos, a execução dos processos é individual. Cabe ressaltar neste momento que, em relação à narrativa, motifs e esquemas de

plot são estruturas convencionais. Esses elementos convencionais são relativamente genéricos

e, portanto, dotados de uma carga semântica mais ampla. Desta forma, elementos particulares à narrativa sendo processada – isto é, produzida ou compreendida – preenchem as lacunas desses elementos convencionais. Como dito antes, saber que Gundrin é um anão oferece uma série de características que provêm do cânone de D&D. No curso do jogo, os acontecimentos específicos que o narrador descreve no desenrolar da narrativa podem dar uma coloração única a esse personagem. Da mesma maneira, os jogadores constroem seus personagens pela seleção de motifs, que serve de base convencional para o personagem único que será construído durante a narração. Essa base convencional é integrada segundo as restrições que o modelo situacional impõe, tornando o estado do conceito específico ao contexto.

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