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A reforma da Previdência Social e a perda de direitos previdenciários dos servidores públicos

principalmente, nos Quaderni del carcere Edição crítica de Valentino Gerratana 2 ed Turim, Eunaudi,

A REFORMA DO ESTADO NO BRASIL: A LÓGICA MERCANTIL NAS POLÍTÍCAS SOCIAIS

2.5. A reforma da Previdência Social e a perda de direitos previdenciários dos servidores públicos

A Seguridade Social abrange uma larga gama de serviços de proteção aos indivíduos, reconhecidos como direitos que representam elementos importantes da cidadania e que são componentes essenciais do Estado de Bem-Estar. Essa concepção de Seguridade Social, como um conjunto abrangente de políticas sociais que visam à garantia de condições básicas de vida, relacionadas com a renda, com os bens e

serviços sociais, nunca foi praticada no Brasil, que sempre recusou-se a ratificar a Convenção da OIT que trata desse assunto20.

A Seguridade Social só foi reconhecida quando constou, pela primeira vez, na Constituição de 1988, no capítulo dos direitos sociais. Nessa época, nos países europeus, berço desse conceito de bem-estar, essa política já se havia consolidado e estava em ameaça, como reflexo da crise do capital e do Estado, que influenciaram o desenvolvimento das políticas neoliberais (Raichelis, 1988; Fleury, 1994; Mota, 1996; Esping-Anderson, 1991; Yazbek,1998).

Na reforma do Estado que se desenvolveu desde o início do governo Fernando Henrique, houve um deslocamento da política social para alternativas privatistas, para a família, a comunidade e organizações sociais, esvaziando e descaracterizando as políticas de proteção social, enquanto se distancia a possibilidade de que a política social assuma um caráter essencial e efetivo de reconhecimento do direito social.

A reforma da Previdência modifica um dos pilares da política de seguridade social, que representa o núcleo central do Estado de Bem-Estar social, que poderia ser alcançado no Brasil, a partir dos avanços inscritos na Constituição de 1988, fruto do processo de conquista da luta dos movimentos sociais organizados, durante o processo constituinte. Inscreve-se uma Seguridade Social concebida como um direito social universal abrangente, incluindo os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, fundamentado no primado do trabalho e objetivando o bem-estar e a

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A Seguridade Social, como é modernamente reconhecida, surge na Europa e é referendada na Convenção 102 da OIT - Organização Internacional do Trabalho, de 1952, cuja concepção foi assim regulamentada: Seguridade Social é a proteção que a sociedade proporciona a seus membros mediante uma série de medidas públicas contra as privações econômicas e sociais que de outra forma derivariam no desaparecimento ou em forte redução de sua subsistência como consequência de enfermidade, maternidade, acidente do trabalho ou enfermidade profissional, desemprego, invalidez, velhice, morte e também a proteção em forma de assistência médica e de ajuda às famílias com filhos.

justiça social. Ela segue no sentido de abrir um amplo setor do mercado de capitais na área da previdência privada. Como aponta Faleiros (1994, p. 88).

Os representantes das empresas privadas de previdência defendem a intervenção do Estado apenas para a garantia de um mínimo de seguro, e uma previdência privada complementar, regida pelo mercado. Ou seja, ter-se-ia uma dupla previdência: uma para os pobres, controlada pelo Estado e outra para os assalariados de níveis mais elevados controlada pelo setor privado.

Esse tripé da Seguridade Social como competência do poder público e financiado por toda a sociedade, mediante recursos orçamentários, da contribuição dos empregadores, dos trabalhadores, e, ainda das receitas de concursos e prognósticos, nem chegou a consolidar-se, subjugado aos parâmetros econômicos que impõem sucessivos e profundos cortes ao incipiente, excludente e limitado sistema de Seguridade Social. Agora, encontra-se predestinado ao total esfacelamento por essa reforma, fato que agrava ainda mais a questão social frente à crise das políticas sociais e diante da crise econômica e do desemprego.

A Assistência Social, que nem chegou a assumir plenamente o caráter de política social pública, como um direito social, posto que, desde sempre foi caracterizada pelo assistencialismo, clientelismo, fisiologismo, marcada por ações pontuais e emergenciais, mesmo quando praticada pelo Estado, desde 1994, centrou-se basicamente no Programa Comunidade Solidária, que se caracteriza por um padrão que Oliveira (1998, p. 15) chama de "assistencialismo filantrópico público”.

A ação da Comunidade Solidária reproduz, ponto por ponto, a da assistência social na estrutura do Estado brasileiro: assistencialista no pior sentido do termo, fisiológica, clientelista, fonte de corrupção política, e, sobretudo, o não-reconhecimento dos agentes da assistência social e do serviço social como sujeitos da política. Salta- se por cima da instituição para se realizar a assistência diretamente, numa das características que mais aproximam o neoliberalismo do autoritarismo. Trata-se de silenciar a voz e o voto na deliberação da política, o que reconduz ao "leito de Procusto" da privatização das

carências de uma parcela significativa da sociedade brasileira, o que quer dizer uma regressão do estatuto dos direitos.

A política de saúde, se é que se pode considerar que existe, se encaminha para uma desresponsabilização do Estado e para o desmantelamento total do Sistema Único e Descentralizado de Saúde, criado em 1987 (pelo Decreto 94.657). Apesar de, na Constituição de 1988, a saúde ter sido concebida como uma política pública, de acesso universalizado e igualitário, gratuito, como direito do cidadão e dever do Estado, quase dois terços da prestação dos serviços médico-hospitalares atualmente são realizados em hospitais e clínicas privadas, para quem o Estado repassa recursos públicos, através de credenciamentos, contratos e convênios, para garantir o atendimento à população em geral. Outra forma de privatização da saúde, ou de redução do orçamento, dá-se com o abatimento do imposto de renda dos gastos com saúde realizados por empresas, além do parcelamento de dívidas de empresários com o CONFINS, por parte do governo.

A saúde privada tem crescido no vácuo deixado pelo Estado na oferta de saúde pública. Em 1998, já havia cerca de 40 milhões de brasileiros ligados a planos de saúde vinculados a 870 empresas.O faturamento anual desse setor atingiu, nesse período, R$ 17 bilhões, quase a mesma quantia que a União gasta com a saúde pública. Na distribuição de leitos no SUS, 44,72% são de hospitais privados, 25,53% de instituições filantrópicas e 29,75% são da rede pública (Araújo, 1998, p. 142-143-151).21

Mesmo com essa reduzida oferta de serviços públicos e da baixa qualidade apresentada na maioria deles, os recursos vêm sendo sistematicamente reduzidos e os

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Segundo Pires Filho (1999, p. 1), em 1998, a situação da rede hospitalar do país era o seguinte: do total de 7 274 estabelecimentos hospitalares existentes no país, 5 246 (70%) são privados e somente 30% são públicos. Nesse mesmo ano, o conjunto dos estabelecimentos hospitalares dos SUS era formado por 6 425 hospitais, dos quais 2 177 (33,88%) eram públicos, 4 093 (63,70%) privados. Dos públicos, 155 eram Hospitais Universitários (2,42%). Esses números são reveladores da situação de privatização reinante na saúde brasileira. Eles não revelam a precariedade dos hospitais, a deficiência de recursos humanos e de materiais neles existentes.

governos vêm implementando programas que acentuam a privatização, através de sistemas de cooperativas ou de contratos de gestão com instituições privadas. A política do governo pretende transferir a execução dos serviços de saúde, dos hospitais públicos para as instituições privadas - públicas não-estatais - as Organizações Sociais, processo que já se encontra em andamento em alguns Hospitais Universitários (HUs).

As fontes de custeio da Seguridade Social e da saúde nunca foram viabilizadas. Os gastos com saúde vêm sendo reduzidos sistematicamente, chegando-se ao fundo do poço. Segundo Araújo (1998, p. 142), nos anos de 1992, 1993, e 1994, a situação da saúde foi levada ao caos em que se encontra, e não se tem alterado, mesmo com a CPMF, que seria, em tese, destinada à saúde, vem sendo sistematicamente desviada para outros gastos, continuando inalterada a situação da saúde.

A reforma da previdência mudou a concepção de seguridade social como proteção ao cidadão, bancada por toda a sociedade, como direito social e como obrigação do Estado, para uma concepção de seguro social, que remete para o indivíduo a responsabilidade. Substituiu-se o regime de aposentadoria por tempo de serviço por um duplo requisito, que combina tempo de contribuição com idade.

Assim, passou-se a exigir, como fator de acesso à aposentadoria, sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e, cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher. As aposentadorias especiais e a paridade de vencimentos entre ativos e inativos no serviço público são extintas. E estabeleceu-se que uma lei determinaria um teto para as aposentadorias, com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria (art. 40 da CF).

Simultaneamente, o governo introduziu o sistema de aposentadoria privada, através do FAPI - Fundo de Aposentadoria Programada Individual, destinada àqueles trabalhadores que podem pagar, durante sua vida útil, a sua aposentadoria futura. Um

dos seus principais objetivos foi criar uma poupança interna, com uma previsão de concentrar 200 bilhões de reais até o ano 2000.

A aposentadoria dos trabalhadores do setor público recebeu modificações substanciais relacionadas com a aposentadoria integral, proporcional, por invalidez, compulsória, além de apresentar aspectos atinentes à acumulação de remuneração, tempo de contribuição, regras de transição, isenção de contribuição, salário família, auxílio reclusão, entre outros. A principal alteração, no caput do art. 40, se dá com a introdução da exigência de equilíbrio financeiro e atuarial no sistema previdenciário dos servidores.

Além da mudança que introduz a previdência de caráter contributivo e da dupla exigência, tempo de contribuição e limite de idade, incluiu-se a exigência de cumprimento do tempo mínimo de dez anos de exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria. Perde-se o direito à paridade de vencimentos entre os ativos e inativos, uma vez que o direito à aposentadoria com proventos integrais (art. 40, inciso III, alínea a da CF) é retirado e a remuneração passa a ser feita a partir de um cálculo que será estabelecido em lei, com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria.

A forma de revisão dos proventos de aposentadoria, apesar de aparentemente inalterada, tem sido desvinculada dos salários dos trabalhadores da ativa, pelos artifícios que vêm sendo utilizados pelo governo, de conceder reajustes através de gratificações específicas por categorias, gratificações por produtividade e abonos, o que tem inviabilizado, na prática, a revisão dos proventos dos inativos e pensionistas.

Outra novidade introduzida foi a possibilidade da institucionalização de uma previdência complementar para os servidores públicos, por iniciativa dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 40 § 14), a ser

normatizada em lei complementar. Isso quer dizer que se pode retornar aos idos dos primórdios da previdência no Brasil, com a introdução, em 1932, das CAPs - Caixas de Aposentadorias e Pensões, instaladas para atender a previdência e prestar assistência e socorro médico, ou dos IAPs - Institutos de Aposentadorias e Pensões que eram ligados a categorias profissionais, que se instalaram depois de 1930.

A adoção de critérios de equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário dos servidores, face aos déficits, pode resultar em três situações: aumento das alíquotas contributivas, cada vez maior redução dos benefícios concedidos, ou a cobrança de contribuição previdenciária dos inativos, o que o governo vem tentando aprovar no Congresso.

O déficit apresentado pela previdência pública, largamente apresentado pelo governo e difundido pela mídia, tem sido gerado por dois fatores fundamentais: os desvios ocorridos ao longo dos anos e fartamente sabidos pelos governos e o não repasse a esse regime previdenciário da arrecadação dos servidores e instituições para o INSS, até 1990, quando regidos pela CLT.22

Outros direitos dos servidores públicos foram supressos, com a reforma da previdência, como a aposentadoria especial para os professores universitários, a aposentadoria proporcional e o direito a gratificação no ato da concessão da aposentadoria23, já que se estabeleceu um limite para os proventos de aposentadorias e pensões, que não poderá exceder à remuneração do respectivo servidor no cargo efetivo que deu origem à aposentadoria ou pensão (art. 40, § 3 º da Emenda Constitucional de 16/12/98).

22

conforme documento apresentado pela Assessoria Previdenciária da CUT em análise das propostas do Relatório Beny Veras de 24/04/97. Brasília 08/05/97.

23

Constante no art. 192 da lei 8.112/90 - RJU (que previa que o provento fosse calculado com base na remuneração do padrão da classe imediatamente superior, ou quando ocupante da última classe, acrescido da diferença entre esse e o padrão da classe imediatamente anterior).

A partir dos elementos apresentados nesse capítulo, pôde-se identificar, na reforma do Estado, uma reorientação das suas funções sociais, uma redefinição dos espaços do público e do privado, com um acento maior na esfera privada, uma tendência que conduz a uma transferência progressiva das responsabilidades do Estado em relação às políticas públicas, para a sociedade, notadamente, para os cidadãos usuários e financiadores do fundo público, com os pesados impostos que pagam.

Para a grande maioria desses cidadãos, a única alternativa de acesso aos serviços sociais seria através da oferta estatal devida. Na ausência do poder público, eles assumem, outra vez, o ônus da prestação dos serviços que constitucionalmente o Estado teria o dever de ofertar. A sociedade civil organizada criou alternativas com o chamado terceiro setor e suas ONGs, atuando nas franjas do público e do privado, que o governo, espertamente, tratou de aproveitar, tornando uma política efetiva do poder público.

As políticas sociais públicas, pelas quais a sociedade lutou nos movimentos sociais, para que fossem concretizadas, como direitos de cidadania - uma cidadania que tinha no trabalho e nos direitos trabalhistas um fator de inclusão social - tornam-se filantropia privada, transformam-se em mercadoria e o cidadão torna-se consumidor, um consumidor que encontra no desemprego estrutural o limite para o acesso ao mercado de bens e serviços.

Pode-se deduzir que as orientações privatistas predominaram nas políticas sociais, pela diminuição dos gastos sociais, redundando numa diminuição, ou num "enxugamento" do Estado do ponto de vista das políticas sociais, ao tempo em que, inversamente, percebe-se uma ênfase no direcionamento do fundo público para a iniciativa privada.

2.6. A reforma do Estado e as mudanças nas relações de trabalho na administração