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Reflexões sobre identidade

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2010 (páginas 119-135)

PARTE II – REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE RACIAL E AÇÕES AFIRMATIVAS

CAPÍTULO 1 Reflexões sobre identidade

Neste capítulo faremos uma incursão reflexiva sobre as formas de conceituação/teorização da identidade à luz de nossa inquietação quanto a processos de identificação étnico-racial em programas de ação afirmativa.

Dada a diversidade teórico-metodológica no estudo da identidade, nota-se uma diversidade terminológica para se referir a esse objeto. Assim, tem-se a identidade pessoal, que está relacionada aos atributos específicos de cada pessoa; identidade social ou identidade coletiva, que correspondem aos atributos que indicam a pertença a grupos ou categorias; identidade do eu, que é uma identidade reflexiva tanto em Goffman (1963) quanto em Habermas (1983)61. Há também o termo identidade psicológica empregado por Costa (1989) apud Jacques (1998, p. 161) “para se referir a um predicado universal e genérico definidor por excelência do humano em contraposição a apenas um atributo do eu ou de algum eu como é a identidade social, étnica ou religiosa, por exemplo”. Considerando a inter-relação entre as dimensões individual e social, também se emprega o termo identidade psicossocial, numa tentativa de contemplar a relação dialética entre indivíduo e sociedade, de acordo com Neto (1985) apud Jacques (1998, p. 161).

Conforme Nunes et alii (1986), a origem do conceito está na Grécia antiga, apresentando-se com diversas acepções, dependendo da forma de pensar de cada época. Os autores apresentam duas formas de como as Ciências Humanas têm se apropriado do conceito de identidade. A idéia dos autores é identificar diferença entre um modo estável e um modo dinâmico de pensar a identidade.

Segundo Nunes et alii (1986), o pensamento ocidental62 é resultado de uma série de idéias desenvolvidas pelos primeiros pensadores gregos nos séculos VI a V a.C. Parmênides de Eléia (515-510 a.C.) foi o precursor do princípio da não-contradição, que foi posteriormente sistematizado por Aristóteles (384-322 a.C.) (NUNES et alii, 1986, p. 27). Para Parmênides o ser é localizado no tempo e no espaço. “Consagra-se então o conceito de identidade preso a uma realidade concreta, erigindo a era do sensório como

61É uma identidade que não é meramente atribuída, que se desenvolve a partir de “uma identidade constituída por papéis e mediatizada simbolicamente” precedida por uma “identidade natural”, “é o estágio de consciência de si, no qual o pessoa pode se referir a si mesmo através da reflexão, já que entra em comunicação com um outro Eu, de modo tal que ambos podem conhecer-se e reconhecer-se reciprocamente como Eus: [...]” (HABERMAS, 1983, 78- 79, grifo do autor).

determinante de todos os fenômenos, quer sejam físicos, quer psíquicos” (NUNES et alii, 1986, p. 25). No pensamento de Parmênides, a verdade poderia ser indagada na perspectiva do ser ou do não ser, mas apenas o caminho da certeza conduz à verdade, pois o não-ser é inalcançável, portanto não há mudança. Pensamento e ser são uma coisa só. Este ser não divisível (indivíduo) é completamente idêntico e fixo.

Instala-se, desse modo, o princípio da identidade, espelhando o ser sobre si mesmo, abrindo caminho para o racional, o que é objetivável, excluindo a instabilidade, o paradoxo, do âmbito do universo do discurso lógico, que passou a constituir-se na característica implícita dos propósitos da ciência (NUNES et alii, 1986, p. 27).

Não é difícil de perceber, como tal pensamento esteve e está presente na maneira de se fazer ciência, principalmente nos moldes positivistas. A busca por regularidades, a procura por aquilo que é idêntico através do ideal de um rigor sistemático, tem subjacente a idéia de uma substancialidade regida pelo princípio da não-contradição. Tanto as Ciências Naturais quanto as Ciências Humanas e Sociais estão envoltas com essa concepção dualista. Para as primeiras, Nunes et alii (1986, p. 27) exemplificam com o postulado de que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”; para as Ciências Humanas, lembram as dicotomias bom/mau, doente/sadio, lei/“fora da lei”, normal/patológico.

As idéias de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.) representam outra forma de pensar, conforme Nunes et alii (1986). Uma das idéias refere-se à unidade dos opostos. Ao se observar uma garrafa de água meio cheia, e alguém afirmar que ela está meio vazia, não há contradição nisto. No entanto, segundo Nunes et alii, o paradoxo sempre foi algo a ser depurado do pensamento ocidental.

Tudo (pensava Heráclito) é uma reunião de opostos ou, pelo menos, de tendências opostas. A luta e a contradição não devem ser evitadas, pois elas se juntaram para formar o mundo. Se eliminássemos a contradição, perderíamos a realidade. Mas isto significa que a realidade é inerentemente instável (MAGEE, 2001, p. 14).

Essa fluidez é a segunda idéia de Heráclito que é “Tudo flui. Nada neste mundo é permanente. Tudo está mudando o tempo todo. [...] A mudança é a lei da vida e do universo. Ela manda em tudo”. (MAGEE, 2001, p. 15).

Para Nunes et alii (1986, p. 30), a proposição heraclítica, “unidade que contém e transcende todas as forças opostas”, indica uma forma de pensar não hierarquizada.

Quando se hierarquiza se estabelece o que é superior e o que é inferior, a partir de uma valoração. E o modo de pensar que caracteriza o pensamento ocidental tem sido recorrente ou a eliminar o que é diferente ou a situá-lo no campo do desvio, da marginalidade, tomando conceitos universais enquanto norma, enquanto regra. Na visão de Heráclito, não faz qualquer sentido essa hierarquização, já que tudo está em movimento.

Em Heráclito, uma visão de identidade tal como postulada por Parmênides e tal como é tomada pela modernidade não teria mais sentido, pois nenhuma coisa se acha apoiada num só ponto, legitimada pela limitação do ser engendrado pelo seu não-ser. Pelo contrário, há a coexistência da polaridade, da pluralidade (NUNES et alii, 1986, p. 30).

Para exemplificar no que resultou, na produção científica contemporânea, as influências de Parmênides e Heráclito, Nunes et alii (1986) retratam como exemplo de concepção estável de identidade, a obra de Goffman (1988) e como exemplo de concepção dinâmica, apesar de algumas ressalvas, a obra de Berger e Luckmann (1985). Veremos, mais adiante, que Ciampa (1984, 1986) também se inspirou na fluidez de Heráclito.

Erving Goffman, sociólogo e escritor canadense, identificado com um grupo de autores da Escola de Chicago63, que escrevem partindo da perspectiva do Interacionismo Simbólico64 (BAZILLI et alii, 1998, p. 120), defende que a “sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (GOFFMAN, 1963, p. 11). Esse conjunto de categorias e atributos informaria a “identidade social” de alguém. Com base nessa identidade é que “se cria uma série de expectativas normativas relacionadas ao indivíduo e que estão ligadas ao papel que o mesmo vai desempenhar, [...] (BAZILLI et alii, 1998, p. 138). Decorreria daí, então, duas posições distintas; uma “identidade social virtual” e uma “identidade social real”. A primeira refere-se àquilo que foi imputado pela sociedade, “de acordo com as categorias e atributos esperados por esta (NUNES et alii, 1986, p. 26). A segunda refere-se à “categoria e aos atributos que ele [o indivíduo], na realidade, prova possuir, [...] (GOFFMAN, 1963, p. 12)”.

63 “A Escola de Chicago enfatiza processos e não estruturas, introspecção e não escalas de atitudes, indeterminação e emergência e não determinação” (BAZILLI et alii, 1998, p. 31, grifo dos autores).

De acordo com Goffman (1963, p. 74), o conceito de identidade social refere-se aos papéis, é aparente e tem a ver com o como a pessoa é vista ou percebida, possibilita, assim, levar em conta o processo de estigmatização; o conceito de identidade pessoal, que considera qual é “o papel do controle de informação na manipulação do estigma” e a identidade do eu, possibilita levar em conta o sentido subjetivo que a pessoa dá a sua situação, enquanto portadora de um atributo estigmatizável. (GOFFMAN, 1963, p. 117)

Para Nunes et alii (1986, p. 26), o fato de a identidade ser analisada tomando como referência uma “identidade deteriorada”, ou seja, a partir do estigma, pressupõe que Goffman considera que haja um centro, ou eixo de referência tomado como norma e que qualquer movimento, afastando-se desse ponto, indicaria desvio65. Isto indicaria, segundo os autores, uma visão dicotômica, opondo o normal ao patológico, a identidade social real à identidade social virtual. Completam sua análise apontando o caráter determinista da obra, uma vez que Goffman enfoca “a sociedade como produtora da identidade”.

Na análise de Nunes et alii (1986), a abordagem de Berger e Luckman (1985) representa a superação dos modelos teóricos pautados numa perspectiva estática da identidade. Peter Ludwig Berger e Thomas Luckmann, sociólogos engajados no campo da Sociologia do Conhecimento66, consideram que a

Identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 228).

Berger e Luckmann (1985, p. 173) compreendem a sociedade como uma realidade que é, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva, uma vez que ela é percebida como um processo dialético que ocorre, simultaneamente, como exteriorização, objetivação e interiorização. O mesmo acontecendo com a pessoa que externaliza o seu próprio ser no mesmo momento em que interioriza o mundo social como uma realidade objetiva.

65 Note-se que nos dois últimos capítulos do livro, Goffmam (1963) trata da temática do desvio e do comportamento desviante.

O início de todo o processo é a interiorização, ou seja, quando a criança internaliza como sendo seu a “manifestação de processos subjetivos que são de outrem” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 174). Só quando se realiza este nível de interiorização é que a pessoa se torna membro da sociedade, num processo denominado de socialização, que consiste num movimento consistente e de grandes dimensões que visa inserir a pessoa no mundo objetivo de uma dada sociedade ou em determinado segmento dela. Este processo acontece em dois estágios diferenciados: a socialização primária e a socialização secundária (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 175).

O que a pessoa conhece como realidade objetiva nada mais seria do que o conjunto de informações e definições que lhe são transmitidas pelos “outros significativos”, com os quais ela se identifica. Os “outros significativos” é que estabelecem a mediação entre o mundo social objetivo e a pessoa, fazendo uma “filtragem” da realidade a partir de sua própria localização social e de sua história pessoal (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 176).

Faz-se pertinente destacar pontos importantes e díspares entre a teoria de socialização de Berger e Luckmann e os novos paradigmas nos estudos da infância. Grigorowitschs (2008, p. 43) não concorda que haja uma ruptura entre a socialização primária e a secundária. Para a autora, trata-se de uma constelação e não de processos lineares. Outro ponto de discordância é que para a autora crianças não são “socializadas”, mas “socializam-se”, são ativas no processo, tanto quanto os adultos, pois se trata de interações que prosseguem durante toda a vida. Estas são considerações relevantes nas pesquisas que vêm sendo desenvolvida no interior do NEGRI, segundo as quais

a criança passa de objeto de socialização a ator social, de futuro adulto a criança historicamente contextualizada. A socialização deixa de ser vista como uma questão de adaptação ou interiorização de normas e padrões sociais e começa a ser entendida como um processo de apropriação, de inovação e de reprodução (MONTANDON, 2001): as crianças são agentes do processo de socialização de adultos e de outras crianças, de modo equivalente aos adultos (PRADO, 2009, p 17)

Nunes et alii (1986, p. 26/27) chamam a atenção para os aspectos contextual e processual na teoria de identidade de Berger e Luckmann (1985). Para Nunes et alii, o foco na dimensão processual da formação da identidade sinaliza um progresso em relação à concepção de Goffman (1963), pois a identidade não é mais imaginada teleologicamente. A identidade passou a ser compreendida de forma mais dinâmica, podendo ser mantida, modificada ou mesmo remodelada. No entanto, a despeito desse

avanço apontado, Nunes et alii consideram que o modelo de Berger e Luckmann não superou o modelo dicotômico, na medida em que persistiu numa “referenciação espacializada”, permanecendo “a idéia de sentido/não sentido, conflito/síntese, na esteira continuísta da linearidade, identificada no espaço” (NUNES et alii, 1986, p. 28).

Na conclusão da reflexão que fazem acerca do conceito de identidade, Nunes et alii (1986) apontam que, na contemporaneidade67, estão abertas as possibilidades para formulações teóricas mais próximas da concepção fluida de Heráclito, uma vez que é o tempo da velocidade; “do bombardeio de informações”; da tecnociência produzindo a hiper-realidade; “da diversidade dos fenômenos, curvando-se inapelavelmente à sua complexidade”; tempo de indeterminação e de instabilidade. Para os autores, seria, então, o momento oportuno para uma abordagem de identidade

que guarde em si aspectos do mesmo e do outro. Pensar ser e não-ser, semelhanças e diferenças. Ao invés de superar a contradição, absorvê-la num paradoxo, onde identidade não mais se constitui num processo teleológico ou mesmo teleonômico de um fim a atingir (NUNES et alii, 1986, p. 32, grifo dos autores).

Assim, a identidade deveria ser considerada em formulações que postulassem a instabilidade e a superação das dicotomias. A identidade seria uma instância não estável, assimetricamente simétrica e atemporalmente temporal (NUNES et alii, 1986, p. 32).

Paiva (2007, p. 85) está de acordo que nos dias atuais estamos mais propensos a considerarmos a posição de Heráclito, depois que passamos por um longo tempo influenciados por Parmênides, convictos que estávamos da força da permanência das coisas. Os deslocamentos provocados pelo o que alguns chamam de globalização, e outros de pós-modernidade, têm caracterizado um momento de “acelerada transitoriedade”, dando “a impressão de que hoje novamente estamos impedidos de nos banhar duas vezes no mesmo rio e que pouco espaço resta para a memória”. No entanto, o autor ressalva que, se esse fenômeno é mundial, ele não abarca a todos, ou seja, estaria limitado “aos estratos abastados da sociedade ocidental”. Se a identidade é vazia, fluida ou líquida como querem alguns, apontando para um questionamento da utilidade do conceito de identidade ou mesmo para sua reconfiguração, o autor se contrapõe com exemplos de outros pesquisadores, que estudam grupos de resistência e minorias, que

“percebem a manutenção, ou mesmo o reforçamento, de referências estáveis a coletividades que lhes forneçam um lugar no mundo, ou seja, para voltar o velho termo, uma identidade” (PAIVA, 2007, p. 86). São vários os exemplos de produção de “novas identidades”, como afirma Stuart Hall (1997, p. 93), produzidas politicamente, ou seja, levando em conta o caráter “posicional e conjuntural” das mesmas, tais como identidades étnicas, identidades sexuais, identidades culturais, identidades nacionais ou transnacionais, etc.

Strey et alii (1998, p. 160) informam que, no campo da Psicologia, as pesquisas sobre identidade passam, geralmente, pela Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia Cognitiva. Ambas “caracterizam o desenvolvimento por estágios crescentes de autonomia, e consideram a identidade como gerada pela socialização e garantida pela individualização”. Já no campo da Psicologia Social, os autores destacam que os estudos da identidade foram centrais na obra de William James68 e nos trabalhos pioneiros de George Mead, na perspectiva do Interacionismo Simbólico.

O termo ‘interacionismo simbólico’ é devido a Herberth Blumer, um dos mais influentes autores da Escola de Chicago, [...] e designa o processo pelo qual se constituem os me’s (mim, moi) da pessoa na interação com os outros e com o outro generalizado, [...] por meio dos símbolos deles, as palavras e jogos. (PAIVA, 2007, p. 78)

Papel é definido como as expectativas de comportamento ligadas à posição social. Segundo Paiva (2007, p. 78), esse conceito sociológico tornou-se um conceito- chave na Psicologia Social na tradição do Interacionismo Simbólico. Ocorreram importantes usos e desdobramentos das propostas desse movimento, conforme Bazilli et alii (1998, p. 43), dentre os quais a Teoria de Papéis, na perspectiva de Sarbin e Scheibe (1983), da qual Ciampa (1984, 1986) se apropriou de alguns conceitos, como veremos a seguir.

Numa perspectiva histórico-social, Ciampa (1984, 1986) leva em conta a dimensão dialética apreendida na interação social para desenvolver a sua teoria da identidade-metamorfose-emancipação. Compreendendo a identidade de uma forma dinâmica e processual, o autor articula dimensões que à primeira vista se mostram antagônicas como vida e morte, pessoa e sociedade, estabilidade e transformação, igualdade e diferença, unicidade e totalidade, ocultação e revelação.

Para Ciampa somente pelo nome não é suficiente para se conhecer uma pessoa, outras “marcas de identidade”69 (CIAMPA, 1984, 1986) se fazem necessárias. A pessoa não vive como uma mônada, mas sim em relação e sua identidade está em constante transformação70. Um componente importante que emerge desta abordagem relacional da identidade (CIAMPA, 1986, p. 127 e 243) é o reconhecimento71.

Na abordagem de Ciampa o que se tem é a noção personagem para dar conta de um movimento que vai além do institucional. Quem constrói o personagem é a pessoa com sua história, com sua idiossincrasia, com sua personalidade. As personagens “são momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão (CIAMPA, 1986, p. 198). A identidade se concretiza no movimento das personagens. Um movimento que é determinado por condições históricas, sociais, materiais e da própria pessoa.

O que se propõe é o estudo da personagem enquanto dar-se. Considerando a abordagem dramatúrgica72, o que se busca é o entendimento do processo em que ocorre a produção da identidade (CIAMPA, 1986, p. 159). O importante é identificar as personagens que encarnam o drama e assim a identidade torna-se o processo de identificação das pessoas com seus personagens (CIAMPA, 1986, p. 160).

O que pode, às vezes, dificultar a percepção desse movimento é o desempenho dos diversos papéis pela qual se passa numa vida e que tendem a cristalizar a pessoa pela predicação, ou seja, a pessoa passa a se identificar pelo aquilo que faz. Essa cristalização caracteriza o “fetichismo da personagem”, quando o envolvimento73 do ator, com seu personagem se torna permanente.

Ocorre então uma aparência de permanência e de estabilidade. É a ordem institucional que nos impõe uma “re-posição”, que nos obriga a uma representação constante de personagens pressupostas, dadas como a-históricas, revelando a “mesmice” (CIAMPA, 1986, p. 165), apontando para uma não-metamorfose. Mas

69 “[...] Scheibe reconhece a existência de marcas de identidade, desde o nascimento (nome, família, nacionalidade, etc.) [...] Estão presentes e vão ter incidência marcante, tanto na construção de identidades [...] Contudo, a influência tem um caráter de relação dialética na qual a pessoa vai constituindo ou criando (ou não) novas marcas e relações que influenciam o meio e o processo de mudança ou de constituição de novas identidades (BAZILLI et alii, 1998, p. 221). 70 Nota-se uma aproximação com as três concepções de identidade que Stuart Hall (1997, p. 10) faz: a) “sujeito do iluminismo” – individualista, indivisível com identidade fixa; b) “sujeito sociológico” – o pessoa está em interação dialética com a sociedade e c) “sujeito pós-moderno” – o pessoa é composto de várias identidades, formadas e transformadas continuamente.

71 “Recognition is at the heart of the matter. (...) Recognition is vital to any reflexivity...” (CALHOUN, 1994, p. 20) 72 Ciampa (1986, p. 191) esclarece que o que ele faz é o uso do recurso da analogia e “não uma redução da realidade social à realidade do teatro”. Nota-se aqui a influência da abordagem dramatúrgica de Goffman (1985).

Ciampa (1986, p. 184) assinala que as mudanças podem ocorrer desde que a pessoa esteja imbuída da perspectiva da “mesmidade” e não da mesmice. O que permite a pessoa romper com as determinações.

Assim, está falando em emancipação humana. Ciampa (1999) estabelece a indissociabilidade entre a identidade, a metamorfose e a emancipação. Para o autor, já está posto que identidade é metamorfose, mas dadas as condições hegemônicas do capitalismo não há garantias que essa metamorfose seja progressista, podendo até mesmo ser negativa, deste modo torna-se imprescindível entender o sintagma74 identidade-metamorfose-emancipação e desta maneira poder analisar a qualidade da transformação ocorrida, tendo em vista alcançar uma vida-que-merece-ser-vivida. Identidade para Ciampa, além de ser uma questão científica é, portanto, uma questão política (1986, p. 243).

O tema da diversidade em Cross Jr., que veremos adiante e também em Ciampa (1986, p. 138), segundo o qual a identidade “é a articulação da diferença e da igualdade”, convida ao exame da noção de diferença.

Depois de discutir a questão da diferença dentro do movimento feminista, preocupada em saber como a diferença é construída, dentro de discursos competitivos, Brah75 (1996) constata que o mais importante não é a diferença em si mesma, mas saber quem define a diferença, como diferentes categorias de mulheres são representadas dentro do discurso da diferença e como se dá o processo de hierarquização, pela diferença (BRAH, 1996, p. 114/115, tradução nossa). A partir dessas questões, a autora formulou quatro maneiras de conceituar a diferença: 1) “diferença enquanto experiência”; 2) “diferença enquanto relação social”; 3) “diferença enquanto subjetividade” e 4) “diferença enquanto identidade”. Dado o escopo deste trabalho, nos deteremos principalmente na quarta conceituação. Mas é importante apontar que “o sujeito se forma na experiência” (BRAH, 1996, p. 116, tradução nossa), não há uma teleologia; que a diferença é constituída dentro de contextos estruturados de relações de poder, tais como diferenciação de gênero, classe e raça (BRAH, 1996, p. 118); e que o

74 Sintagma para Ciampa consiste na junção de mais de um conceito, cada qual mantendo sua especificidade, mas que

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