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Reflexão no papel de cuidadora acompanhando o marido até à morte

I. Sofrimento expresso em choro, tristeza, saudade e dor, perda de motivação, de sentido de vida, pessimismo, isolamento e solidão

2. Reflexão no papel de cuidadora acompanhando o marido até à morte

Em primeira instância, a mulher idosa, apresenta pensamentos relacionados com a certeza de ter feito tudo o que podia (e não podia) nos cuidados ao marido, reconhecendo

exaustão e um esforço sobre-humano, dado o impacto do próprio envelhecimento na sua saúde e nas suas capacidades, como referem os autores preocupados com o cuidar e o luto como comprometedores de um envelhecimento saudável (Bermejo & Santamaría, 2011; Carr, et al., 2006; Davies & Higginson, 2004a; Doyle & Jeffrey, 2000; Ferreira, 2009; Figueiredo, 2007; Guarda et al. 2010; Hansson & Stroebe, 2007; Hudson et al., 2012; Lopata, 1996; Márquez González & Losada Baltar, 2009; Schulz & Beach, 1999; Sheldon, 1997).

N4, mulher gravemente doente (situação oncológica) já na altura em que cuidava do marido, afirma: “(…) tive de me esquecer de mim (…) fui vê-lo sempre (…) foram uns anos de muito, muito desgaste, mas sempre tentei fazer o meu melhor, e isso deixa-me bem comigo mesma…porque eu não sabia fazer melhor do que aquilo que fiz…”

N5 também partilha a sua experiência: “ (…) Alguém me deu força para lhe pegar… (chora) força para tudo…eu pegava nele para lhe dar banho, para o por a fazer chichi e tudo, e ele assim, “Ai, tu não vais aguentar, não vais aguentar”, “Aguento deixa-te estar sossegadinho” (…) eu já não dormia, estava a toda a hora, quando se tem um doente numa fase daquelas (…) há sempre uma coisa, não venham…a mais, e eu nem nunca me queixei nem nunca me custou nada fazer isso! (Chora)”.

Este brio no cuidar, de alguma forma cultural e religioso (Ferreira, 2009; Figueiredo, 2007) aparece relacionado com a noção de cumprir perfeitamente a sua função de esposa, fazer tudo o que fosse possível fazer e até ao fim da sua vida, como forma de garantir o bem-estar do marido, mas também os sua tranquilidade, conforto e paz espiritual, mais do que na altura (em que estavam a comprometer a sua saúde), no seu processo de luto (antecipado). São exemplo:

“ (…) eu sinto uma paz interior, porque eu fiz tudo o que humanamente era possível fazer. Tudo o que estava ao meu alcance e mais alem, eu fui até aos limites. Em tudo, não tenho nenhum remorso, nenhum arrependimento…” (N5)

“ (…) ao menos aqui tinha a família toda de volta dele. Teve carinho, teve tudo. Não lhe pude fazer mais nada, tudo o que pude fazer-lhe, fiz-lhe, não lhe pude fazer mais nada…” (N9)

Este último exemplo remete também para a vontade global de se manter e cuidar do doente em casa, valorizando o acompanhamento da família e a partilha de experiencia de

morte de forma digna e humana (Bermejo, 2003; Doyle & Jeffrey, 2000; Ferreira, 2009; Gameiro, 1988; Guarda et al. 2010; Neto, 2010).

Paralelos a estes sentimentos de tranquilidade no luto do marido, quando, de forma real ou não, não foi possível fazer no modo como idealizaram, surgem afirmações que apontam para sentimentos/ideias de culpa e remorso (Bermejo, 2007; Menéndez, 2006), aspectos descritos como comprometedores do processo de luto, ainda que nas entrevistas realizadas, estes não me tenham surgido como ideias ruminativas, persistentes e causadores de mal-estar intenso.

N4 comparte por exemplo: (…) eu fiz exactamente aquilo que…não me arrependo de nada daquilo que fiz nem da maneira como eu fiz. Tive pena foi, de nos últimos meses, eu já não conseguir, e não ter arranjado ninguém para aqui.”. Este exemplo, leva-me a referir, que não existiu uma falta por assim dizer da cuidadora, mas uma indisponibilidade ou falta de acesso a recursos para cuidar no domicílio como desejava. Cabe às políticas de saúde expandir os seus recursos, assegurar a sua acessibilidade e eficiência para responder a estas necessidades, sendo esta uma forma de cuidar, mas também de não comprometer a vivência saudável do luto dos cuidadores (Capelas, 2009; Carvalho & Botelho, 2011; Davies & Higginson, 2004b; Doyle & Jeffrey, 2000; Ferreira, 2009; Hudson et al., 2012; Neto, 2010; Sheldon, 1997).

Um outro exemplo, bem expressivo da exaustão da cuidadora é o de N7: “ (…) já não tinha forças, tava também já muito em baixo…e isso, o toque de eu, fazer assim e ele “Tás-me a bater” e eu disse “Não, Z. eu nunca te ia bater, fiz-te só assim para ver se tu conseguias…levantar a perna”, mas fiquei com remorsos muitos meses (…) Deus perdoa- me, porque eu não fiz isso com aquela raiva, com aquela…eu também andava muito cansada. Porque ele era…aquilo era já o cansaço, não é?”.

Associado a este sentimento de exaustão, esteve frequentemente o alívio pelo fim do sofrimento com o momento da morte do marido. O alívio apresentou-se, mais conectado com o facto de o marido não sofrer mais, mas também a própria, por vê-lo sofrer a ele. Este alívio, tal como também já o conhecia das equipas de cuidados paliativos com que trabalhei, não apareceu associado a sentimentos de culpa:

N8 dizia-me: “ (…) quando ele faleceu, foi quase que como um alívio (…) porque o problema não era viver, era estar a vê-lo sofrer no dia-a-dia…Eu sofria muito, vinha para casa muito sofrida…”.

E por fim, uma questão de fim de vida e momento da morte, com a qual N8 aponta dificuldade em lidar, ainda na actualidade, 7 meses depois: “ (…) Só tenho pena de não ter ficado ao pé dele no dia que ele faleceu. É que eu suspeitava que ele ia falecer nesse dia (…) o que me custa mais é isso, porque ele tava no limite, tava na hora dele, não ter ficado lá mais tempo, tenho remorsos, custa-me muito….”.

O cuidar aparece também expresso no desejo de proteção do marido, de lhe esconder a verdade sobre a gravidade e fatalidade da doença, aproximando-se de casos que preocupam as equipas de profissionais em cuidados paliativos, de conspiração do silêncio (Arranz, et al., 2005; Bermejo, et al., 2012; Doyle & Jeffrey, 2000; Menéndez, 2006; Sapeta & Lopes, 2007): “ (…) O médico disse que já não havia nada a fazer?”, “Não, T., tas…tas enganado. Ele disse que agora ias parar, para ver, agora descansavas, que era para ver depois o que se ia fazer…”mentira piedosa, não é? (N9).

Como já tinha antecipado, nas questões actuais em cuidados paliativos, independentemente de como foram conduzidos os casos, o que não era tema da investigação, há que seguir o investimento nas competências das equipas no que diz respeito às suas competências de comunicação (Bermejo, 2011; Davies & Higginson, 2004b; Doyle & Jeffrey, 2000; EAPC, 2004; 2007; Sapeta & Lopes, 2007), reforçando aqui novamente a importância do acompanhamento de doente e família, resposta holística às necessidades de ambos e o esforço de um bom trabalho de luto antecipatório, com recurso a ferramentas de trabalho já reconhecidas pelo seu valor e resultados, como as conferências familiares (Doyle & Jeffrey, 2000; Ferreira, 2009; Gameiro, 1988; Guarda et al., 2010; Neto, 2003; Neto & Trindade, 2007; Sheldon, 1997).

3. A relevância atribuída aos cuidados das equipas de saúde e