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O regime global sobre drogas no século XXI: tendências recentes e possíveis

4. A dimensão regional do controle internacional de drogas e as transformações recentes

4.5. O regime global sobre drogas no século XXI: tendências recentes e possíveis

recursos para seu financiamento.

4.5. O regime global sobre drogas no século XXI: tendências recentes e possíveis desdobramentos

A campanha mundial de guerra às drogas chegou ao século XXI repleta de linhas de fissura e pontos de dissonância que vêm reconfigurando esse processo nos níveis nacional, regional e sistêmico. Em meio à cacofonia da ordem internacional vigente, podemos identificar sinais de resistência emitidos por potências emergentes que podem constituir uma renovada fortaleza às medidas de controle internacional de drogas. A divisão da frente de guerra começou a aparecer na América Latina, um dos seus principais palcos. O primeiro arranhão foi dado em 2008 pela a iniciativa não-governamental da Comissão Latino- Americana sobre Drogas e Democracia. Sob a liderança dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), César Gaviria (Colômbia) e Fernando Zedillo (México), a Comissão (2010) reuniu personalidades da região para conclamar autoridades mundiais a reavaliar as ineficazes e violentas políticas que abordam o problema das drogas pela ótica criminal.

Aproveitando o espaço aberto, os presidentes conservadores Juan Manuel Santos (Colômbia), Felipe Calderón (México) e Pérez Mollina (Guatemala) engrossaram o coro da legalização. Enfrentando em seus países um colapso da segurança pública produzido pela hipertrofia e exaustão do modelo repressivo, os mandatários se pronunciaram publicamente, ainda no exercício dos mandatos, a favor do debate de políticas alternativas, focadas na legalização e na redução de danos. Qual uma glasnost na segurança pública, a agenda política se abriu a propostas como a descriminalização do uso pessoal (Argentina) e da estatização da produção de maconha (Uruguai).

Em 2011, a Bolívia, crucial na geopolítica das drogas, abalou os pilares do regime proibicionista ao abrir precedente de denúncia da Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961. A campanha diplomática do presidente Evo Morales resultou vitoriosa, em janeiro último, sob a objeção de apenas 15 dos 183 estados membros, ao lograr nova adesão ao

tratado com reservas a dispositivos que proíbem o consumo tradicional da folha de coca (ABI, 2013). Finalmente, o assunto foi levado a foro multilateral na 6ª. Cúpula das Américas da OEA, em abril de 2012. Ao final do encontro, foi consenso que se deveria analisar os resultados das políticas sobre drogas existentes no hemisfério e foi confiada à OEA a preparação de um documento sobre o problema das drogas nas Américas que visava renovar as bases de diálogo sobre as abordagens tradicionais e alternativas ao tratamento do problema. As conclusões apresentadas em no relatório final apresentado em 2013 revisa diversos aspectos das políticas de repressão e de saúde pública e propõem a sua flexibilização para atender a características locais na forma com que o problema se apresenta (CICAD, 2013).

Enquanto essas linhas de fratura se aprofundam, pontos de dissonância moral se instalam no epicentro da guerra às drogas, os Estados Unidos. De forma difusa, a opinião pública favorável à legalização da maconha já abrange metade da população, ampliando a disjunção entre o direito vigente e a sociedade que ele supostamente regula (NEWPORT, 2012). Nesse país, à revelia da legislação federal, com base em plebiscitos e consultas populares, 18 estados aprovaram o uso medicinal da cannabis e, mais recentemente, os estados de Washington e Colorado descriminalizaram-no inclusive para fins recreativos (TAYLOR, 2013). Em abril de 2013, a nova edição da política nacional de controle de drogas do governo Obama foi anunciada em meio essa proliferação de contravenções federais e internacionais em seu próprio território. Diante do silêncio obsequioso que Obama guarda sobre o assunto, como seu czar de drogas poderia se sentir autorizado a fazer recomendações sobre as políticas antidrogas de outros países? Por certo, a dissonância moral da sociedade norte-americana se coaduna às deserções dos governos latino-americanos que buscam soluções nos marcos da legalização.

Contudo, em busca de um papel mais assertivo no sistema internacional, potências emergentes podem interditar reformas do regime global. Especificamente, Rússia e China, localizadas nas adjacências do Afeganistão e do Triângulo Dourado (região entre Mianmar, Tailândia e Laos), onde se concentra quase toda a produção mundial de heroína (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2010). Sua importância crescente para indústria das drogas como entreposto e como mercado consumidor é secundada pelo endurecimento da legislação antidrogas, o fortalecimento das agências responsáveis pelo tema e a projeção de poder para induzir cooperação de outros países (YONG-AN, 2012).

A Rússia de Putin tem-se mostrado determinada a denunciar de acordos internacionais cujos termos parecem lhe impor um papel de parceiro menor. Em janeiro de 2013, Putin rompeu acordos com os EUA, vigentes desde 2002, para assistência mútua legal na investigação de crimes transnacionais como narcotráfico e terrorismo. As ações não se restringem a foros multilaterais nem ao entorno imediato no Sudeste asiático. A Rússia vem projetando influência em outros continentes por meio de acordos de cooperação técnica como a ata de intenções, firmada em março último, entre o Serviço Federal de Controle de Drogas russo e a sua contraparte peruana (ANDINA, 2013).

A China, por sua vez, conduz desde 5 uma “Guerra Nacional do Povo Contra Drogas Ilícitas”. Em um mimetismo da atuação militar dos EUA, além das usuais políticas de controle e repressão, o governo chinês passou a executar operações militares nos países vizinhos. Chegou-se mesmo a cogitar o emprego de veículos aéreos não tripulados m uma missão no Laos para captura de um importante traficante da região, o birmanês Naw Khan, acusado de matar policiais chineses (THE ECONOMIST, 2012; STUSTER, 2013).

Embora discreta, o Brasil manteve atuação significativa no tema. Tendo registrado 58 tratados e acordos sobre entorpecentes (36 bilaterais e 22 multilaterais) é um dos maiores participantes do regime global de controle de drogas. O país é palco do trânsito de drogas e outros ilícitos ao longo da vasta região de fronteira ajuda a explicar a ampla rede de acordos bilaterais que o país firmou com praticamente todos os países sul-americanos. Eles consistem em instrumentos de cooperação integral para redução de oferta, redução de demanda, tratamento de dependentes e delitos conexos (SILVA, 2013). Exercícios militares e reuniões periódicas de autoridades e peritos nacionais com seus pares de países vizinhos tornaram-se atividades rotineiras, especialmente após a criação dos conselhos ministeriais de Defesa e para o Problema Mundial das Drogas na União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). O país sempre se esforçou por estar em consonância com as iniciativas multilaterais e regionais tendo promovido e marcado presença em foros como a Rede de Drogas do MERCOSUL e a Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD) da Organização dos Estados Americanos.

Que conjuntura todos esses eventos parecem conformar? Estaríamos rumo a uma reforma do regime global sobre drogas, induzida por mudanças sociais internas em países- chave em prol de políticas legalizadoras? Ou testemunhamos o princípio de um cisma

internacional entre nações reformistas e potências emergentes conservadoras? É difícil predizer os desdobramentos de processos que interagem de forma dinâmica e complexa. Mas é seguro afirmar que não há solução técnica para o problema mundial das drogas. O que está em jogo não é a eficiência dos métodos empregados para vigiar e punir indivíduos que desejam consumir esta ou aquela substância ilícita, mas a legitimidade de princípios substantivos de justiça, a preservação de direitos e garantias fundamentais para a liberdade e a dignidade humanas. Apenas por meio da mobilização moral dos indivíduos pode-se chegar a uma combinação virtuosa entre os valores de segurança pública e liberdade individual, hoje em profundo desajuste.

4.6. Conclusão parcial

Atualmente, todas as regiões do mundo são palco de algum arranjo governamental de cooperação para controle de drogas ilegais. As diversas iniciativas regionais apresentadas neste capítulo, a despeito de sua efetividade ou funcionamento regular, apontam para a difusão e a incorporação dos princípios estabelecidos nas Convenções da ONU pelos estados participantes. Elas apresentam grande diversidade de composição e mecanismos específicos para monitoramento, em geral operando sob o risco de restrições orçamentárias, mas constituem um foro relativamente autônomo para troca de informações entre especialistas e agentes governamentais e para a coordenação de políticas nacionais com atenção às especificidades locais.